Village Vanguard.
Duas palavras que movem montanhas no mundo do jazz.
Um ouvinte mais ou menos bem informado conhece — ou ao menos ouviu falar — do lugar. Um boteco histórico. Um dos poucos lugares ligados à história da música americana que permanece aberto. O porão de Max Gordon.
Ao vivo no Village Vanguard ganha sua primeira tradução no Brasil pela CosacNaify. Não custa dizer que o livro é daqueles que tirariam vantagem de um guia de leitura. Como um memorialista de primeira (e única) viagem, Max Gordon (1903–1989) se esmera em derramar nomes de artistas que passaram pela sua mão e raramente se dá ao trabalho de informar quem é quem.
Quando o leitor liga os nomes às pessoas, as histórias ficam mais interessantes. É claro que alguns episódios dispensam o conhecimento enciclopédico. Como o de Miles Davis.
Gordon dá uma de esperto que se propõe a fazer “um retrato” do trompetista, a figura mais influente de sua geração e também uma das mais controversas. O autor reforça o mito e conta os percalços que teve nas poucas vezes em que se aproximou de Miles, “de todos que trabalharam no Vanguard, o mais duro de lidar”. Na época, o músico estava prestes a assinar um contrato com a Columbia Records, para a qual gravaria Kind of blue, o disco de jazz mais vendido da história.
No meio de uma apresentação, ele era capaz de sair do palco para ir buscar sua namorada bêbada num hotel da cidade. Em outras noites, aparecia na casa com sua senhora, bebia o que havia de mais caro no bar e se recusava a pagar a conta, alegando “serviços prestados” a Gordon.
Duas coisas são reveladoras a respeito do livro. O ano em que foi lançado pela primeira vez nos EUA e o tempo que o autor levou para escrevê-lo.
Gordon publicou Ao vivo no Village Vanguard em 1980 depois de sete anos trabalhando no texto. Dividido em vinte capítulos, metade deles tem as características de um livro de memórias. A outra metade está mais próxima do diário, onde os relatos parecem ter sido escritos no ritmo em que aconteciam.
Só isso pode explicar as ausências que marcam o livro tanto quanto — ou até mais — que as presenças. Enquanto Miles, Sonny Rollins, Charles Mingus e Thelonius Monk estão lá, pelo menos duas figuras essenciais à história e à fama do Village Vanguard foram relegadas a meras citações rápidas, acidentais: John Coltrane (com três menções) e Bill Evans (apenas uma). Ambos fizeram várias apresentações no Vanguard que renderam alguns dos discos mais importantes a ostentar o título Live at the Village Vanguard (ele aparece em mais de cem álbuns e se tornou uma espécie de selo de garantia para os ouvintes de jazz, daí Gordon usá-lo também no título de suas memórias).
Poetas e comediantes
Fundado às 9 da noite de 26 de fevereiro de 1934, em sociedade com Herb Jacobi, o Village Vanguard levou duas décadas apresentando poetas e comediantes até o jazz tomar conta de sua programação. Nos anos 40, a dupla de empreendedores abriu o Blue Angel, casa de shows que pretendia atrair a elite da região chamada Uptown, enquanto o Vanguard era ocupado pelos vagabundos e artistas do bairro Greenwich Village.
Tanto no palco do Vanguard quanto no do Blue Angel, Gordon viu passar artistas que logo se tornariam grandes e permaneceriam assim até os dias de hoje.
O lituano podia se vangloriar de ter bancado a primeira aparição pública de Woody Allen, até então famoso por escrever para outros comediantes. Ele foi convencido por Jake Rollins, hoje produtor dos filmes de Allen, a lançar o cantor Harry Belafonte (cuja importância a posteridade tratou de reavaliar).
Gordon ficou de quatro quando ouviu Barbra Streisand cantar pela primeira vez (contratando-a em seguida para se apresentar em seu clube grã-fino) e se entusiasmou com as peripécias do ator Mike Nichols (hoje um dos grandes diretores do teatro e do cinema americanos — para ficar em dois exemplos recentes, ele é o homem por trás da minissérie Angels in America, da HBO, e do filme Closer — perto demais).
“Não me entenda mal. Não estou querendo colher louros por descobrir todos esses grandes talentos. Na verdade, o que Jacobi e eu fazíamos? Estávamos lá, administrando uma casa. Só pagávamos o aluguel”, escreve Gordon. É estranho, mas ele peca por excesso de humildade. Ao longo de todo o livro, Gordon se esforça por ser um coadjuvante. Ou nem isso. E é essa postura que rouba um tanto da força que o livro poderia ter.
Na verdade, o autor assume sua condição de homem de negócios. Ele gostava de jazz, mas era movido pelo instinto. Conseguia apontar aquilo que gostava e o que não gostava, mas tinha dificuldades de explicar os porquês. Características que aparecem no capítulo sobre Sonny Rollins, quando tenta pôr em palavras o que sentiu ao ver um show do saxofonista: “Se eu fosse um crítico de jazz como Whitney Balliett, da New Yorker, ou como o Nat Hentoff ou Gary Giddins, do Village Voice, poderia descrever sua execução como ela merecia ser descrita. Só direi uma coisa — ele era maravilhoso e tocava como o Sonny dos velhos tempos”. Enfim, Gordon não era tão bom com palavras.
Sua disposição em escapar dos holofotes, diminuindo seu papel na história do jazz como se fosse uma testemunha míope e sem óculos, chega ao cúmulo nos parágrafos finais, quando diz que a boate “adquiriu vida própria”. Porém, essa falta de ambição talvez seja a maior responsável pela longevidade do Vanguard, pois permitiu que Gordon ficasse mais de meio século no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa.
Hoje, é a viúva Lorraine que administra o lugar.