Baseada em fatos reais, a ótima série de televisão For life, de 2020, conta a saga de um homem negro julgado e condenado em Nova York por um crime que não cometeu e que decide estudar Direito na prisão, buscando no emaranhado das leis uma saída para anular o julgamento injusto do qual foi vítima, num sistema judiciário tão ou mais corrompido do que o brasileiro. Ele ingressa na nova profissão atuando na defesa de outros presos e acaba conseguindo uma licença para advogar.
A segunda temporada da série, lançada há poucos meses, retrata o começo da pandemia de covid-19 na maior metrópole norte-americana e também o assassinato brutal de George Floyd, estopim do movimento Black Lives Matter. O quanto esses dois fatos podem estar relacionados é algo a ser estudado com mais atenção, mas o que impressiona mesmo o espectador é assistir às cenas de atordoamento e terror diante do avanço de uma doença totalmente desconhecida que o mundo viveu ali atrás, há mais ou menos dois anos, e concluir que aquilo tudo já faz parte do passado. Esse é o ponto que nos interessa aqui: a rapidez com que um fato vivido entra para a História, assim mesmo, com “h” maiúsculo.
A mesmíssima sensação percorre o leitor diante de várias passagens do romance Os planos ao confrontá-las inevitavelmente com a realidade: aquela tal de Operação Lava Jato, tão ruidosa quanto promissora e que até ontem ainda rendia boas matérias jornalísticas com suas ações espetaculosas e prisões de graúdos, definhou miseravelmente e veio a falecer. Falta um enterro digno e pronto: História. A Lava Jato só resiste ainda na memória de alguns e na ficção.
No romance de Carlos Marcelo, por exemplo, onde ela serve de pano de fundo a uma trama que mescla entrecho policial e política, dois elementos cada vez mais imbricados na cena nacional, e tendo a música popular como luxuosa costura. Não se imagine, contudo, que a história se desenrola em Curitiba. O cenário é Brasília — que, para tristeza de seus honrados cidadãos, tornou-se o símbolo mais bem-acabado de toda a baixaria do país.
A trama de Os planos começa em 1968, um ano emblemático da História contemporânea. Ano em que Caetano Veloso lança Tropicália e “inaugura o monumento no Planalto Central do país”, e quando cinco jovens estudantes — Duílio, Diana, Tide, Rangel e Hélio Pires — se unem numa amizade que vai perdurar a vida toda. Eles gostam de música, se lançam num projeto de banda que não vinga, têm suas aventuras e desventuras amorosas. São, numa definição muito usada à época, um bando de “porra-loucas”, os mais favorecidos dando suporte aos que só podem contribuir com sua loucura no esquema.
Daquele tempo, deixam mal resolvido um caso cabeludo, cuja lembrança os assombra até hoje — e, de certa forma, também os une. Duílio vai seguir a carreira do pai advogado, casar-se com a filha de um inescrupuloso senador da República e se tornar tão odiento quanto o sogro. Diana, a filha riponga do senador, fará concurso para locutora da Rádio do Senado, onde também entrará como programador musical o amigo Tide, proprietário por um tempo de uma loja de discos. Rangel vai virar delegado de polícia e Hélio, dono de floricultura. A esses personagens principais se unirão outros que ganharão relevância na trama, dentre eles Denizard, um colunista de política à moda antiga, desses que ainda levam o jornalismo a sério, e sua estagiária Djennifer, cujo nome já é por si só um personagem.
Cadáver no lago
A estrutura, contudo, não obedece a uma cronologia linear. Antes de se dividir em suas duas grandes partes, intituladas O plano e Outro plano (os planos do título da obra e sobre o que não se pode aqui discorrer para não frustrar o futuro leitor de descobrir ele próprio o que significam), o romance abre com uma inspirada introdução de única página onde aparece um cadáver num lago que não se sabe de quem seja.
O mistério fica estabelecido na primeira linha, e esse será o eixo em torno do qual se construirá toda a narrativa, embora às vezes ela se afaste bastante desse eixo e quase se esqueça de voltar. O recurso do flashback, com capítulos inteiros deslocados do presente para fatos ocorridos nos 50 anos anteriores, propicia que a história vá sendo montada como num quebra-cabeça.
Essa estrutura narrativa, de viajar ao passado em busca de elementos que preencham as lacunas da história presente, não é incomum na literatura policial; aliás, obras clássicas do gênero já se valeram tanto do flashback quanto do começo in finis res, ambos usados em Os planos. A diferença aqui é o que se afirmou agora há pouco, os afastamentos da trama que se julga ser a principal por caminhos que parecem não ter uma relação direta com ela, o que leva à conclusão de que a obra não pretende ser um romance policial, apesar das muitas evidências. Além disso, há dois personagens tão inequívocos quanto inusuais na história.
Personagens inusitados
O primeiro deles, Brasília, a Capital Federal, homenageada de todas as maneiras possíveis no romance, em todas as épocas dentro do meio século em que ele transcorre, para o bem e também para o mal. São muitas as referências a locais que já não existem e a hábitos de outros tempos, com o aspecto curioso de que a cidade é nominalmente citada apenas ao final do romance. Além da homenagem, fica no leitor a percepção de que a história talvez não pudesse ter acontecido da mesma forma em outro endereço. Brasília é uma cidade jovem, construída há pouco mais de seis décadas, onde todo passado é recente, o que explica em parte o nítido descompasso que há entre o ritmo da evolução da humanidade e o que rege o movimento das coisas no centro do poder brasileiro. Essa dissintonia está muito bem explorada, talvez até mesmo sem intenção autoral, mas por consequência de um minucioso trabalho de ambientação. Para quem conhece Brasília ou vive lá, deve ser interessante encontrar a cidade vista sob a perspectiva do romance.
Quanto à música, ela é tão assídua participante da história que merece ser elevada também à condição de personagem. A trilha musical, basicamente formada de hits dos anos 1970 e transcrita nas páginas finais sob forma de um anacrônico LP, com Lado A e Lado B, diz muito de toda uma geração criada no coração do Brasil no tempo em que Brasília também vive sua juventude.
A primeira das faixas desse hipotético LP é Tudo o que você podia ser, dos irmãos Lô e Márcio Borges, não por acaso a faixa que abre o icônico Clube da Esquina, eleito há pouco o melhor disco da MPB de todos os tempos. Emblemática por vários motivos, a começar pelo próprio título, a canção vem acompanhada na seleção de outra pérola do mesmo álbum, Nada será como antes, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, as duas dando um arremate perfeito na ambientação, que ainda conta com Bee Gees, Carole King, Belchior, The Doors, Rita Lee, dentre outros.
Carlos Marcelo tem uma bela prosa que, de alguma forma, reflete seu gosto pela música popular, seja na cadência das frases, seja no léxico, seja na própria escolha da temática. Nota-se, contudo, uma preferência pela construção de frases em ordem indireta. Esse é um recurso válido quando usado com a parcimônia necessária a que valorize o discurso e não vire um cacoete a incomodar um leitor mais exigente. A regra é clara, já dizia um famoso comentarista de futebol: uma solução que nos agrade muito requer um cuidado especial para que seu uso repetitivo não se torne um novo problema.
Os planos traz uma trama não muito simples, cheia de sutilezas que podem fugir a um leitor menos atento, mas que garante boas surpresas a quem se deixar levar pelo som da agulha de diamante pousada num vinil dos velhos tempos. Além de uma nova história, talvez um reencontro.