Uma mulher dobra a esquina da rua de casa em estado de euforia, “como se tivesse engolido um pedaço luminoso daquele sol da tarde”. Bertha Young, a protagonista de Êxtase — narrativa que abre a coletânea 15 contos escolhidos de Katherine Mansfield — é uma jovem rica, bem casada, mãe de um bebê pequeno e amiga de escritores, artistas e “pessoas interessadas em questões sociais” — o tipo de influência que faz com que você se sinta moderno em qualquer celebração, seja uma vernissage ou um jantar privado. E o mais importante: ela sabe disso.
Mas a sua consciência não para aí. Nos contos de Katherine Mansfield, o enunciado — que é o produto do pensamento — nunca se encerra nele mesmo, entre o imediatismo de uma conclusão e a explicação que a justifica. Mais do que a felicidade, mais do que o realismo subjetivo de seu mundo interior, a protagonista deste conto está tomada por uma excitação febril — e o motivo está associado à vinda de uma visita conhecida, que de alguma forma ainda lhe parece misteriosa.
Essa visita é uma mulher. E esta não é a primeira vez em que Bertha se sente assim. Na verdade, Bertha “sempre caíra de amores por ela, já que sempre caía de amores por mulheres bonitas que tinham algo estranho a respeito de si”.
O que essa história tem de especial não é só a destreza de sua autora em transformar um evento cotidiano num flerte discreto com a bissexualidade — tema que também é retomado em Uma xícara de chá e que já é, por si só, bastante revolucionário para a época em que o conto foi escrito: entre 1910 e 1920, quando as sufragistas foram às ruas de Londres reivindicando o direito ao voto. Embora não tenha sido uma ativista, Katherine de fato teve um estilo de vida ousado para os padrões de uma Inglaterra aristocrática, país para onde a escritora neozelandesa se mudou após se cansar de uma formalidade que ela via como excessiva em seus familiares. O que chama atenção é a maneira como ela incorpora elementos autobiográficos na sua prosa sem reduzi-la aos clichês da chamada escrita feminina, mas usando atributos que são tipicamente atribuídos às mulheres — a delicadeza, a doçura, a sensibilidade — para escancarar os vícios de uma sociedade marcada pela opressão doméstica e por casais em permanente conflito.
O familiar é estranho
“Não somos nem machos nem fêmeas. Nós somos um misto dos dois”, Katherine escreveu em seu diário, em agosto de 1921. “Escolhi o homem que desenvolverá e ampliará em mim o que há de masculino; ele me escolheu para engrandecer nele o que há de feminino. Sendo, assim, ‘completa’”.
Para a escritora, a ideia de que o casamento fosse a união necessária entre opostos complementares era uma falácia. É por isso que em seus contos a suposta integridade garantida pelo pacto burguês sempre se desmancha no ar, e a família, em vez de aparecer como símbolo do acolhimento, é a fonte das neuroses e das rupturas afetivas. Em As filhas do falecido coronel, por exemplo, as irmãs Josephine e Constancia ficam tão aparvalhadas com a morte do pai que passam a ter uma série de alucinações enquanto organizam seu funeral e a distribuição dos bens que lhe pertenciam em vida. A perda desse referencial faz com que as duas se comportem como crianças, sendo que a ação se concentra na casa, espaço onde o progenitor tinha maior influência. O clímax do conto se dá no momento em que Josephine começa questionar que homem pode ou deve substituir o pai — e se a ausência da mãe foi realmente suprimida pelas empregadas domésticas que vêm cuidando dela e da irmã.
Falando em empregadas domésticas, A casa de bonecas também é um conto protagonizado por irmãs, com a diferença de que estas realmente são crianças. O título faz menção a um presente que as meninas Burnell — Isabel, Lottie e Kezia — ganham de sua tia e decidem mostrar para todas as suas coleguinhas de classe. Só duas não participam da roda: as irmãs Lil e Else, excluídas na escola por serem filhas de uma lavadeira e de um presidiário. O que esse conto tem de cruel, ele também tem de verossímil: o argumento é de que a desumanização é proporcional à desigualdade social. Nenhum adulto tenta ajudá-las quando a personagem Lena aborda Lil e pergunta, em tom de zombaria, “é verdade que você vai ser empregada doméstica quando crescer?”. Provavelmente porque é isso mesmo que a espera. Ou, talvez, porque num mundo onde as diferenças estão dadas, o trágico é — simultânea e paradoxalmente — risível.
A síntese do absurdo
Mas o conto em que esse traço de humor tcheckoviano chega à potência máxima é o famoso A festa no jardim, um dos mais estudados pelos críticos de sua obra. Não seria nenhum espanto se ele viesse com o slogan irônico “a grama do vizinho é sempre mais verde”: nele, uma família abastada está prestes a dar uma festa no quintal quando uma das filhas — Laura — fica sabendo que um dos vizinhos, um pobre carroceiro chamado Scott, morrera há poucas horas enquanto executava seu trabalho. De repente lhe parece absurda a hipótese de festejar, sendo que a mulher e os cinco filhos pequenos deste desconhecido estão, a poucos metros de distância, velando o seu corpo enregelado. É aí que ela recorre aos familiares e pede para que o evento seja suspenso.
“Suspender a festa no jardim? Laura, minha querida”, diz a irmã, “ninguém espera que façamos isso”.
Em suas rápidas mudanças da terceira pessoa para o discurso indireto livre, Katherine Mansfield esquadrinha (como se fosse uma câmera) os pensamentos de Laura, passando por sua experiência de desconforto individual, pelo sentimento de desajuste e pela noção aguda e incontornável do que é o privilégio de classe. E, no final, arremata com uma questão que continua até hoje em aberto: a epifania experimentada pela personagem — isto é, sua incapacidade de nomear o que é a vida — tem a ver com a compreensão de que existe um significado maior para a nossa existência ou com a insignificância da palavra ante a fragilidade da condição humana?
No Brasil
Entre as autoras brasileiras que mais absorveram a influência de Katherine Mansfield, destacam-se Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar.
“Aos quinze anos, com o primeiro dinheiro ganho com trabalho meu, entrei altiva, porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar”, conta Clarice, em um trecho do livro Aprendendo a viver. “E, de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era uma anônima, sendo, ao contrário, considerada uma das melhores escritoras de sua época: Katherine Mansfield”.
Se Clarice incorporou figuras de linguagem bem similares (metáforas sinestésicas, epizêuxis, hipérboles, assonâncias) às de Katherine e, como ela, escreveu contos de profunda intimidade, Ana Cristina Cesar preferiu estudá-la e traduzi-la. Escritos da Inglaterra (1988), livro publicado após a morte de Ana C., inclui a tese de dissertação pela qual ela recebeu o título de mestre em Teoria e Prática de Tradução Literária pela Universidade de Essex: uma tradução comentada do conto Êxtase. Lá, ela afirma que “na qualidade de autora, essa fusão de ficção e autobiografia [presentes na obra de Katherine] me seduz. E, na qualidade de tradutora — alguém que procura absorver e reproduzir em outra língua a presença literária de um autor — não consegui deixar de estabelecer uma relação pessoal entre ‘Bliss’ e a figura de Katherine Mansfield”.
As três também foram mulheres belíssimas, mas isso na verdade não importa. A maior grandeza de Katherine Mansfield está justamente em remover o véu das aparências e mostrar, como se estivesse dando vida a um quadro de Edward Hopper, o que as pessoas fazem e pensam quando estão sozinhas. E é dessa solidão que ela tira a sua força.