Ninguém é inocente

Resenha de “Memória da pedra”, de Mauricio Lyrio
Mauricio Lyrio, autor de “Memória da pedra”
01/09/2013

Memória da pedra, de Mauricio Lyrio, é um romance que desde o início se mostra complexo. Com um narrador em terceira pessoa, a história de dois casais desenvolve-se entre idas e vindas, procurando ora apresentar o presente, ora o passado de cada um dos personagens. O foco narrativo se detém, no entanto, sobre Eduardo, o protagonista.

Um fator que traz mérito à narrativa é o distanciamento temporal. Ela se dá no início dos anos 1990, momento da história do Brasil em que acontece o impeachment do ex-presidente Collor, a que o livro faz referência. Mas, na verdade, não se trata de romance político nem histórico. Essa ambientação, mais ou menos vinte anos atrás, permite ao leitor analisar com menos risco atitudes e comportamentos que ficariam comprometidos caso a problemática discutida no enredo se desenrolasse nos dias de hoje.

Mas a história datada não elimina a sua universalidade. Apesar de referências a meninos de rua (um deles personagem coadjuvante) e da menção a protestos pela destituição do presidente, o que vigora é o drama interior dos personagens, seus traumas e conflitos, a violência inerente a cada um. Enfim, trata-se de um complexo romance psicológico onde, na maioria das vezes, as pessoas, de tão desesperadas, apenas procuram culpados pela própria infelicidade, esquecendo que a causa de suas tragédias pessoais encontra-se dentro de si mesmas.

Fissuras
Eduardo é professor de filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, discute seus pensadores prediletos, ministra aulas especulativas, mas sua vida particular é pontuada de desencontros. Até aí, tudo bem, pois não se trata de um livro de auto-ajuda nem é função da filosofia propor soluções àqueles que lidam com o assunto. Mas o que nos chega é alguém permeado pela hipocrisia. A literatura brasileira sempre foi plena de histórias que apresentam, em primeiro plano, personagens pertencentes a classes abastadas. Eduardo não é rico, mas sua vida de filho único, herdeiro de um imóvel na Gávea, acrescentando-se o salário de professor de universidade federal, proporciona-lhe trânsito num universo de requinte, em que há bem mais do que o necessário para se sobreviver.

Problemático nas relações afetivas, faz par com Laura, uma artista plástica extremamente insegura. Ela vê a relação com Eduardo como uma tábua de salvação, tábua esta que começa a naufragar em largo oceano (aproveitando a metáfora, já que o mar é também personagem do romance) no momento em que ele descobre um segredo seu.

Gilberto é médico, oncologista, casado com Marina, uma psicanalista irônica, que o absorve, apesar da frieza que o contato com doentes terminais lhe impõe. São amigos de Eduardo e Laura, mas quanto mais os dois casais se aproximam, tanto mais a amizade se esgarça. À primeira vista a relação dos quatro soa moderna, sem preconceitos. Saem juntos, viajam para Búzios, trocam idéias e opiniões. Não há conflito entre a visão médica de Gilberto e a filosofia, profissão de Eduardo. Mas há um ponto em que surge um nó, e ele não desata.

Aqui é necessário acompanhar não o desenrolar da história, mas estudar a criação desses personagens. Talvez o mais complexo seja Eduardo. Sua mulher, Laura, soa um tanto frágil. Não como mulher na narrativa, mas como construção do escritor. Aliás, as mulheres de Mauricio Lyrio mostram-se um tanto previsíveis. Talvez a mais bem construída, embora a que menos aparece, seja Gorda, uma moradora de rua para quem a mobilidade é quase impossível. Com ela, a narrativa atravessa uma vereda romântica, permitindo-nos atração por esse tipo de personagem, atitude ainda possível até meados dos anos 1990.

Mas, antes de falar nessa contração narrativa, analisemos também Gilberto, o oncologista. O autor fez um bom o trabalho de pesquisa ao descrever com certa minúcia os subterrâneos da profissão do personagem. Desfilam ante nossos olhos doenças terríveis, seus nomes científicos, os sintomas, a evolução e até mesmo a descrição da fase terminal. Mas Gilberto tem a superficialidade da maioria dos médicos. Isso mesmo, muitas vezes achamos esses profissionais importantes, verdadeiros monstros do saber, mas quando se trata de relacionamento, de filosofia de vida, de entendimento sobre o humano, são verdadeiros fracassos. Portanto, a superficialidade em que está imerso Gilberto é fruto da construção bem sucedida do personagem.

A fissura na narrativa advém por meio da mencionada mulher chamada Gorda e, antes, pelo aparecimento de Romário, um menino de rua de doze anos que vende limão num semáforo na Gávea. Este personagem norteará grande parte da narrativa. Ele passa a ser não apenas companheiro do professor de filosofia, mas também o seu contraponto. O primeiro contato entre os dois é um total fracasso. O garoto pensa que Eduardo é homossexual e está em busca de um caso. Mas pouco a pouco o professor aproxima-se, estabelece contato e conquista a sua confiança. A construção do personagem é verossímil, até a linguagem do garoto mostra-se convincente. O que talvez destoe nisso tudo é o que se segue: Romário passa a morar no apartamento de Eduardo, diante de uma, a princípio, estarrecida Laura. Daí a razão da ambientação da narrativa no início dos anos 1990, porque nos dias de hoje tal atitude não seria plausível.

Artifícios
Como ensina Dostoiévski, a literatura precisa exagerar um pouco. Esta arte feita de palavras não comporta o homem comum, as situações corriqueiras do dia-a-dia, a não ser que esse mesmo homem passe a ter um papel grandioso. Por isso, o aparecimento de Romário proporciona vigor à narrativa, o que não aconteceria caso ela tivesse apenas como destaque as quatro personagens iniciais. Até mesmo a bela Anita, uma jovem bibliotecária do Instituto de Filosofia da UFRJ, soa um tanto frágil. Ou mesmo de Felipe, seu namorado estrangeiro. Romário e Gorda, que moram no teto do Túnel Velho, em Copacabana, trazem à narrativa a estranheza necessária para que o romance atinja patamares mais elevados.

Outro ponto que norteia todo o livro é a constante presença da morte. Ela já desponta através da especialidade de Gilberto, que vive às voltas com doentes terminais, e do acidente que vitimou os pais de Eduardo quando ele ainda era adolescente. Mas é no suicídio que a morte será anunciada com todas as letras, e causará a perplexidade que somente tal ato pode gerar. Já nas primeiras páginas há uma antecipação da narrativa revelando que Marina, a psicanalista, irá se suicidar. E, cá entre nós, não é todo dia que uma psicanalista se suicida.

Interessante o Rio de Janeiro com seus encantos num período de pré-acirramento da violência que se seguiria com todas as conseqüências que já conhecemos. Então, o exagero de trazer um menino de rua para dentro de casa permearia um ideal de filósofo semelhante à aposta de Pascal. Filosofia e literatura são construções de pensamentos e de artifícios. Apostas fora delas talvez produzam conseqüências nefastas, sobretudo numa época em que ninguém mais é inocente.

Memória da pedra
Mauricio Lyrio
Companhia das Letras
320 págs.
Mauricio Lyrio
Nasceu no Rio de janeiro, em 1967. É diplomata e trabalhou em Brasília, Washington, Buenos Aires, Pequim e Nova York, onde vive atualmente. Em 2010, publicou A ascensão da China como potência, pela Fundação Alexandre de Gusmão. Memória da pedra recebeu menção honrosa no prêmio SESC de Literatura 2010.
Haron Gamal

É doutor em literatura brasileira pela UFRJ e professor de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Autor dos livros Magalhães de Azeredo – série essencial (ABL) e Estrangeiros – a representação do anfíbio cultural na prosa brasileira de ficção (Ibis Libris).

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