No escuro

Virtudes do argentino César Aira se encontram principalmente na originalidade com que sua prosa aborda o mundo social
César Aira: Criativo e angustiante
01/12/2005

Flores é um bairro grandão numa cidade imensa, Buenos Aires. Não é dos bairros mais afastados, mas também não está tão perto assim das partes e passagens mais óbvias da capital argentina — nem Obelisco, muito menos Boca, nem Florida, nem mesmo as livrarias da Corrientes, nada de Recoleta. Flores era, duas gerações atrás, um aglomerado de casas com terrenos quase de chácaras; hoje, com seus nada significativos oito quilômetros quadrados, abriga umas 140 mil almas (censo de 1991).

É um bairro de classe média, sem maior encanto, e aliás pelo contrário: nos anos 1970, aquela região sofreu um enorme problema, com mudança nos padrões dos trens que por ali passavam, com o deslocamento do comércio para outra parte, com o esvaziamento do bairro em sua antiga qualidade de quase pequena cidade encravada na megalópole. Flores, com sua velha igreja (dedicada a San José de Flores, razão do nome) e sua antiga praça, passou pelos maus bocados que todo habitante de grande cidade conhece: algum vandalismo, depreciação imobiliária, fim da antiga vida mansa.

Não sei se César Aira viveu por lá. Sei que nasceu no interior, em 1949, foi tradutor e professor e é um escritor de grande prestígio na Argentina de nossos dias. Tem um monte de romances, entre os quais este Las noches de Flores. Romance? Talvez não exatamente. É uma narrativa longa, de suas 140 páginas, mas com um temperamento mais próximo da novela do que do romance, pelo menos em um sentido, dentre as tantas inutilidades e arbitrariedades da distinção: é que à novela dá para se atribuir uma leveza no trato com os personagens que ao romance me parece que não; este, quando entra em cena, trata de dar um mapa com começo, meio e triste fim ao protagonista, enquanto aquela pode levar a coisa com menos empenho, menos visão de conjunto sobre a época, a sociedade ou mesmo o indivíduo que testemunham a história a ser contada.

Me encantei com a narrativa assim que entrei na primeira página, ainda na livraria. A abertura dá a pista: “Aldo y Rosita Peyró, un matrimonio maduro de Flores, adoptaron un curioso oficio en el que eran únicos y despertaban la curiosidad de los pocos que se enteraban: hacían delivery nocturno para una pizzería del barrio”. Casal de velhinhos que entrega pizza na noite de um bairro decaído — a quem jamais teria ocorrido, no Brasil, fantasiar ou registrar uma tal singularidade, a que não falta enorme dose de tristeza? Não é que nos faltem casais de velhinhos precisando de algum serviço, mesmo que degradante, para complementar a aposentadoria miserável; o que parece nos faltar é escritor com apetite para temas assim tristes.

A noite do bairro
O livro de Aira começa por aí e segue dando-nos a vida do casal de aposentados, sem pieguice e sem ilusões, por alguns capítulos, quando vamos conhecendo os hábitos da gente do bairro durante a noite, com os aspectos que correspondem: os trajetos que os dois novos levadores de pizza faziam, os hábitos dos compradores, as gorjetas que lá, como aqui, são dadas, etc. Ficamos sabendo que o casal trabalha dividindo o serviço com entregadores em pequenas motos, o que é muito mais comum, lá e aqui, do que entregadores a pé, e ainda por cima velhinhos. Os motoqueiros são gente dali do bairro também, meninos de 15 anos, que já pela idade são ousados, de vez em quando correndo acima da velocidade permitida e aconselhada.

Vai seguindo a história, e vamos ficando interessados por seu aspecto humano, quando o narrador começa sua brincadeira metanarrativa, que vai seguir até o fim. Já a poucas páginas do começo, quando se menciona a morte recente de um dos entregadores, um certo Jonathan, menino da redondeza como os outros, acontece o seguinte: os Peyró, que são gente cumpridora e regular, e portanto caminham direitinho pela calçada — e mais ainda, Aldo sempre dá o lado de dentro da calçada para sua esposa, como havia aprendido na infância —, são surpreendidos por uma louca correria das motos por cima das calçadas, em alta velocidade e em trajetos estranhos, num bailado meio satânico que, se sabe depois, é uma espécie de procissão pela morte do amigo.

Uma barulheira dos infernos, que cessa subitamente e que os vizinhos estranham mas entendem como um castigo dos Céus pela morte de Jonathan, dezenas de motos fazendo estrondo pelas calçadas e desaparecendo de imediato. Daí diz a narração (que traduzo para simplificar a vida do leitor):

É preciso reconhecer que havia motivos para que ficassem atônitos: a rua vazia, a procissão pela calçada. Em geral na vida contemporânea não acontece nada. Se há uma notícia, a televisão a conta, e tem um modo de assimilá-la muito rápido e deixar de ser novidade. Quase não existe possibilidade de surpreender-se, porque a surpresa sempre já retrocedeu ao passado imediato e só resta a repetição. Aquilo, ao contrário, seguia vibrando, sem explicação, sem repetição.

O romance vai se fazendo assim, numa estranha mescla de relato da vida dos dois aposentados e de alusão paranóica a uma talvez conspiração, talvez sublevação de gente jovem e inarticulada, tudo isso ainda acrescentado de comentários desarvorados sobre a vida moderna. O leitor habilitado na literatura argentina talvez lembre Roberto Arlt, um dos bambas da narrativa portenha da primeira metade do século passado, ele cujas histórias sempre mesclam relato de vidas amargas e de destino miserável, com uma visão conspiratória da vida, mistura que talvez seja representativa do modo de ver o mundo forjado por lá, na capital argentina. Aira mesmo vai espargindo aqui e ali umas breves anotações sobre isso: “E não podia descartar-se totalmente [que a procissão das motos fosse] a exaltação da morte, que havia estendido um manto de melancolia sobre toda a Argentina mas que neles podia ter gerado uma reação do tipo ‘Se Jonathan está morto, tudo nos está permitido’”. Dostoiévski reprocessado à moda portenha, que cultua os mortos de modo obstinado, como em Evita, como em Perón.

Unidade rara
Aira constrói seu romance de tal maneira que parece não haver plano ou roteiro de conjunto, como se cada cena ou capítulo estivesse sendo pensado na hora em que é relatado e em que o leitor dele toma conhecimento. As cenas se sucedem mas a tensão, que existe, não está na trajetória dos personagens. Onde estará, então? O que é que garante unidade ao livro? Pode ser que o laço de união entre as partes esteja em um dos motoqueiros-entregadores, chamado Walter, que traz certo mistério porque se supõe que ele tinha relação com certo outro motoboy, que se chamava Diego mas que, suspeitava-se, era na realidade uma menina que se fazia passar por rapaz. O leitor logo se dá conta de que Aira faz mais uma brincadeira metanarrativa, agora com a lenda da donzela guerreira, reencarnada num (ou numa) motoqueiro(a) entregador de pizza. Os tempos, os costumes. (Em matéria de donzela guerreira, a literatura brasileira fez viver um caso absoluto, que ano que vem completa 50 anos: Diadorim em Grande sertão: veredas.)

Todas as cenas transcorrem no escuro da noite, como se pode imaginar. Inclui-se aí um encontro inusitado do casal com um tipo apresentado como “metade morcego, metade papagaio”, mas com voz humana e raciocínio de gente, um ser da noite que vira quase amigo dos velhinhos caminhadores. Era uma alucinação? Talvez, não se sabe ao certo quase nada, a não ser o fato de que os meninos entregadores também o conheciam. Absurdos como este convivem no bairro com as casas onde vivem os que pedem as pizzas, casas que eram casas mesmo mas também apartamentos ou antigas casas e apartamentos que foram sendo repartidos e re-repartidos, formando uma teia. “Aqui a cidade revelava sua natureza de labirinto espaço-temporal.” Lembra Borges, claro, outro portenho ilustre, mas aqui a coisa engrossa pelo lado social: Aira, que não faz literatura de denúncia ou coisa assemelhada, certamente não foge dessa bronca.

Aparece depois um convento com freiras que pedem pizza noturna, e o relato caminha mostrando o que fazem os meninos com suas motos, o tempo todo sob o enigma da morte do tal Jonathan e da vontade de descobrir o que houve, ao menos de parte dos amigos que ficaram, já que da polícia pouco se pode esperar, porque é corrupta, etcétera, conversa em que os brasileiros também somos experimentados. Mas o que mais importa, para este leitor aqui, ao menos, é a verve do narrador de sempre alinhar os episódios com temas da vida, desta vida aqui, do século 21, com o neoliberalismo triunfante que fez dos antigos aposentados de classe média os novos entregadores de pizza, e fez do antigo operário o papeleiro de hoje.

Da mesma forma, vai o romance comentando a estranha natureza da vida nos tempos de reality shows. Por exemplo: “Aldo e Rosa haviam deixado de ver televisão desde que o trabalho para a pizzaria os fizera adotar outros hábitos e horários. Podiam até crer que tinham saído do mundo da representação e entravam no da realidade”. A amargura dessa observação vai de par com o relato das negociações entre — surpresa — seqüestradores e familiares do tal Jonathan, que entram na narração por um flashback, lá pelas tantas, e relata um processo que demorou dias e determinou plantões ininterruptos dos vários canais de televisão na frente da casa da família, a tal ponto que seus amigos entregadores de pizza a cada noite passavam umas três vezes pelos holofotes da televisão ao vivo, sendo vistos num aparelho receptor de televisão por seus mesmos colegas de ofício, que ficavam aguardando pedidos na sede da pizzaria. Curto-circuito em que não se sabe onde começa o relato, onde termina a realidade, se é que há mesmo realidade que exista sem o relato televisivo.

A paranóia como método
Se o leitor me acompanhou até aqui, deve ter visto que o livro de Aira é realmente criativo e, por isso mesmo, angustiante. Empobrecimento da classe média, motoboys se matando, seqüestro e resgate, televisão onipresente: é a nossa vida, que no romance ganha contornos menos cotidianos por força do arranjo ficcional, que sublinha a paranóia de nossos dias. “No fim das contas, não há modo mais eficaz de estar em toda parte do que não estar em nenhuma, porque os absolutos se tocam e todos se equivalem”, comenta o narrador, que está pensando na polícia, neste momento — “A polícia (…) é o modelo social deste mecanismo”. Mas pode ser a televisão também, dizemos nós, desolados, porque também ela está em toda parte e em nenhuma. (Por este aspecto, o da paranóia que se materializa na televisão, talvez o único parente de Aira no Brasil seja Fausto Fawcett, o criativo escritor de Básico instinto ou dos relatos alucinados e deprimentes que publica aqui e ali.)

O enredo segue com a entrada em cena de novos personagens, um promotor cujo filho é parado numa blitz da polícia, um escritor boliviano que vai passar uns dias na casa desse promotor (cuja esposa, vale notar, é uma escultora desiludida, que parou de esculpir), outro escritor, agora argentino mesmo, que é autor de roteiros para reality shows e se chama Pedro Perdón (trocadilho misturado com alusão bíblica). Roteiro para reality shows?, perguntará o leitor atento. Mas justamente o que os caracteriza é o não haver roteiro, pois não?

Pois é. César Aira realmente opera numa faixa peculiar. Para mim, parece que suas virtudes estão na originalidade do trato com o mundo social, por um lado, e por outro na criatividade da mescla de realismo trivial com certa inventividade na percepção dos mecanismos de falseamento (a expressão me saiu sem querer, e talvez tenha cabimento) a que somos diariamente expostos. Por isso mesmo suas brincadeiras metanarrativas são tão interessantes e, para gosto de quem curte o tema, criativas.

Por exemplo: este escritor boliviano (Ricardo Gonzáles), segundo vamos lendo, ficou famoso por ter escrito folhetos sobre um sistema de identificação de textos; quer dizer, não escreveu nada, mas divulga um sistema para reconhecer textos escritos por outros. Estamos no campo de uma outra falsificação, de uma outra paranóia, desta vez próxima do talento narrativo de Chico Buarque, especialmente o de Budapeste, cujo protagonista é um satisfeito ghost-writer, primeiro em português e, depois, em búlgaro. Pode-se dizer que o que está em causa, neste Chico e neste Aira, é a radicalidade da autoria, incluindo a autoria da arte narrativa, essa mesma que nos permite conhecer a vida discursivamente.

O novo e o diferente
Lá pelas tantas, já o livro alcançando seu quarto final, ocorre um debate estranho entre Ricardo Gonzáles e o promotor que o acolhe em Buenos Aires. O boliviano, ligeiramente cínico (não por acaso seu pai fora um grande investidor no mercado de artes visuais, com a consciência de que ali está é o investimento, o capital, e não qualquer fantasia de transcendência), dirá:

A arte está buscando sempre o novo, e o novo terminou identificando-se com o diferente. Produziu-se uma reversão de causas e efeitos, e agora basta que seja diferente. E a realidade se define pelo diferente. Mas o crescimento vegetativo da população, e o aumento relativo de artistas na sociedade contemporânea, multiplicou o diferente artístico a tal extremo que hoje quase se pode assegurar que qualquer configuração da realidade já foi antecipada na arte.

Onde antes o leitor e eu sonhávamos com a arte como representação, como elaboração, como fantasia sobre a vida, Aira vê a dureza da arte como antecipação da vida, dado o imperativo da busca pelo novo, que por sinal é, mas a gente pouco percebe, o mesmo imperativo da mercadoria, que sempre tem que parecer nova, para mobilizar a volúpia do consumo, que nos bota no seu bolso. (Um dos sentidos de paranóia é precisamente este: a presunção de que se pode antecipar a vida nas simulações, a exemplo da arte. Outro sentido de paranóia, que me parece igualmente cabível no caso: ela é o excesso de sentido, ela resulta da multiplicação cancerosa de sentido ali onde não há mais que a vida, a banal vida.)

O desfecho de Las noches de Flores é menos interessante do que eu esperava (e é claro que não vai ser referido aqui, para não cortar o barato do leitor). Mas, como espero ter apresentado, seu percurso realmente mobiliza a percepção, desautomatizando os canais pelos quais o mundo nos chega. Não é pouca coisa em matéria de narrativa atual.

Las noches de Flores
César Aira
Mondadori
140 págs.
César Aira
Romancista, dramaturgo e ensaísta argentino, César Aira é o autor de livros como A trombeta de vime, La liebre, Embalse, Canto castrato, El infinito e Copi. Nasceu em Coronel Pringles, em 1949.
Luís Augusto Fischer

É professor de Literatura Brasileira na UFRGS e escritor. Autor, entre outros, de Filosofia mínima —Ler, escrever, ensinar, aprender (Arquipélago).

Rascunho