Literatura de esquerda não é um livro sobre política, sobre política partidária, sobre antagonismos onde proliferam ódios e donos das verdades, mas um relato de um escritor argentino sobre determinados aspectos da literatura argentina, inclusive o político. Quando uma resenha começa com uma advertência, problemas se anunciam. Por razões óbvias, você encontrará a seguir impressões latu sensu sobre o referido trabalho de Damián Tabarovsky. Nessas poucas linhas, você percebe traços do mea culpa e, não satisfeito, tratarei de ampliar. Desnecessário alertar que o trabalho não aborda a literatura de autores preocupados com justiça social, uma literatura humanista disposta a denunciar injustiças e falar pelos sem voz. Desnecessário, pois os argentinos, assim como nós, não estão preocupados com esse aspecto. Enquanto isso, reina o silêncio no país das panelas dos patos. O que importa, para nós e para eles, é o mercado. Nesse momento, caro leitor, coloque no mesmo saco autores e 99% dos editores. Exagerei? Cite, tem todo tempo para pesquisar, um autor brasileiro em cuja obra se perceba claramente, como você poderá comprovar na obra de Fausto Wolff, o cunho social, sociológico que seja, ou um mero três por quatro da injustiça, da miséria ou da miséria da justiça. Um, cite um. Muito mais legítima essa busca do que ainda discutirmos o que é direita e o que é esquerda. O poder a quase todos iguala.
Você deve ter se perguntado a razão para a advertência acima, ressaltar que Literatura de esquerda não aborda a literatura produzida por escritores de esquerda. Não disse escritores argentinos pelo simples fato de o ponto alto do trabalho de Damián ser o ensaio Perder o juízo, em que aborda a literatura de Flaubert.
Um título atesta determinadas convicções ou levanta suspeitas. Aqui a suspeita tem nome: mercado; sobrenome: despertar atenção.
Paira ao longo da obra essa preocupação do autor pela apropriação do termo “esquerda”, e justifica num dos ensaios no qual afirma que “a literatura de esquerda não remete àquela realizada por escritores de esquerda, que passaram pela esquerda, ou que ainda se dizem de esquerda”, pois a maior parte dessa literatura é conservadora. E acrescento; o conservadorismo literário só resiste e encontra acolhida em sociedades conservadoras.
O fato de o trabalho não abordar produtos de autores de esquerda, não implica não ser ideológico, visto que o trabalho de Damián reflete uma realidade, melhor dizendo uma outra realidade que extrapola o círculo da literatura.
Transparece em Literatura de esquerda o autor, o escritor argentino como um instrumento de produção. Em se tratando de instrumento, deve desempenhar uma função. Damián se refere a seus compatriotas escritores como instrumentos repetindo ações sem a menor reflexão, logo sem nenhuma possibilidade de contestação ou mesmo mudança. A literatura argentina contemporânea está fadada ao retrocesso, paralisada, a academia e o cânone à frente, o deus mercado cerca as laterais. O autor transformado em signo ideológico. Deparamos com um instrumento que não se adequa à criação artística, pois, conforme Dámian, são orientados pelo farol burocrático do conto (introdução – desenvolvimento – desenlace).
Temática gasta
Literatura de esquerda foi publicado em 2004 pela Beatriz Viterbo Editora, na Argentina, chegou ao Brasil no ano passado, mais de uma década a defasagem, mesmo assim esta resenha trata a obra no tempo presente, apesar de a temática ser extremamente gasta — o que é vanguarda, a necessidade da vanguarda, mercado, academia, conservadorismo, literatura de massa, etc. Excetuando o desprezo do autor pelo mercado e pela academia, pouco resta em Literatura de esquerda, talvez o fim, ou a inutilidade da literatura argentina contemporânea.
A crítica ao mercado e à academia não pressupõe a implosão de ambos os espaços, mas a busca de outras zonas discursivas, de efeitos políticos impensados, de escritas imprevisíveis. Pressupõe algo além do realmente existente.
Espero que, mais de uma década transcorrida, esse algo além do realmente existente tenha sido identificado e alcançado.
Chego ao ponto alto do livro, o ensaio sobre a escrita de Flaubert. Vale ter suportado as noventa páginas. Faz com que o leitor esqueça todo o deserto, toda a desolação que condena a literatura argentina à prisão perpétua sob o olhar dos carcereiros Borges e Cortázar. Diz Damián:
Flaubert ainda não é um Mallarmé, ainda não joga esse jogo insensato de escrever; não o joga, mas faz algo decisivo: funda as regras (a linguagem é o lugar onde tudo é possível).
Literatura de esquerda é um ensaio datado e um tanto obscuro e amargo, curioso talvez. E embora tenha dito nas primeiras linhas que esta seria uma análise latu sensu, não tenho medo de afirmar que a literatura argentina tem quase nada a ver com a retratada por Damián Tabarovsky.aduzido no Brasil