Não. Não estou tentando lhe pregar uma peça com esse título, caro leitor. É que o contexto no qual se enquadra minha relação com o famoso crítico implica a expressão acima, mas ela deve perder seu sentido coloquial e ser compreendida em seu sentido unicamente literal. E a verdade é que nunca fui apresentado pessoalmente ao professor e crítico Wilson Martins (quem me dera). Nem sequer li algum de seus livros e dentre os inumeráveis textos que escreveu apenas passei os olhos por um ou outro aqui e acolá.
Você deve estar se perguntado por que então coloco pretensiosa exclusividade em meu contato com Wilson Martins. É porque tenho a certeza de que a forma como eu o conheço é única, ou seja, que nenhuma outra pessoa travou relações com ele da mesma maneira. Eu o conheço unicamente por meio de alguns livros que possuía.
Creio serem poucos os que levantam dúvidas quanto ao fato de que os bens materiais mais preciosos para quem trabalha com a palavra escrita, principalmente a literatura, são seus livros. E, assim como seus escritos, eles são também, de certa forma, seu legado; aquilo que deixará para a posteridade. Trata-se de uma questão de pertença e de presença. Uma biblioteca pessoal é parte constitutiva da subjetividade daquele que a possui, logo, aquele acervo de livros traz em si uma parte d’alma daquele que o constituiu. E interessante que nem sempre se trata da exclusividade das obras, já que a maioria dos livros pode ser encontrada em qualquer biblioteca pública, livraria ou sebo, mas, é justamente a integração entre elas, as escolhas e a relação do sujeito com as mesmas que fazem delas algo profundamente pessoal e absolutamente importante. Não à toa que a preocupação de muitos intelectuais quando vão se aproximando da derradeira idade é onde deixarão seus relicários livrescos a fim de mantê-los preservados. É outra forma, além dos textos e obras que publicaram, de ainda se manterem vivos, mesmo depois da morte.
Mas, voltando a falar de Wilson Martins, fui apresentado ao grande crítico por meio de alguns livros que lhe pertenceram. Segundo me contaram, grande parte dos livros que possuía foi doada ainda em vida para a Biblioteca Pública do Paraná, outra parte para uma universidade norte-americana. Mas uma pequena parte das obras que adquiriu e ganhou ao longo de sua existência ele guardou em seu gabinete de trabalho até o fim de seus dias. Destino quis então que, alguns anos depois de sua morte, coubesse a mim, um humilde servidor de uma universidade estadual paranaense, manipular, explorar, mexer e catalogar o valioso acervo.
Ainda não tenho autorização para revelar detalhes, desculpe-me. Para saciar um pouco a sua curiosidade, digo-lhe apenas que o tal acervo é o mesmo que sempre aparece em segundo plano em certas fotografias de seu dono, coadjuvante em algumas imagens registradas no final da década passada. Algumas dessas fotos são facilmente encontradas na internet (tente o google imagens).
É um acervo pequeno perto da quantidade de livros que certamente o Wilson (sim, já me considero íntimo) teve. Mas são justamente os livros (entre tantos outros que possuiu) que ele quis manter junto de si até o fim de seus dias. Eis o que torna essa biblioteca tão especial, ao menos para mim.
Dos livros, conto-lhe que muitos têm dedicatórias dos autores, organizadores e editores. Uma grande parte traz anotações nas margens, realizadas durante as leituras. A maioria fala sobre literatura brasileira, sendo poucas as traduções e os editados fora do Brasil. Há também muitos dicionários, dos mais incontáveis estilos e características, essenciais para o trabalho de qualquer intelectual em uma época sem internet.
O leitor
Voltando ao assunto do início deste texto, foi devido ao meu contato com os livros dessa biblioteca que conheci Wilson Martins. Como nunca me encontrei com ele, ou li suas obras, digo-lhe que o único Wilson que conheço é um leitor.
Ele era um leitor extremamente disciplinado em suas anotações, de forma que na maioria dos livros encontramos apenas três marcas: asteriscos, grifos e pontos de interrogação. Nada mais; e, considerando que são anos de leitura, ou seja, que provavelmente os livros grifados foram lidos ao longo de décadas, temos então que o mesmo método e disciplina de anotação o acompanharam por muito, mas muito tempo mesmo.
Por vezes, tenho a impressão que Wilson era um leitor meio nervoso, irritado por ter que aplicar um canetaço. Ah é, esqueci de lhe contar, ele fazia todas as suas anotações às margens das páginas com caneta vermelha, parecia até um professor que, sem dó e piedade, corrigia avaliações de alunos impertinentes e indisciplinados. Afirmo-lhe que ele demonstrava certa irritabilidade porque percebo que ele não gostava de riscar seus livros. Parece-me que ele procurava marcar ao mínimo suas relíquias, fazendo isso somente quando achava ser extremamente necessário, de forma que muito dos livros contém apenas uma ou duas marcas. Ou seja, ele evitava ao máximo riscá-los, mas não se furtava a fazê-lo quando estava diante de um caso em que isso se fazia imprescindível. Tenho assim a certeza de que quando um ou outro livro aparece mais rabiscado, algo nele realmente despertou o interesse de nosso ilustre leitor.
As evidências me levam a crer que os pontos de interrogação serviam não para marcar dúvidas, mas possíveis erros ou coisas que desagradavam. Quando um livro está cheio de pontos de interrogação, certamente Wilson não o aprovou. Dou-lhe um exemplo: o Dicionário histórico-biográfico do estado do Paraná. Nele há o verbete “Wilson Martins — Martins, Wilson, crítico literário, ensaísta”, o qual está assinalado com muitos pontos de interrogação, cada um indicando um erro biográfico. Um deles, para melhor exemplificar, foi rabiscado na lateral do nome de sua principal obra, que aparece no dicionário como História da inteligência no Brasil (sic!). Fico até imaginando com que indignação Wilson leu os erros em sua biografia e, talvez balançando a cabeça em sinal de desaprovação, riscou com sua caneta vermelha o traço interrogativo.
Asteriscos
Outra impressão que tenho é que ele utilizava os asteriscos para marcar o que lhe agradava. Nos livros de poesia, por exemplo, os asteriscos aparecem esporadicamente em uma ou outra página. Lendo mais atentamente, percebi que eles marcavam justamente os poemas de melhor qualidade em todo o conjunto da obra. Creio que na prosa, essa marca teve não só essa função, mas também a de assinalar o que lhe chamava a atenção ou gostaria de lembrar depois. Um exemplo disso é que no livro intitulado A retirada de Laguna, do Visconde de Taunay — trata-se de um diário de guerra feito durante um dos eventos mais difíceis para as tropas brasileiras na Guerra do Paraguai, e não de um livro sobre literatura —, ele traçou um grande asterisco no parágrafo no qual o autor faz referência aos “romances de Fenimore Cooper”. A indicação poderia ter vários propósitos. Talvez fosse um autor que Wilson não conhecesse ainda. Talvez ele tivesse interesse pelas leituras e influências de Visconde de Taunay, já que o parágrafo em questão mostra claramente que o mesmo era leitor de Cooper. Enfim, as possibilidades são múltiplas.
Analisando friamente o leitor que conheci, digo que Wilson Martins era um chato. Atento, foi um corretor/revisor incorrigível. Aquele tipo de sujeito que não se controla em estar o tempo todo corrigindo as pessoas quando elas cometem gafes em sua frente. Ele simplesmente não se continha e distribuía seus símbolos escarlates a cada deslize ou acerto do autor, mesmo que isso lhe custasse um exemplar todo rabiscado (à caneta!). Era como se estivesse dizendo ao autor “está vendo? Está errado! Eu vi e estou corrigindo” ou “realmente, isso ficou muito bom, merece uma estrelinha”. Era sua forma de conversar com o livro, uma forma meio ranzinza, convenhamos.
Mas é claro que estou falando do Wilson que conheci e como o conheci. Algumas pessoas que mantiveram contato pessoal com ele dizem que ele era um crítico muito sincero e que inclusive isso lhe causou certos problemas no meio literário. Muitos se sentiram ofendidos por críticas sinceras escritas por ele, como se a crítica tivesse sido dirigida ao próprio autor e não à obra. Outros nem sequer o conheceram, mas julgaram-no mal devido à sinceridade de seus textos. Em uma entrevista, um autor que foi seu amigo disse: “Quando você encontrava o crítico, você descobria justamente esse outro lado. Extremamente afetivo, com um bom humor fantástico e com uma abertura ao diálogo que era uma coisa que você não pressupunha a partir dos textos dele”.
Talvez minha percepção esteja sendo injusta quanto ao humano e crítico Wilson Martins. Devo pedir então que me perdoem aqueles que o conheceram pessoalmente e leram seus textos, mas eu só posso falar do Wilson que eu conheci, o leitor, o único com o qual realmente travei contato e o qual tenho a certeza de que ninguém conhece como eu o conheço.