Há certo masoquismo por parte do leitor que, conhecendo a obra do francês Michel Houellebecq, insiste em lê-lo. As razões são diversas e serão abordadas ao longo desta resenha. O fato elementar, no entanto, não escapa: masoquismo. Para além disso, há, é claro, o prazer. Michel Houellebecq é um prosador consciente e consistente; como poucos, domina a técnica de elaborar um romance cuja narrativa obedece exatamente os desígnios do autor e, o que é mais importante nesse gênero, a voz do narrador. No caso específico de Houellebecq, o narrador, muitas vezes, nada mais é do que a fiel cópia e representação do autor, Michel. Em Plataforma, tido pela crítica especializada como um de seus melhores livros, isso se prova de forma bastante peculiar. Houellebecq empresta frases de efeito e polêmicas considerações para a voz de Michel, um solitário que, de repente, encontra um sentido para a vida. Grosso modo, é possível ler A possibilidade de uma ilha como uma espécie de continuação, de seqüência, uma vez que o elementar do autor está ali, evidente. Ainda assim, isso não é tudo. E vejam vocês, leitores, o porquê.
Na abertura desse texto, está escrito que existe certo masoquismo por parte dos leitores de Houellebecq. O resenhista assim escreveu e, vejam só, esqueceu-se de que nem todos os leitores conhecem com fluência a obra do autor francês. É necessário explicar, contextualizar, tratar como se deve. Então, vejamos. Houellebecq é considerado o enfant terrible das letras da terra de Baudelaire. O motivo para tal honraria deve-se, e não é preciso esconder, à sua virulência, à sua contundência, à sua abordagem um tanto crítica e cínica em excesso. Nada escapa aos olhos do autor e, por conseguinte, do narrador. Nesse sentido, cumpre dizer que seus personagens centrais trazem como elementos principais um olhar crítico e enviesado; desafiador e cínico; contundente e blasé. Para não restar dúvida sobre o dourar ou não a pílula, é interessante observar que Houellebecq lida com temas do momento. Em Extensão do domínio da luta, por exemplo, a história gira em torno da sociedade de consumo e suas relações para com a vida sexual e amorosa; no já citado Plataforma, o mundo das grandes corporações, o universo do trabalho e, vá lá, o terrorismo internacional são temas pertinentes. Em A possibilidade de uma ilha, a história também traz traços desse “realismo visceral”, capaz de corroer as entranhas do leitor mais desavisado.
É a história de Daniel, um comediante misantropo, infeliz com sua condição, muito embora desfrute de um sucesso público e de certa estima por seus feitos. Nada disso, no entanto, o estimula e sua vida caminha num ritmo ensimesmado, como se a existência humana fosse um eterno enfado. E este processo seguiria o mesmo se Daniel não tivesse sido atraído por uma espécie de seita que, entre outras coisas, possibilita uma vida de prazeres carnais invejáveis, além do uso da clonagem. Está montado o argumento central. A partir daí, Houellebecq desenvolve a possibilidade de um admirável mundo novo, mas que, aos poucos, percebe não ser tão admirável assim. Afinal, os clones, como cópias imperfeitas dos seres humanos (demasiadamente humanos) mostram-se incapazes de manifestar suas sensações, seus sentimentos, algo que, se hoje em dia parece banalizado, é fruto de uma reflexão por parte de Houellebecq.
Profanação
Em outras palavras, torna-se pertinente refletir acerca dessa banalização. Ou melhor: o que levou o ser humano a sentir-se assim, tão distante e carente de seus valores, mas absolutamente eufórico diante das vantagens daquilo que todo o capitalismo pode comprar. Contudo, não será por isso que essa condição humana está nesse ponto. Os leitores têm de perdoar esse parágrafo se soar tautológico, mas é necessário enfrentar a temática, e aqui está uma eventual resposta. A distância desses valores pode estar no fato da profanação de tudo. Os marxistas diriam que “tudo que é sólido desmancha no ar”, mas a citação devida é outra: tudo que é sagrado é profanado. E, sim, existe uma profanação não somente das relações humanas, mas da própria vida, que agora se resume às relações sexuais, do mesmo modo que o dinheiro e o interesse pelo poder pautam as amizades e fazem com que o diálogo ocorra tão somente por conveniência, por status, por uma suposta humildade.
Ainda assim, a despeito dessa análise fria da proposta temática, nota-se, também, que Houellebecq tende a cair numa espécie de repetição contínua de seus temas, de suas obsessões. Assim, se é verdade que este livro funciona como uma espécie de seqüência, como está escrito nas primeiras linhas deste texto, também é verdade que essa continuação não traz nada de novo, a não ser pelo fato inusitado de um escritor, misantropo e calculadamente mal-educado, ter feito uso de uma seita polêmica para ambientar a narrativa. A isso, também, nota-se que alguns grupos críticos se apressaram em dizer que a obra de Houellebecq estava abaixo das expectativas e, portanto, o livro tinha sido um fiasco.
Uma leitura mais original (cabe dizer que o que já tinha de ser dito sobre o livro não foi, porque, curiosamente, o livro de Houellebecq foi lançado no Brasil há quase um ano e, suspeita-se, não foi resenhado “normalmente” porque o autor era francês e o Brasil tinha sido derrotado) poderia jogar luz numa espécie de lógica das personagens mais personalistas, menos altruístas. É como se o herói tivesse sido banido das narrativas, abrindo espaço tão somente para figuras demasiadamente interesseiras. Enquanto isso, nomes como Houellebecq e Coetzee exploram personagens que, aparentemente desinteressantes, demonstram não somente a fragilidade da existência humana, como também a fragmentação do indivíduo, este que, cada vez mais, depende dos outros, e quer prolongar seu tempo de vida, seja a partir de uma “vida saudável”, seja a partir de clones humanos. Um absurdo chama outro. Ao fim e ao cabo, cumpre dizer que Michel Houellebecq tem lá seus dons premonitórios. Os eventos descritos em Plataforma aconteceram à sua maneira anos depois. Se, daqui algum tempo, a sociedade ficar apta a esse tipo de reação (ou melhor, inação comportamental), ficará claro que a possibilidade de uma ilha será tão somente uma possibilidade.