No garimpo da linguagem

Evandro Affonso Ferreira mescla palavras de origem erudita e popular
Affonso Ferreira: perícia de escafandrista do idioma
01/05/2004

Lançado recentemente em São Paulo, o romance Erefuê, do mineiro Evandro Affonso Ferreira, já está dando o que falar. Em mais uma ousada incursão pela nossa língua, o autor dá seqüência à sua saga de diligente pesquisador. Ferreira mergulha nos pélagos da linguagem, para extrair, com a perícia de escafandrista do idioma, preciosidades lexicais, numa proposta que busca mostrar todas as possibilidades de comunicação que ele nos oferece.

A um primeiro contato com esse fluxo vertiginoso, quase hemorrágico, de expressões pouco utilizadas na fala e na escrita quotidianas, o leitor poderá questionar a validade dessa empreitada, sobretudo num mundo, cujo dinamismo da comunicação e rápido escalonamento de valores exigem agilidade e rapidez na apreensão do conhecimento. Não custará a ele perceber o equívoco. Não obstante deparar-se com uma linguagem menos convencional, estará diante de um universo multifacético, em que cada expressão foi utilizada de maneira funcional, numa atitude criativa que visa não só realizar uma interface com uma linguagem esquecida, mas conseqüente, como fazer a crítica da própria comunicação em nossos dias, tão marcada pelo tráfico de termos estrangeiros e pela assunção de gírias e modismos.

Erefuê vem completar o que poderíamos considerar uma espécie de trilogia etimológica, iniciada com os mini-contos de Grogotó (Topbooks, 2001) e a novela Araã! (Hedra, 2002), resultado do talento e do faro prospector de Evandro, em seu esforço de tirar do limbo certas expressões coloquiais que fazem parte do imaginário coletivo. Nessa aluvião, o autor recolheu para composição de um amplo espectro de termos, palavras de origem erudita e popular. Do arcaico ao moderno, do latim ao grego, das gírias à toponímia indígena, a apuração valeu a pena. A experiência fascinante de percorrer os territórios da língua resultou num expressivo caleidoscópio vernacular.

Ainda que o autor tenha se esmerado em catalogar palavras estranhas, em tal mapeamento não descurou de construir um enredo, estimulando assim o trânsito do leitor numa linguagem densa e pouco usual. Erefuê não é um compêndio de dicções estranhas, de expressões anacrônicas ou de interjeições propaladas a esmo, de efeito pictórico ou mitológico, ou que provoquem incompreensão ou espanto, como “huifa”, “glugue”, “banazola”, “ixe”, “é é é é”, “ã-hã”, “cof cof cof”, “eh-eh”, ou latinismos recitados a torto e a direito. Hélas. Alto lá! Cada termo tem seu lugar e sua razão no processo narrativo. Evandro, com perícia e talento, no lugar de criar uma arca de noé vocabular, construiu uma sintaxe própria, numa história amalgamada com humor e ironia.

O livro contextualiza o drama de Menelau, que é levado a julgamento pelo assassinato do amante de Helena, sua esposa, flagrada em adultério numa banheira. Enquanto aguarda a sentença do Tribunal, o acusado vai desfiando seu rosário de lamentações, execrando um relacionamento ao revelar a face messalínica da mulher, num jorro melancólico e patético em que tenta justificar o seu ato pela defesa da honra. As lembranças vêm à tona, e, vez por outra, intercalam-se os diálogos entre os jurados, conferindo uma quebra proposital na sisudez do texto, sem, contudo, diminuir a expectativa no desdobramento da tensão. Essa particularidade semântica tem um plus metafórico, pois aí entra a capacidade de Evandro de interferir na narrativa sem tirar autonomia dos personagens. De forma muito peculiar, vai intercambiando a trama com discussões filosóficas e tratando de temas tão universais e atemporais, como o amor, a solidão, a vida e a morte, o que, na verdade, funciona como uma leitura da própria realidade humana, com seus absurdos, seus paradoxos e suas bizarrices.

Com Erefuê, Evandro Affonso Ferreira, nascido em Araxá em 1945 e radicado há mais de três décadas em São Paulo, consolida sua trajetória literária com um trabalho de fina extração, renovando a prosa moderna sem os vícios, a flatulência, a clonagem ou os recursos requentados pelas vanguardices ou experimentalismos tardios. Como pesquisador que escarafuncha e recria o nosso idioma, contribui para a valorização das nossas raízes idiomáticas, chamando a atenção para a carnavalização do fazer literário em nossos dias, quando notamos o crescente empobrecimento do vocabulário, a banalização da ficção e a falta de recursos dos que falam e escrevem.

Em tempo: Erefuê é um substantivo masculino, palavra de origem iourubá, que quer dizer “fluido negativo, oriundo dos espíritos sem luz”.

Erefuê
Evandro Affonso Ferreira
Editora 34
120 págs.
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho