“Às vezes, demora a vida para descobrir o que se herda.” A frase dita em um dos momentos iniciais do romance No fundo do oceano, os animais invisíveis é síntese de tudo o que o leitor precisa saber a respeito dessa história. Os quatro parágrafos do Prelúdio mapeiam o percurso do livro até seu fim, mas é fato que ali, diante da porta de entrada para a história do protagonista Pedro Naves, eles parecem ressoar como pistas, sem termos a exata dimensão do que vamos encontrar adiante.
O romance traz uma narrativa que trafega inicialmente por referências simbolistas, beirando o insólito, até chegar a mais recente luta armada do Brasil, pondo em funcionamento uma metáfora poderosa usada por Umberto Eco: o texto como bosque. Em suas famosas conferências Norton, apresentadas na Universidade Harvard e publicadas no Brasil no volume Seis passeios pelo bosque da ficção (1994), Eco usa uma alegoria, na verdade criada por Jorge Luis Borges, para sublinhar uma ideia bastante simples: a de que o texto, assim como o bosque, é “um jardim de caminhos que se bifurcam”, ainda que conte com trilhas bem definidas. A parte mais importante dessa metáfora está naquilo que figura fora do texto, no caso, o leitor. Assim, entender o texto como um bosque é também evocar a presença do leitor como sujeito ativo do ato de leitura, já que é ele quem define qual atalho seguir.
No fundo do oceano, os animais invisíveis me permite lembrar da metáfora do bosque, porque oferece, propositadamente, uma duplicação de estradas que, em dado momento, voltam a se conectar. Ao final do romance, observa-se que cada peça tem seu devido lugar, os personagens que cruzam e formam Pedro Naves, a cidade de ordem e progresso e a vila Esperancinha. Mesmo quando a leitura sugere um excesso da autoria ou um esforço demasiado para introduzir mais temas, distanciando-se do seu ponto inicial, é na linha de chegada que percebemos o sentido. E assim como sentencia Eco, o leitor precisa de atenção ao adentrar o bosque de Deak. É necessário vigília permanente no percurso de leitura.
Porque o romance oferece muitos caminhos, exigindo uma leitura compromissada, opto por comentar o entroncamento mais visível, nem por isso menos importante, o da forma literária com a temática. É dessa junção que se levantam a história do personagem Pedro Naves e dos seus companheiros da Guerrilha do Araguaia, deflagrada em abril de 1972, durante o governo militar de Emílio Garrastazu Médici, e debelada em 1975. Pelos olhos de Pedro, passamos de um país rural, autossustentável e conectado com dimensões não humanas da vida do planeta ao país da luta revolucionária, tomado pelas paixões sociais e políticas, e cuja história até hoje é superficialmente conhecida. A agonia permanente do narrador é bem marcada em três fases, embora narradas de modo não linear — a vida no campo, a ida à cidade e a guerrilha. E assim o romance alude ao mesmo tempo a um passado não elaborado do país e a um grito urgente dos povos do campo e das florestas.
Experimentações da forma
A consciência das escolhas editoriais e da autoria, quando percebida, acrescenta doses de informação, mostra gostos do autor, delata inclusive seu repertório de leitura. No caso de Anita Deak, a citação de Jorge de Lima como epígrafe do seu romance permite que se compreenda um certo percurso formal que margeia o texto. O trecho em questão é extraído do poema Anunciação e encontro de Mira-Celi, escrito em 1943 e publicado em 1950. Lima, que não figura entre os modernistas mais alardeados, tem sua obra marcada por certa influência do parnasianismo, do simbolismo, chegando a ser apontado como um autor com experiências surrealistas.
A admiração de Deak desliza da epígrafe para a narrativa, sobretudo na primeira parte do livro — quando Pedro Naves conta sua história na fazenda dos pais. As sinestesias, por exemplo, conformam a memória do narrador e assim, entre idas e vindas narrativas, acompanhamos a infância tão próxima da terra, as presenças de Anahí e a velha índia, personagens que transitam entre o real e o imaginado, a experiência tátil no contato com seres das águas e da terra em lugar da racionalidade da língua, e a relação com o irmão caçula Ernesto, cujo nascimento deflagra uma espécie de mudança de estação do romance.
A montagem como estratégia que rompe a sequência horizontal do texto ganha sofisticação no decorrer do desenvolvimento narrativo. Desde seus momentos iniciais, a autora oferece detalhes que ajudam a verticalizar a leitura e assim o romance ganha tônus enquanto seu protagonista amadurece. O desafio do leitor talvez seja manter-se atento e flexível para as mudanças de rumo, desconfiado de que não se trata simplesmente de um romance de formação ou político ou de realismo fantástico que flerta com algumas doses do modernismo da geração de 1945. É perfeitamente possível compreender o livro a partir dessas chaves, sem abrir mão, no entanto, das tomadas de decisão da autora ao não repetir fórmulas e demarcar o lugar da obra no contemporâneo.
História mal contada
Muito além de um percurso de leitura da autora, deve-se reconhecer ainda as experimentações da escrita ao fazer uso de vocabulário indígena, explorar apurado conhecimento sobre animais e espécies de plantas, além das referências à história do Brasil. Em tempos em que parte da produção contemporânea se dedica à expansão das formas literárias tradicionais ou tem a narrativa ancorada em primeira pessoa como autoficção, Deak não faz malabarismos estéticos para seguir tendências. Recorre, sim, à hibridação de formatos adotados, tais como anotações, cartas, diário e documentos oficiais, como quem tenta disparar a memória coletiva a partir de uma perspectiva individual e tendo um narrador estrategicamente posicionado.
Uma hipótese é que as experimentações da forma engendradas nesse romance busquem atestar o real, no caso, o que foi a Guerrilha do Araguaia ou um recorte da Ditadura, sem se deter exclusivamente à tradição do realismo. Se for este o caso, trata-se de uma manobra de grande importância em um momento em que vemos militares e o presidente da República referindo-se à Ditadura Militar como uma “revolução”, comemorando o 31 de março, provavelmente a data mais assombrosa da nossa ditadura, e negando a tortura e o desaparecimento de centenas de pessoas. E acrescento: no Bico do Papagaio, na divisa entre os estados do Pará, Maranhão e atual Tocantins, um dos cenários do romance, a ordem era não deixar nenhum dos 69 integrantes do Partido Comunista do Brasil vivo. Mesmo com a Comissão da Verdade, a Guerrilha do Araguaia segue como um capítulo pouco conhecido da nossa história, em parte pelo silêncio e pela censura do período em que ocorreu.
O indiscutível valor histórico ou o apelo realista à memória da Guerrilha, no entanto, não devem ser tomados como pontos altos do romance. Em vez disso, o livro oferece uma outra visão sobre homens e mulheres que lutaram no Araguaia ao guiar o leitor pelo mundo íntimo de Pedro, humanizando-o muito antes da luta revolucionária, mostrando seus amores, seus sonhos desde tenra idade, sua conexão com os encantados e a espiritualidade. É a terra quem batiza Pedro e o torna apto a viver clandestinamente na floresta. O deslocamento de um evento político para uma dimensão mais pessoal dos personagens, a partir da complexidade de suas subjetividades, é o que dispara o interesse de leitura e provoca no leitor o desejo de encontrar-se com um passado mal contado da nossa história.