Sempre evitei falar de mim.
Falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
João Cabral de Melo Neto,
Há dois tipos de ficção autobiográfica.
Os franceses até inventaram o termo “autoficção” para um desses tipos, uma classificação compartimentada, no entanto, que interessa sobretudo à crítica literária. Prefiro aqui considerá-lo apenas como parte da velha e boa ficção, pura e simples. E lembrar que dele tivemos, este ano, dois exemplos admiráveis, de grande força e beleza, frutos da maestria de seus autores: O filho eterno, do Cristovão Tezza, e De mim já nem se lembra, do Luiz Ruffato, este último fazendo parte da interessante coleção Primeira Pessoa, criada por Heloísa Prieto para a editora Moderna.
O outro tipo de ficção autobiográfica, no entanto, o perigoso, faz parte de um paradoxo. É a doença infantil da literatura, e uma das primeiras medidas que um escritor iniciante deve tomar, mesmo antes de sequer sentar para escrever, é se vacinar contra ela.
Esse tipo de ficção — a tentação da serpente de quem começa — é muito comum e perfeitamente explicável. O escritor escreve sobre o que sabe e lhe interessa, o que provoca sua imaginação, portanto nada mais natural do que pensar em escrever sobre algo que lhe aconteceu ou que ele viu e julgou notável. Parece o caminho mais fácil, e por isso se transforma na armadilha em que os novatos caem e muitas vezes não conseguem se levantar. Não há nada mais prejudicial do que esse tipo de texto que parte da confusa floresta de um pequeno eu e nela se perde, pois dali não consegue imaginar o horizonte maior e alçar vôo. Só o escritor que domina muito bem seu ofício é capaz de transcender sua história de vida particular e transformá-la realmente em literatura, em algo que diga respeito também ao Outro. É tarefa para poucos.
Isso posto, no entanto, chegamos à segunda parte do paradoxo: mesmo devidamente vacinado contra a doença infantil, toda ficção é, em certo nível, autobiográfica. Certamente, não de maneira direta, no entanto, e sim através de múltiplas mediações sutis.
E se pensarmos bem, veremos que não poderia ser de outra forma.
A matéria-prima do escritor é a observação do homem e seu mundo, e o ponto a partir do qual ele observa não pode ser outro que não aquele onde ele está, onde sua vida o colocou. É a partir dali que ele vê, sente, observa, aprende, se inquieta, se emociona, e escreve. É a partir de sua vida — ou seja, sua biografia — que sua literatura existe.
O que parece óbvio — e o é — mas é dessas verdades que de tão ululantes podem passar despercebidas. Talvez porque a vacina contra a doença infantil às vezes funciona tão bem que muitos autores passam a ter alergia a esse tipo de colocação e achar que sua literatura vem de um sopro inexplicável e insondavelmente misterioso a que gostam de chamar de inspiração. Que a inspiração é algo misterioso, concordamos, mas se realmente existe — ela parece feita da substância dos deuses: você acredita ou não, se quiser —, o mais provável é que surja justamente das vivências específicas que mediaram o mundo para aquele escritor, e o tornaram o que ele é.
Em cada livro que qualquer autor escreve, se você quiser mesmo saber, vai encontrar a origem desse livro na vida desse escritor.
Em alguns livros, essa relação é clara; em outros, nem tanto, pois nem mesmo o escritor conhece de fato todos os entrecruzamentos que seus caminhos tomam em seu mundo subjetivo. Mas ela sempre estará presente, de um jeito ou de outro.
Os temas que o escritor escolhe, as articulações que ele faz, as metáforas que cria, tudo isso vem, através de milhões de mediações e imbricações sutis, de sua vivência, seus gostos, desgostos, seus desejos e emoções, seus interesses e escolhas, seu entendimento do mundo — sem esquecer os livros que ele leu — pois é disso que um texto literário é feito, dos caminhos que seu autor percorreu e do que ele viu e entendeu. Seu estilo vem das relações que ele estabelece de uma coisa com outra, as combinações que faz — por exemplo, da cor branca de um vestido com o céu branco que ele viu um dia. São relações que só ele pode estabelecer, porque só ele vai poder juntar isso com aquilo dessa determinada maneira, pois só ele viu aquilo daquele jeito. É a sua marca, e sua voz.
Se a vida dele tivesse sido outra, outros seriam os livros que ele escreveria. O escritor é sua vida — e dela ele não tem como fugir.