1.
Um dos principais críticos literários dos Estados Unidos, Harold Bloom é responsável por algumas das análises mais pertinentes acerca da obra dos escritores do chamado cânone ocidental. Essa expressão, aliás, dá título a um de seus livros, e é interessante observar como Bloom se filia a uma espécie de tradição que não despreza o edifício que foi construído no passado ao mesmo tempo em que articula autores e obras que, à primeira vista, estão dispersos no tempo e no espaço, sem qualquer ligação aparente.
O preâmbulo acima, mais do que preparar terreno para comentar um autor consagrado ou para citar um crítico que dedicou sua imaginação para interpretar seus textos, serve, de uma só vez, como alerta e constatação. Afinal, são poucos os críticos que, hoje em dia, colocam em pauta a obra de autores que parecem muito deslocados da literatura que se discute atualmente. Afinal, é ainda mais raro perceber quem, como o já citado Harold Bloom[1] se dispõe a esboçar reflexão a propósito da obra de um escritor como o norte-americano Nathaniel Hawthorne (1804-1864), autor de pelo menos um clássico indispensável para a literatura universal: A letra escarlate.
Publicado em 1850, A letra escarlate permanece até o ano de 2017, quando este ensaio é escrito, como um texto fundador da literatura norte-americana. Sim, houve outras obras que são igualmente necessárias; sim, Hawthorne pertence a um caldo de cultura que o aproxima, como veremos adiante, de uma geração de escritores do norte dos EUA; sim, não resta dúvida de que seu texto já passou por escrutínios diversos, sendo passível de defesa apaixonada e de crítica desmedida por parte de estudiosos, críticos e também dos leitores. Tudo isso é parte integrante do que compõe um texto clássico. Mas não é só isso que será discutido aqui.
O ponto que faz de A letra escarlate, em particular, e da obra de Nathaniel Hawthorne, em geral, dignos de nota nos dias que seguem tem a ver justamente com o fato de os escritos desse autor nascido em Salém, Massachussetts, ainda ter ressonância nos Estados Unidos e, por que não?, no mundo contemporâneo. Pode parecer clichê gigantesco, mas é inacreditável o fato de tantas pessoas se meterem a escrever, pensar, palpitar e opinar a respeito dos Estados Unidos sem ao menos se dar conta do quanto a obra de Hawthorne é dotada de aspectos que não podem ser ignorados se a estratégia é a da compreensão, e não do desprezo; da comunicação, e não da omissão; do diálogo, e não do monólogo.
2.
Uma pista importante para falar da obra de Hawthorne é atentar para o texto que está na introdução de A letra escarlate[2]. Trata-se do ensaio A alfândega, texto em que o autor, com a chave da sátira, traz a própria trajetória de Hawthorne em meio às suas opiniões sobre o trabalho como funcionário público. Não há qualquer chance de o leitor brasileiro não se identificar com o painel que ali é apresentado, sobretudo no momento em que o debate acerca do funcionalismo público e dos salários ser parte da pauta cotidiana da cobertura jornalística dos meios de comunicação. É com muita ironia que Hawthorne apresenta a galeria de tipos humanos que trabalham com ele. E interessante destacar, também, como o autor via isso de forma crítica, a despeito de poder aproveitar o seu tempo ali para reforçar a ideia de que ambicionava ser escritor.
Aliás, os leitores também vão se surpreender na medida em que descobrirem que as agruras de Hawthorne em seu tempo são equivalentes a qualquer aspirante a escritor nos dias que seguem. Existe a insegurança, além do fato de que a decisão de investir na escrita de livros de ficção significar uma espécie de desídia para com os seus antepassados. “Ora, se esse degenerado tivesse sido rabequista, dava no mesmo”, imagina Hawthorne, numa das muitas passagens hilárias desse texto.
Os antepassados de Hawthorne merecem destaque porque, assim como a comunidade apresentada em A letra escarlate, se estabeleceu na Nova Inglaterra, sendo que um deles, inclusive, participou do episódio de julgamento e execução das Bruxas de Salém. No ensaio A alfândega, esse episódio é mencionado e fica claro o desconforto do autor para com esse tipo de memória. Não se trata de uma passagem que o orgulhe.
Na sua trajetória, Nathaniel Hawthorne é sempre colocado ao lado de nomes como Walt Whitman, Ralph Waldo Emerson, Henry Wadsworth Longfellow e Henry David Thoureau. Hawthorne foi contemporâneo desses gigantes da literatura norte-americana, sendo, inclusive, colocado como uma das pontas daquele que ficou conhecido como “transcendentalismo americano”. Já para Harold Bloom, a sua escrita, sobretudo nos contos, é tão surpreendente quanto Kafka, Borges e Calvino.
Em que pese o destaque e a fortuna crítica que envolve A letra escarlate, este não é o único texto de Hawthorne. Ele escreveu contos, como The birthmark e Young Goodman Brown. E ali estão algumas das obsessões do escritor. Uma crítica ao culto das aparências a qualquer custo; às falsas promessas de um essencialismo de fachada; e uma preocupação severa com as intenções da alma humana.
A princípio, esses elementos não se reportam exclusivamente aos Estados Unidos; todavia, é interessante notar o quanto dos elementos que Hawthorne investiga ainda fazem parte daquela nação com alma de igreja[3].
3.
Com efeito, sobre os Estados Unidos, já faz tempo que muitos têm se lançado na sedutora tarefa de tentar interpretar de modo definitivo os eventos que acontecem na maior democracia do planeta. Dos eventos subsequentes aos atentados terroristas de setembro de 2001 às eleições norte-americanas em 2016, não foram poucos aqueles que nos últimos 15 anos escreveram, criticaram, manifestaram suas pensatas, opinando, enfim, a propósito do comportamento dos norte-americanos. Sobretudo ao longo dos últimos 12 meses, logo depois que Donald Trump foi alçado ao poder, nota-se, além de certo açodamento nos vaticínios definitivos, um certo tom de espanto ao tentar esboçar uma leitura crítica dos Estados Unidos. A despeito de alguns bons insights e do repertório apresentado pelas exceções de sempre (há, sim, quem tenha lido, por exemplo, A democracia na América, de Alexis de Tocqueville, do mesmo modo que ainda existem analistas que sabem que os Estados Unidos não foram fundados por Barack Obama em 2008), é surpreendente o número de comentaristas que, por má fé ou desleixo, ignora a importância da literatura norte-americana no difícil exercício da compreensão do outro. No caso específico de Hawthorne, talvez seja o fato de se tratar de um autor do século 19. De acordo com esse raciocínio, dos Estados Unidos que aparecem em seus textos não teria sobrado praticamente nada. E é aqui que repousa o grande equívoco.
Mas, afinal de contas, como é que um livro como A letra escarlate, publicado ainda na metade do século 19, pode realmente dialogar com o mundo contemporâneo, tão marcado por acirramentos de frentes tão distintas e por consensos tão fechados, que não abrem margem para o outro?
A resposta não é simples, mas talvez por isso seja indicativa de caminhos mais interessantes.
De fato, A letra escarlate pertence a um cenário e a um imaginário que não correspondem imediatamente aos dilemas da vida contemporânea. A narrativa traz a história de uma mãe solteira, Hester Prynne, que na endurecida comunidade puritana de Boston do século 17 se vê forçada a aceitar o fardo pesado da culpa por ser quem ela é, ou seja, uma mulher que, aos olhos daquele grupo, nada mais é do que uma adúltera que carrega na existência da filha a marca permanente da sua ignomínia. Como consequência disso, Hester Prynne traz bordada em seu peito a letra A. De volta ao século 21, em que pese certa preocupação a propósito da “agenda conservadora”, mães solteiras já não são mais um ponto de discussão necessariamente tenso no contexto da ficção. Do ponto de vista sociocultural, por seu turno, essa configuração familiar já está consolidada o bastante para ter sido incluída em séries de TV e de sitcoms de sucesso nos EUA.
Ocorre que, a despeito da questão do adultério ter um peso decisivo na concepção da narrativa (sem esse elemento, portanto, a história não funcionaria), o que chama efetivamente a atenção é o modo como Hawthorne conduz a história no sentido de mostrar como a natureza humana se ajusta a uma predisposição acusatória. Dito de outro modo, é como se houvesse um desejo sub-reptício não por vigiar e punir, mas por acusar e julgar. É interessante observar, nesse aspecto, que o segundo parágrafo de A letra escarlate apresenta ao leitor os mecanismos que faziam essa mentalidade funcionar:
Os fundadores de uma nova colônia, seja qual for a utopia sobre a virtude e a felicidade humanas que tenham projetado de partida, invariavelmente aceitam, como uma de suas primeiras necessidades práticas, escolher um pedaço de terra virgem para servir de cemitério e uma segunda porção de terreno para construir uma prisão.
Essa apresentação não é aleatória. Logo no primeiro capítulo do livro, o leitor acompanha a saída de Herster Prynne da prisão, sua vergonha pública e os comentários daqueles que fazem as vezes de algozes da personagem. Está claro desde o início da história que ela não terá vida fácil. Está evidente desde cedo que a marca que ela carregará consigo é mais do que mera punição, representando uma lembrança da qual ela não conseguirá se libertar facilmente, a ponto de fazer parte de sua própria identidade. Está demonstrado, também no princípio do relato, o quanto dessa humilhação pública tem a ver com um sentimento mais genuíno e altivo por parte de Prynne, que, mesmo em desonra, mantém altivez de não entregar quem consigo partilhou do pecado que a faz carregar a letra escarlate.
À medida que os capítulos avançam, outros personagens vão ganhando espaço e relevo na narrativa. Vale a pena mencionar aqui o papel que passam a desempenhar Roger Chillingworth e Arthur Dimmensdale, sem deixar de citar, evidentemente, Pearl, a filha cujas reações enchem o coração da mãe de ansiedade. Chillingworth, médico que faz as vezes de aprendiz de alquimista, pode ser percebido como uma caricatura, tendo em vista os traços tão incisivos que vai recebendo do narrador. De igual modo, Dimmensdale, o pastor de alma pura, é a mais perfeita tradução do fiel que vive angustiado. A ele poderia ser atribuída uma passagem das Escrituras, sobre a eterna contradição entre o Bem e o Mal, quando o Apóstolo Paulo diz: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço”.
É nessa mesma passagem[4], aliás, que existe uma anotação acerca do adultério. Diz assim o texto: “De sorte que, vivendo o marido, será chamado de adúltera se for de outro marido”. Não é por outra razão que A letra escarlate pode, sim, ser lido como uma admoestação complementar contra a traição, uma vez que o pecado do adultério aqui traz consequências que são inestimáveis para os personagens dessa história. No entanto, a grandeza do romance de Hawthorne repousa precisamente no fato de que a obra não observa somente a concupiscência de Prynne e de seu amante; tem a ver, também, com a maneira como a comunidade puritana reage a esse episódio. A dramaticidade da trajetória de Hester Prynne alcança volume máximo graças a isso. São as palavras duras das mulheres; o julgamento desproporcional dos homens da lei e da Igreja; bem como o olhar, a um só tempo, inocente e hostil das crianças que transformam para pior o ambiente em que vive a heroína de Hawthorne. Hester Prynne, além do mais, precisa da caridade de quem a detesta, dependendo, assim, do trabalho que é oferecido por aqueles que a desprezam por seu pecado. Pode-se afirmar que a protagonista é tão somente tolerada em função de sua capacidade de trabalho que a coloca num nível de excelência que chega a ser impossível de ignorar totalmente sua presença.
O trecho a seguir, a propósito, é bastante ilustrativo nesse ponto.
Foi assim que Hester Prynne adquiriu um papel a desempenhar no mundo. Com a sua natural energia de caráter e seu raro talento, não pode ser totalmente banida, embora lhe tivessem imposto aquela marca que, para um coração de mulher, era mais intolerável que o sinal da testa de Caim.
Como em outras passagens do livro, no fragmento acima a alusão ao texto sagrado aparece como menção corriqueira, mas ali se tem a correlação com um dos personagens mais severamente punidos da Bíblia, cujo crime, ter matado o irmão, está longe de ser justificado — a não ser, claro, na literatura do ateu José Saramago, que, no seu estilo tardio e humor sardônico, escreveu Caim. Mas não é esse julgamento que importa aqui.
De forma bastante sofisticada, a história de A letra escarlate possibilita ao leitor entrar em contato com o desencanto promovido pela incompreensão. De nada adianta, afinal, aquela sociedade estar calcada na rocha do puritanismo, aliada ao Bem, se, por meio dos seus gestos, sua sanha acusatória provoca choque e ressentimento junto àqueles que deveria acolher; é igualmente inútil o exemplo que é dado pelas lideranças apresentadas no romance: sobra desconfiança e falta de sensibilidade quando se observa a mãe solteira que precisa cuidar de sua filha; sem mencionar o fato de que, conforme a estrutura daquela comunidade, tão somente as aparências servem como marca indelével das pessoas que ali vivem. É o desprezo que toma o lugar da compreensão.
4.
De muitas maneiras, o ano de 2017 traz exemplos múltiplos de como a falta de compreensão é um adversário que age como se fosse uma legião. Seria fácil, aqui, apontar para a falta de entendimento entre as lideranças políticas, ou, ainda, destacar o aspecto central da desigualdade econômica dos países desenvolvidos para os países mais frágeis; assim como ressaltar o terrorismo internacional que tem tornado o mundo um lugar mais inseguro. Mas assim como em A letra escarlate talvez seja o caso de observar o jardim que está ao nosso redor em vez de olhar a floresta.
O comportamento cada vez mais virulento é um exemplo de como uma comunidade que aparentemente tinha tudo para dar certo se converteu num esconderijo dos ressentimentos. Se no romance de Hawthorne a prisão e o cemitério são espaços privilegiados, hoje em dia os lugares de condenação e esquecimento não deixaram de ser visíveis — nos espaços públicos e nas arenas eletrônicas. Assim como aquele ambiente acusatório favorecia a perseguição de quem não pertencia àquele ambiente, também agora existe um clima de intimidação que aparece travestido de diálogo e conversação.
Enquanto na ficção de A letra escarlate a comunidade surge com raiva dos pecadores, o ódio no mundo contemporâneo também aparenta ser virtuoso, espalhando sentenças na direção de quem está contra o consenso. No romance de Hawthorne, são as pessoas de suposta boa reputação que condenam a má conduta de Hester Prynne; atualmente, o desrespeito se estabelece como regra na medida em que a posição do outro não apenas é colocada em xeque, como também seus argumentos e sua própria razão de existir podem seguir para o limbo dos proscritos, a depender de qual foi o ato/crime praticado.
A permanência do livro não tem necessariamente a ver com o fato de que a sociedade norte-americana ainda estar pautada pelos valores morais fundamentados na religião. É, sim, uma maneira de ler A letra escarlate considerar que o texto se organiza como uma crítica à hipocrisia daquela comunidade ao se posicionar contra Hester Prynne. Todavia, a marca que garante a preservação do texto para a nossa geração tem a ver com o fato de que a sensibilidade dos indivíduos, mesmo que guiada por bons princípios, tende a ser dizimada quando se confunde com o julgamento e com o desprezo da multidão. Isso já era visível numa ficção do século 19. Não dá para ignorar essa narrativa como reflexão da experiência humana.
NOTAS
[1] Ainda recentemente, foi publicado no Brasil O cânone americano; nele, Bloom estabelece correlação entre Hawthorne e Henry James.
[2] A letra escarlate, com tradução de Christian Schwartz. Edição da Companhia das Letras, publicada
em 2011.
[3] Referência ao livro Uma nação com alma de igreja: religiosidade e políticas públicas nos EUA. (São Paulo: Paz e Terra, 2009), organizado por Carlos Eduardo Lins da Silva.
[4] BÍBLIA SAGRADA. Romanos, capítulo 7, versículos de 1 a 20.