Em entrevista recente ao jornal O Globo, Nélida Piñon afirmou: “A memória é um patrimônio que você tem, mas que não domina, é esquivo. Ela não depura, ela acolhe e acata, não tem uma estética. A memória não bate à sua porta para dizer: ‘viva bem, seja elegante, porque estou colhendo tudo para um livro que quero que seja escrito por você no futuro’. A memória não faz isso, ela é um registro totalizante”. Apesar desta afirmação, a escritora Nélida Piñon ostenta o domínio cultivado da língua e do estilo, o que lhe permite, em Coração andarilho, transformar retalhos e fragmentos colhidos no jardim da memória num buquê de cores variadas e harmoniosas, que servem para ressaltar e explicar sua formação. Ela recolhe, aparentemente ao acaso, e compõe, com maestria, um texto em pequenos capítulos trabalhados estilisticamente para compor miniaturas e mosaicos sentimentais de seu passado.
“Meu testemunho é impreciso. Misturo a colheita da memória com a invenção, porque é tudo que sei fazer”, continua a autora numa das muitas entrevistas que concedeu aos principais jornais brasileiros. Em cinco décadas dedicadas à literatura, Nélida Piñon aprendeu e praticou a arte da narração, deixando de ser a menina atrapalhada pelas palavras (“tinha a linguagem precária e pobre”), cujas idéias pareciam se embotar face à pobreza vocabular, para ser a tranqüila e segura aventureira, que singra os mares com a mesma paixão de Camões: o mundo pode desaparecer, as naus podem perecer, mas a literatura deve ser preservada. De cunho autobiográfico, o novo livro se reparte nas andanças pelo tempo e a tradição, e pelos locais visitados e amados. Na primeira parte, Nélida procura revelar como foi formando seu universo pessoal e criativo através do estímulo dos pais e dos avós, das tradições encontradas nas narrativas que escutou dos diferentes parentes, nas atenções de mestras amadas e no próprio prazer em transformar suas emoções e sensações em textos.
Com carinho, ela tenta recuperar as figuras das pessoas mais importantes de sua formação, mas ao invés de um retrato objetivo, o que cria é um monumento ao incentivo recebido dos outros. Nélida deixa claro que teve como ponto de partida a afetividade da família. E revela que se criou “mestiça” ancorando-se no país de eleição, Brasil, onde seus pais e avós, imigrantes, prosperaram, e nas terras quase imaginárias da Galícia, onde os limites entre realidade e ficção se confundiam nas lendas e paisagens.
Única missão
Capítulo após capítulo, ela vai juntando pequenos fragmentos das lembranças de fatos ou de sensações, para organizá-los em mosaico que revele a figura de seu pai, Lino, morto prematuramente aos 55 anos, e de sua mãe, Carmen, de cuja companhia desfrutou por longo tempo. Junto a esses principais esboços, aparecem a avó Amada e o avô Daniel (em cujo nome Nélida encontrou o seu anagrama), os outros avós, e uma série de tias e primos. Todos parecem comungar de uma única missão: trabalhar para o surgimento da escritora. “A seleção que faço da família, dos amigos, dos pensamentos vagos, compõe o meu horizonte pessoal. Sem dúvida, é arbitrária, apresenta alto grau de subjetividade”, confessa, percebendo os subtextos latentes nas escolhas feitas.
A autora de Vozes do deserto (vencedor do Prêmio Jabuti 2005 nas categorias Romance e Livro do Ano) visita essas memórias como andarilho, e é impossível, ao se meditar sobre a escolha do título, não pensar no famoso caminho de Santiago, que, no entanto, mal é mencionado no texto. Talvez a explicação esteja no fato de que foi lá, numa sexta-feira, que Nélida recebeu a notícia da hospitalização de sua mãe:
Fui tão feliz em Santiago de Compostela. O coração alvoroçava-se a qualquer pretexto […] Fui tão feliz, repito, até a madrugada de sexta-feira […] Logo, no quarto, o telefone soou trazendo o aviso dramático. Minha mãe sofrera grave acidente no Rio de Janeiro.
A importância materna é sempre sublinhada, a cada referência feita a Carmen Piñon. Ela aparece como Sherazade, uma sedutora que lhe deixa, de herança, as chaves da casa e que desde cedo lhe ofertara as do texto. Amorosa, ela lhe ensina os caminhos da vida e da velhice. Um caminho em linha reta, que se diferencia do Caminho de Santiago, pois, em outra das muitas entrevistas, Nélida nos relembra que esse era o caminho dos pecados, já que ao seu final havia a garantia da indulgência. “Ninguém diz, mas era um caminho do pecado. Você podia pecar muito para chegar no fim e ser perdoado. É como Santo Agostinho: ‘Fazei-me puro, senhor, mas não já’. Você precisa pecar muito, precisa conhecer a paixão da carne, se deixar levar ou dominar pelas paixões”. Curiosamente, os pecados e as tentações mal revelam sua presença nas rememorações escolhidas para figurar no livro. Aqui e ali uma pontinha de desejo ou de maldade tempera o texto como um grãozinho de pimenta. Nem mesmo a gula (mas seria isso um pecado?) revela sua face temível, pois a comida, apesar de aparecer inúmeras vezes no texto, vem santificadamente vestida como a simbólica união dos familiares e amigos. Compartilhar a comida e a bebida é uma forma de amar e de aceitar as diferenças entre os convivas.
Microcosmo
Depois do passeio caprichoso pelo tempo, a escritora se desloca no espaço, na segunda parte de seu livro. Os capítulos, que mais se assemelham a crônicas, falam de locais diferentes como Santa Fé, a pequena aldeia onde é recebida pela amiga de toda uma vida, a famosa e poderosa agente literária Carmen Balcells. A coincidência de nomes entre sua agente e sua mãe parece confirmar o empenho que as duas empregaram para ajudar a escritora brasileira a obter reconhecimento internacional e também uni-las no afeto que as duas sempre lhe demonstraram. Nélida se sente à vontade neste microcosmo: uma família e uma casa à sua disposição, nesta Espanha estrangeira e, no entanto, tão sua. Cada local visitado é mais do que um cenário, transforma-se num lar, num abrigo, num motivo de reflexão. Sabemos mais dos pensamentos de Nélida do que da paisagem que provoca essas reflexões. As estátuas de Trajano e de Adriano, por exemplo, provocam divagações, embora flutuem, sem pousar, numa paisagem catalã, onde a vida se expressa em pão com tomate, vinhos, queijos e afetos.
Os pensamentos sobre a felicidade, organizados como se fossem aforismos modernos, surgem da contemplação de conservas, pães e queijos, num recanto parisiense cuja geografia imaginária aproxima o parque Montsouris, dos corpos em exposição ao sol, à Place des Vosges, onde ainda ressoam as espadas dos mosqueteiros do rei em eternos embates com a guarda do Cardeal. Em cada cidade visitada, a história e a literatura são mais palpáveis que os prédios: o mundo só merece ser mencionado como alimento de suas reminiscências e reflexões. É assim seja em Washington como em Avignon, em Nova York como em Madri, cidades que se esgarçam para dar vez à paisagem histórica e literária que seus recantos suscitam.
Retornando ao Brasil, a acadêmica faz uma profissão de fé e de amor à terra natal: “Mas onde esteja, vejo-me soldada à vida e ao Brasil”. E continua, insistente: “nesta paisagem brasileira escolhi a literatura. Com ela travo a batalha do espírito e da paixão. E o português é a minha língua”.
Nélida Piñon, escritora brasileira, mas de coração andarilho, nos deixa entrever como ser fiel ao berço natal, mesmo quando nossos vínculos mais fortes estão atados na tradição milenar e sem fronteiras da cultura e da arte ocidental. Fazendo um balanço de sua vida, ela se reinventa a cada página, enquanto avalia — e revalida — seu compromisso com a arte. Suas memórias acabam por formar o mosaico que ela procura recompor: seu próprio ser, como ela mesma, com têmpera de aço e doçura, forjou. E, tal planta teimosa, mas não sem espírito crítico, insiste em vicejar no Brasil, uma pátria cujos defeitos reconhece. “Não é possível que um escritor brasileiro aplauda a indiferença cultural do Brasil. Só um insensato. Como não sou insensata, nem parei de pensar, reconheço que o Brasil cobra um esforço acima das necessidades da literatura. Persistir na literatura é um milagre.” (entrevista ao jornal O Globo)
Mais do que persistir na literatura, Nélida, em suas memórias, faz da vida — e da morte — literatura. Imortaliza-se, a si, aos pais e aos amigos, e faz da pátria periférica um paraíso, não masmorra.