Há três anos, em Frankfurt, foi inaugurada uma retrospectiva no Städel Museum que propunha uma revisão inédita da arte do século 18 ao 20 a partir do Romantismo noir. A exposição, que em 2013 esteve em cartaz no Museu d’Orsay, em Paris, fazia jus à complexidade do tema ao reunir mais de oitenta artistas e escritores artistas (como William Blake e Vitor Hugo), dos românticos aos surrealistas, que trouxeram do fundo de rachaduras históricas (na arte, na ciência, na literatura, na política) as assombrações do inconsciente, a noção de liberdade às raias do absurdo e a invenção de mitos modernos com vigor para apocalipses e revoluções.
É simbólico o advento dessa retrospectiva na Alemanha, berço dos primeiros românticos, em diálogo com a França, numa leitura transversal de Caspar David Friedrich e Füssli a Dalí e Max Ernst. Isso também simboliza, num caudal exemplarmente romântico, o frescor das reflexões que têm acontecido, da segunda metade do século passado para cá, no campo da teoria literária, sobre os desdobramentos e as influências do Romantismo como um espírito de época que, extrapolando o domínio das artes e das letras, penetrou a consciência ocidental e desde dentro minou, de maneira irreversível, os modelos de pensamento dominantes.
Dois livros recém-publicados no Brasil, numa leitura conjunta, vêm expandir o campo de visão e aprofundar o entendimento do fenômeno romântico: As raízes do romantismo, do filósofo Isaiah Berlin, e O romantismo europeu, antologia bilíngue organizada por Anna Palma, Ana Maria Chiarini e Maria Juliana Gambogi Teixeira.
As raízes do romantismo reúne seis palestras proferidas por Isaiah Berlin, em 1965, na National Gallery of Art, em Whashington, um material que o organizador Henry Hardy procurou manter o mais próximo da informalidade da fala do filósofo, o que faz do livro um ininterrupto fluxo de pensamento, que atravessa com desenvoltura séculos de História, entrecruzando filosofia, política, sociologia, literatura. O volume ainda inclui algumas cartas de Berlin que revelam sua paranoia com a organização das palestras.
O romantismo europeu, rara coletânea, dá ênfase a autores italianos pouco ou nada contemplados em antologias traduzidas no Brasil. Dos oito autores, quatro são italianos: Ugo Foscolo, Giovanni Berchet, Giacomo Leopardi e Alessandro Manzoni. Os demais representam individualmente outros países: S. T. Coleridge (Inglaterra), E. T. A. Hoffmann (Alemanha), Gustavo Adolfo Bécquer (Espanha) e Alfred de Musset (França). Cada texto acompanha uma breve introdução sobre o autor, o contexto de publicação da obra e seus aspectos literários marcantes.
Na política, na jurisprudência e nas teorias históricas, o pensamento romântico introduziu a ideia de que “o espírito interno de uma nação” é a verdadeira força que dá vida ao Estado e suas leis.
Fenômeno transformador
Em As raízes do romantismo, Berlin adota o método histórico para analisar os elementos que teriam propiciado, no final do século 18, na Alemanha, esse fenômeno que ele considera tão transformador para o pensamento ocidental quanto a Revolução Francesa ou a Revolução Industrial. Um dos elementos nesse caldeirão seria o movimento pietista, de origem luterana, que socorria espiritualmente os alemães em seu sentimento de inferioridade nacional. A discrepância entre o meio social dos chamados “pais do Romantismo” na França e dos primeiros românticos alemães constitui outro elemento sociológico importante dentro desse conjunto de forças, que viria a desencadear, entre outras coisas, uma violenta guerra de valores.
Berlin evoca Johann Georg Hamann como um nome dos primórdios do processo romântico, homem criado em ambiente pietista, admirado por Herder, Goethe e Kierkegaard. Com seu “vitalismo místico”, segundo Berlin, foi quem “desferiu o golpe mais violento contra o Iluminismo”. Herder, que muito aprendeu com Hamann, também teria detonado, por causa de sua doutrina, guerras tanto na teoria quanto na prática. Assim teria sido o processo romântico um processo efetivamente revolucionário, atiçado pelas muitas ambivalências ou contradições internas de seus integrantes. Goethe é uma dessas figuras ambivalentes, ligado ao romantismo por relações de “amor e ódio”. Kant, ainda que detestasse os românticos, é considerado, por sua filosofia moral, um de seus pais. Fichte, discípulo de Kant, com sua noção de “Volo ergo sum”, de “fluxo vital”, do homem como “uma espécie de ação contínua”, também fertilizou o terreno de um exacerbado patriotismo e um anseio coletivo de renovação que agiu sobre a moral e a política alemãs.
O caminho que Isaiah Berlin percorre, da Alemanha setecentista até a modernidade, é o mesmo contemplado na retrospectiva do romantismo noir que esteve em cartaz nos museus de Paris e Frankfurt. Um caminho de efeito vertiginoso, por exemplo, quando Berlin elenca as características do espírito romântico, a partir de citações entrecruzadas de escritores e críticos, numa sequência deliciosamente inspirada, tão contrastante em seus termos como um breve catálogo de tudo: nostalgia e entusiasmo, vigor e palidez de morte, beleza e feiura, unidade e multiplicidade etc. Na arte, eis onde o sobrenatural, o obscuro, o hediondo e outros dissidentes da razão e da harmonia clássica proliferam, entre os demônios de Füssli, as ruínas de Lessing e Caspar David Friedrich, os apocalipses de John Martin e Samuel Colman, as medusas de Franz von Stuck e Dalí, os canibais de Goya, os vampiros de Münch.
Nessa atmosfera noir, que passa de século para século como herança assimilada dos românticos, estão os contos de E. T. A. Hoffmann, entre eles, Cavaleiro Gluck, ótimo representante do fantástico na antologia O romantismo europeu. O conto ressuscita para o ano de 1809 a figura do compositor Gluck (morto em 1787), também lembrado por Isaiah Berlin numa de suas palestras. Embora os textos de O romantismo europeu privilegiem o debate teórico, nem por isso fica menos visível a psicologia de criação dos românticos, como, por exemplo, na “melancólica beleza” que o narrador encontra nas ruínas do convento de S. Juan de los Reyes, nas “Cartas literárias a uma mulher”, de 1860, do sevilhano Gustavo Adolfo Bécquer.
No ensaio, no romance, em cartas ou manifestos de autores como Giovanni Berchet, Alessandro Manzoni, Leopardi e Coleridge, veem-se diversas questões que alimentaram a guerra literária entre classicistas e românticos, muitas delas questões sobre tradução. Com humor, o poeta milanês Giovanni Berchet, em seu manifesto de 1816, comenta sobre o meio literário da época: “Na Itália, um livro não trivial que venha a público decerto encontra, aqui ou ali, grupelhos de escrutinadores de ideias que, entretanto, nunca o recebem de cara feia, por se tratar de gente sábia e discreta de natureza. Mas pobre coitado! Eis que acaba em meio a um exército sem fim de escrutinadores de palavras, inevitável, sempre alerta, e pródigo em censuras”. Interessante que Berchet confiava na derrocada da “tirania dos pedantes” e no florescimento de uma nova poesia na Itália, de sucesso popular, como a dos alemães. Acreditava que, compartilhando da falta de uma “pátria política comum”, alemães e italianos também pudessem compartilhar, agora positivamente, de uma “pátria literária comum”.
As guerras reais
Além do contexto literário, existem as guerras reais, terríveis, traumatizantes, e gerações que nascem e crescem no meio dessas guerras, que é o que interessa ao francês Alfred de Musset, cujas páginas selecionadas para O romantismo europeu (os dois primeiros capítulos de A confissão de um filho do século, que o autor publicou em 1836, aos 26 anos) fazem o ponto alto da coletânea, tanto por sua mirada histórica quanto por seu modo de expressão, por sua potência tanto poética quanto filosófica: “em uma palavra, o século presente, que separa o passado do futuro, que não é nem um nem outro e que, ao mesmo tempo, se assemelha a ambos, e onde, a cada passo que damos, não sabemos mais se caminhamos sobre sementes ou sobre destroços”.
O espírito do século, para Musset, é um “anjo do crepúsculo” entre as ruínas do passado e “os fulgores do futuro”. Noções de vontade, liberdade, autenticidade, gênio indômito, correntes de sentimentalismo, melancolia, egomania dão os tons desse crepúsculo em que se misturam manifestações do irracional, do inconsciente e do misticismo. Como recorda Isaiah Berlin, o século 18 não foi apenas o do “triunfo da ciência” e do estremecimento da religião organizada, foi também o século da maçonaria e da rosa-cruz, um século de forças e símbolos obscuros que viria adubar as modernas teodiceias. “Romantismo é a flor do sangue de Cristo”, diz Heine. Alessandro Manzoni, em sua Carta sobre o Romantismo a Cesare D’Azeglio, outro texto digno de nota na antologia dos europeus, fala da “tendência cristã” do sistema romântico, ponderando que talvez essa tendência nem mesmo fosse intencional.
A imprevisibilidade das consequências de um novo modo de pensar, que pode produzir o oposto de suas intenções, foi encampada pelo espírito romântico como um dado de sua potência, algo desconhecido, indiscernível, não para ser podado por leis ou regras, senão a ser considerado parte viva e incontrolável de um processo, a exemplo das leituras metafísicas derivadas das páginas de Kant, que o próprio repudiou. Um dos elementos da “doutrina central” do romantismo, e também dos “mais insanos”, para Isaiah Berlin, é “a vontade livre, imprevisível e poderosa”, que teve sua herança deturpada no fascismo. Outro elemento, “a negação de que existe uma natureza das coisas”, também no centro do romantismo, teve como herdeiro moderno, desta vez, “o mais verdadeiro”, o movimento existencialista na França.
Na política, na jurisprudência e nas teorias históricas, o pensamento romântico introduziu a ideia de que “o espírito interno de uma nação” é a verdadeira força que dá vida ao Estado e suas leis. Na arte, alimentou o simbolismo, o surrealismo, o teatro do absurdo e os mitos modernos, como Fausto e Don Giovanni. Nas palavras de Berlin:
O que o Romantismo fez foi minar a ideia de que, em matéria de valores, política, moral, estética, existem critérios objetivos que funcionam entre os seres humanos, de modo que qualquer um que não use esses critérios é simplesmente um mentiroso ou um louco, o que é verdade quando se fala de matemática ou de física. Essa divisão entre um âmbito no qual vale a verdade objetiva — na matemática, na física, em certas regiões do bom-senso — e outro no qual a verdade objetiva foi comprometida — na ética, na estética e no resto — é nova e criou uma nova atitude perante a vida.
É assim que, gerando um novo modo de pensar e sentir, o romantismo desdobrou-se em soluções históricas que foram muito além de suas intenções. As noções de liberdade do artista, pluralidade de valores, tolerância, relatividade de certezas na arte e na vida seriam algumas dessas conquistas, sem as quais seria difícil conceber o século 20, e, diante das quais, o próprio “fluxo vital” dos românticos prova seu poder de imprevisibilidade. Outros desdobramentos podem ser reconhecidos, dentro da teoria literária do século 20, a partir do recorte que os textos de O romantismo europeu fornecem dos debates e do imaginário de criação de seus autores. Adam Zagajewski na Polônia, Dolf Oehler na Alemanha, Mario Praz na Itália e Charles Pépin na França são alguns poucos exemplos de pensadores que continuam a revitalizar, levando adiante, importantes elementos dessa herança. Valeria a pena agora uma leitura da poesia através dos séculos, semelhante àquela da exposição ocorrida em Frankfurt e Paris, para ver melhor quanto se deve aos românticos, como nos propôs ver Isaiah Berlin no âmbito da filosofia e da História.