Figura central entre as que pensaram a guerra na modernidade, Carl von Clausewitz observou que a guerra nunca é um ato isolado: nenhum dos oponentes que nela se envolve é uma pessoa abstrata para o outro; a guerra não surge subitamente, nem se estende num só instante; tampouco o seu resultado é algo absoluto. Ao afirmá-lo, o general não procurava afastar-se demasiadamente do campo de batalha; seu desinteresse por questões econômicas ou tecnológicas reflete a experiência moldada pelas campanhas napoleônicas, capazes de pôr em questão o minucioso planejamento e a competência administrativa dos prussianos. De fato, Clausewitz se preocupava com fatores que poderiam exercer um papel determinante nos rumos do embate: a guerra está envolvida em um ambiente político, cuja influência sobre as condições subjetivas dos antagonistas não pode ser negligenciada; desprezar esses elementos implica uma impossibilidade de considerar o que está em jogo no próprio acontecimento bélico.
Seria um equívoco transpor imediatamente as considerações de Clausewitz para a Idade Média, período de que trata a obra aqui resenhada; evoco-as a fim de vincar como mesmo um autor que reagia com desconfiança a qualquer reflexão que parecesse distanciar-se do terreno da experiência não pôde negligenciar o fato de que essa experiência tem uma história, sem a qual é incompreensível. Quem são os atores que se apresentam no palco da batalha? De que elementos dispõem para atuar ao longo do combate? Que sentido político têm o evento bélico e suas consequências? Organizado por Marcella Lopes Guimarães, professora adjunta da Universidade Federal do Paraná, Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais reúne textos de pesquisadores que se debruçam sobre questões como essas, resgatando uma orientação historiográfica que, em tempos não muito distantes, permanecia relegada a um segundo plano. Cinco são as batalhas analisadas no livro, todas de indiscutível importância no âmbito da história medieval peninsular.
Em Hispania Misera Effecta: a Batalha do Guadalete (711) e a passagem da Antiguidade Tardia à Idade Média, Renan Frighetto, professor associado da Universidade Federal do Paraná, aborda a batalha em que as hostes hispano-visigodas, lideradas pelo rei Rodrigo, foram derrotadas por grupos mauri islamizados e facções hispano-visigodas dissidentes. Sugere Frighetto que a derrota do exército de Rodrigo pode estar relacionada à dificuldade dos hispano-visigodos em combater em campo aberto, o que teria motivado a fuga de uma das alas — algo possivelmente também associado a disputas políticas internas —, ensejando a possibilidade de um contra-ataque das hostes inimigas, a que se seguiram a morte do rei e a derrota dos hispano-visigodos. Fatores políticos e circunstâncias da batalha contribuíram, por conseguinte, para a vitória dos exércitos de Muza e Tarik, que teria por conseqüência o nascimento de al-Andalus e o início da Alta Idade Média na Península Ibérica.
José Rivair Macedo, professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, assina Entre a cruz e o crescente: cristãos, afro-muçulmanos e a Batalha de Las Navas de Tolosa (1212), texto em que analisa o conflito entre cristãos e muçulmanos do qual os primeiros sairiam vitoriosos, logrando recuperar parte de al-Andalus. Consoante Macedo, pesaram em favor dos cristãos inúmeros fatores, desde a superior qualidade do armamento até o uso da cavalaria pesada e a capacidade de liderança de Afonso VIII, rei que ocupa um papel central nos relatos castelhanos sobre o episódio — que a partir dele buscariam “a legitimação do poder real” e “a exaltação do poder eclesiástico e senhorial”; por outro lado, textos anticastelhanos e muçulmanos tratam a batalha como um acontecimento menor, quando o mencionam.
Também de um embate travado no âmbito da Reconquista, opondo uma coligação de reis cristãos a muçulmanos, trata O poder do relato na Idade Média portuguesa: a Batalha do Salado de 1340. No texto, Fátima Regina Fernandes, professora associada da Universidade Federal do Paraná, debruça-se sobre os relatos produzidos no período imediatamente posterior à batalha, assim demonstrando de que modo representam projetos ideológicos que serviram como base de afirmação e legitimação para o reino e para a nobreza: assim é que emerge de forma destacada a figura do Prior do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira — pai de Nun’Álvares, elevando a linhagem do Condestável que desempenharia um papel fundamental no estabelecimento da Dinastia de Avis.
Aljubarrota (1385) e as vozes que fundam a lembrança, assinado pela organizadora do volume — o único entre os textos a não abordar um evento imediatamente associado à Reconquista — encerra uma instigante tentativa de abordar a batalha de Aljubarrota a partir de quatro crônicas medievais: as de Pero Lopez de Ayala, Fernão Lopes, Jean Froissart e a anônima Crónica do Condestabre. Confrontando esses pontos de vista, percebe a autora como o evento é lido de modos contrastantes, a partir de interesses diversos: se Pero Lopez de Ayala e Fernão Lopes “percebem o evento, sobretudo, pelo viés régio que sustenta o discurso”, no caso de Jean Froissart, embora haja espaço para discursos de exortação de D. João I, há maior atenção aos atores e circunstâncias do acontecimento — o que inclui detalhes úteis para uma reconstituição do embate; já a Crónica do Condestabre se dedica “a evidenciar uma excepcionalidade, não um evento”: excepcionalidade representada, naturalmente, pelo próprio Nun’Álvares Pereira, o cavaleiro-santo, saudado como “novo Galaaz”. Marcella Guimarães, desse modo, revela como a cronística medieval se articulava com interesses políticos, o que determinava diferentes focos e modos narrativos.
Proposta similar ocorre em Tomada de Ceuta: uma Batalha em fim de época, de Daniel Augusto Arpelau Orta — precocemente falecido, que cursava o doutorado quando produziu o texto que integra a obra. Encerrando o livro, o texto trata de um embate que, conquanto opondo cristãos a muçulmanos, assim prolongando a mentalidade cruzadística, de outro lado já sinaliza o futuro projeto expansionista. Confrontando o modo como a batalha é relatada em fontes como o Livro dos Arautos, obra quatrocentista de autoria desconhecida, a Crónica da Tomada de Ceuta de Gomes Eanes de Zurara e o Livro da Guerra de Ceuta de Mateus de Pisano, logra Orta investigar como os diversos autores realizaram a tarefa de justificar e preservar o episódio desde uma perspectiva político-religiosa.
Como já anuncia o seu título, Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas medievais trata de episódios bélicos e das narrativas que os perenizaram, o que faculta questionamentos que dizem respeito à própria natureza do fazer histórico: em que medida episódios pretéritos podem ser reconstituídos a partir das fontes que deles tratam, considerando-se sua relação com elementos ideológicos, políticos e religiosos? Se as palavras só nos permitem especular sobre o que vivenciaram aqueles que tomaram armas e se enfrentaram nos campos do passado, é certo que nossas experiências contemporâneas muito podem dever às conseqüências desses embates — ou ao modo como elas foram pensadas por cronistas e historiadores.