Nikos Kazantzákis e a obsessão pela liberdade

A relação de inconformidade com a morte e a ânsia pela independência da terra natal sempre guiaram a vida de um dos maiores autores do século 20
01/12/2007

Há 50 anos, em 26 de outubro de 1957, num hospital de Friburgo, na Alemanha, morria Nikos Kazantzákis, não apenas um dos grandes escritores do século 20, mas um dos maiores espíritos do seu tempo. Morria, aos 74 anos, estupidamente, de gripe asiática, quando convalescia de uma gravíssima crise oriunda de uma vacinação em viagem ao Extremo Oriente. Já na sua História da literatura ocidental, que começou a ser publicada nessa mesma década, Otto Maria Carpeaux utilizava a exata expressão: “um dos maiores espíritos do século 20”. Se, em tese, a grandeza espiritual poderia estar ausente em grandes criadores de outras artes, nos grandes autores literários, pela própria natureza de seu instrumento condenados a tratar dos altos temas humanos, isso parece mais difícil, mas a verdade é que, sob esse aspecto, a posição do autor de Ascese se situa num píncaro dificilmente alcançável.

Nikos Kazantzákis nasceu a 18 de fevereiro de 1883 em Candia, cidade central da ilha de Creta, a atual Heráklion. Seu pai seria o inspirador do inesquecível personagem Capitão Mikalis, protagonista-título do seu maior romance, geralmente traduzido como A liberdade ou a morte, divisa dos revolucionários cretenses contra a dominação turca. O que marcou toda a visão do mundo do jovem grego, e marcou a fogo, foi a luta de Creta contra o Império Otomano, com a sua infindável seqüência de rebeliões e de massacres. “Massacre” foi a palavra mais profundamente acolhida no coração do jovem Nikos em todos os seus anos de formação. Enquanto a Grécia continental se libertara dos turcos desde 1829, Creta, esse navio entre o Ocidente e o Oriente, como mais de uma vez a descreveu seu grande filho, permanecia sob a opressão otomana, com o seu povo nulamente vocacionado a suportar opressão alguma.

A esse arraigado sentimento da liberdade, essa qualidade negativa, que só percebemos pela sua ausência, como a saúde, uniu Kazantzákis, muito jovem ainda, um senso agudo do que podemos chamar de ancestralidade, uma anterioridade visceral que sempre o levou a perceber-se como um elo efêmero no terrível fluxo de matéria e espírito que é a espécie humana.

Se a obsessão pela liberdade é obviamente oriunda da situação de sua Creta natal, outros dois instantes primordiais na gênese da sua visão trágica, e do heroísmo trágico que dela adviria, foram a impressão de perda da centralidade do homem ainda na infância, ao compreender, com Copérnico e Darwin, a posição periférica da Terra entre os outros astros, essa visão da noite estrelada que sempre o fascinou, e a baixa animalidade de onde viemos, idéia que depois será de grande importância na criação de Ascese.

O episódio mais decisivo de todos, no entanto, e o mais antigo, talvez seja o seu encontro com a morte, narrado em suas memórias, ao ser levado por um tio, aos seis anos de idade, para assistir à exumação de uma jovem vizinha de que se lembrava muito carinhosamente. Perante a sua reação espantosa e desesperada, seu tio afirmou que quando crescesse, ele saberia compreender tudo aquilo, ao que acrescentou o escritor: “Nunca o soube. Cresci, envelheci e nunca o soube”.

Mas se a relação de inconformidade com a morte permaneceu como um dos pilares desse espírito profundamente místico, a ânsia pela independência da terra natal alcançou seu apaziguamento no dia 9 de dezembro de 1898, apaziguamento que lhe permitiu mais livremente ampliá-la para uma ânsia libertária de toda a humanidade. A descrição, em suas memórias, da reação do seu pai ao dia secularmente aguardado é antológica, na seqüência da descrição do estado geral da ilha após o fim da grande espera que não pode deixar de nos lembrar o nosso tão próximo Sebastianismo.

Bem antes disso, durante a insurreição cretense de 1889, toda a sua família se refugiara no Pireu, tal como entre 1897 e 1899 se refugiaria na ilha de Naxos, época que guardará uma aura paradisíaca para o futuro escritor.

De volta à sua cidade natal, lá ele continuou seus estudos, de 1899 a 1902. Nesse ano transfere-se para Atenas, onde, em 1906, se forma em Direito, e publica sua primeira novela, O lírio e a serpente. Em outubro, finalmente, chega a um momento decisivo em sua biografia, partindo para Paris, para estudar filosofia. Na capital francesa segue os célebres cursos de Henri Bergson em 1908 e 1909. Em 1909 publica uma tragédia em um ato intitulada Comédia, na revista Krétiké Stoa, com um assunto praticamente idêntico ao de Huis-Clos que Sartre publicará décadas depois. Ainda que possa parecer absurda uma possível influência, vale lembrar que um dos maiores amigos de Kazantzákis, Albert Schweitzer, era primo de Sartre.

Em outubro de 1911 Kazantzákis se casa com Galatéia Alexiou, romancista cretense como ele, e se transfere para Atenas. Os quatro anos seguintes serão para ele de grandes trabalhos de tradução, com títulos fundamentais da literatura e do pensamento ocidentais. Em 1912 se alista como voluntário nas Guerras Balcânicas, mas não chega a participar do conflito. Em 1914, ano em que estoura a guerra, conhece o poeta Angelos Sikelianos, com o qual passa quarenta dias no Monte Athos, meditando sobre o destino. No ano seguinte os dois amigos viajarão exaustivamente através da Grécia, período durante o qual Kazantzákis compõe as tragédias Ulisses e Nicéforos Focas.

Crise e angústia
Esse é o momento em que Kazantzákis sofre uma espécie de crise tolstoiana, uma dúvida sobre ser ou não a arte a resposta para as necessidades prementes da humanidade em crise, em vez de alguma forma de uma nova religião, ou de uma nova mitologia. Oriundo de um mundo arcaico, Kazantzákis nunca ocultou a angústia com que via a civilização de massa e a industrialização explosiva condenarem ao desaparecimento alguns valores insubstituíveis desse mesmo mundo arcaico. Poucos intelectuais do século 20 foram críticos como ele da ideologia do progresso, antevendo em suas viagens contradições civilizatórias que só começaram a se tornar visíveis muito recentemente. Na verdade, seu feroz amor pelo homem, o sopro profético do seu verbo, a sua violência de vidente não são de maneira alguma “modernas”, assim como a meta claramente soteriológica, salvífica, que domina toda a sua obra, a mais distante de qualquer forma de diletantismo ou de arte pela arte que se possa imaginar, antes uma pura, inesgotável e desesperada busca de sentido para o absurdo. O grego Kazantzákis está mais perto de seus ancestrais da Antiguidade do que normalmente se imagina.

O ano de 1917, ainda em plena Guerra, é um dos mais decisivos de sua vida. Abandonando a literatura pela ação, em resposta à crise por que passava — o que em pouco se revelará desastroso —, resolve explorar uma mina de linhita em Magna, na Moréia, para onde parte acompanhado de certo Giórgis Zorba, um macedônio dotado de um vitalismo a toda prova e de uma espécie de sabedoria infusa que ele transformará, um quarto de século depois, num dos grandes personagens romanescos do século 20, e sobre o qual voltaremos a falar. Em outubro, após o fiasco completo de sua atividade mineradora, parte para a Suíça, e em seguida em peregrinação pelos locais marcantes da vida de Nietzsche, cuja descoberta lhe causara um impacto acima de qualquer descrição. Para Kazantzákis, Nietzsche se revelara o grande mártir, o Dioniso crucificado, cujo destino fora expor cruamente aos homens o abismo de desespero que se abre sob os seus pés, o abismo antevisto por Buda, o criador do sistema mais terrivelmente pessimista na história da especulação humana, e trazido para o Ocidente por Schopenhauer. Retornando da tentativa de ação para os braços da arte, ele cumpria um caminho confessado em um parágrafo de seu texto Em que creio: “Experimentei diversos caminhos para encontrar aquele da minha libertação: o do amor, o da busca filosófica, o da curiosidade científica, ainda o da regeneração social. Por fim me engajei naquele, árduo e solitário, da poesia”.

Em 1919 Kazantzákis retorna à Grécia, e prossegue suas viagens pelo país. Em maio é nomeado diretor-geral do Ministério de Assistência Social. Entre julho e agosto chefia uma missão de repatriamento de gregos do Cáucaso, conseguindo salvar 150 mil refugiados. Em novembro de 1920, com a derrota do Partido Liberal, deixa o Ministério e parte para Paris, Alemanha, Áustria e Itália. Em 1922 passa a morar em Viena, onde esboça a tragédia Buda. Nessa época lhe acontece o estranho episódio de uma súbita e horrível deformação da face, no momento em que ia encontrar-se com uma mulher, encontro que, a seu ver, daria início a um relacionamento desastroso. Submete-se então a um tratamento psicanalítico com o Dr. Wilhelm Steckel, discípulo de Freud, que considera o seu caso um exemplo típico de somatização histérica, conhecido como a rara “doença dos ascetas”. Esse episódio reaparecerá em sua obra, tal qual, com o personagem Manólios, de O Cristo recrucificado.

Em 1923 Kazantzákis termina a composição de Ascese, ou Salvatores Dei, os Salvadores de Deus. Essa obra, cuja melhor caracterização literária seria a de poema em prosa filosófico, é ao mesmo tempo a síntese e a matriz geradora de toda a sua obra posterior, a sua coluna vertebral, mais ou menos como o insuperável poema platonizante Sôbolos rios que vão o é para a lírica de Camões. Escrito num tom doutrinário, imperativo, quase catequista, Ascese permanece como um dos textos mais fascinantes produzidos pela riquíssima literatura do século 20. Seu final, que não pode, no entanto, resumir a sua riqueza de conteúdo, espécie de profissão de fé do heroísmo trágico, é das palavras mais perturbadoras de nossa época.

Mas a verdade final de Kazantzákis, no fundo, não é a de Ascese. Acima dessa convicção racional, sobre a qual se construía a sua visão trágica, havia a convicção não racional, ou mais que racional, do grande místico que ele foi, o mesmo que afirmou um dia: “Sei, sem dúvida, que isso não é verdadeiro, mas sei também que existe uma coisa mais verdadeira que a verdade”. No verão de 1923, ele visita a casa natal de Nietzsche. Sua mulher se une a ele em Berlim, no fim do ano.

Em 1924 Kazantzákis visita Nápoles, Roma e Assis, terra do santo que foi um dos seus heróis de sempre. Durante esse périplo pela Itália se encontra com Marinetti. De volta à Grécia, e já em processo de divórcio com Galatéia, conhece, em agosto, Helena Samios, sua futura mulher. No fim do ano, à beira do mar, perto de Candia, inicia a redação da sua obra máxima, que terá outros seis estados até a forma definitiva, Odisséia.

No ano de 1925, continuando a redação da epopéia, Kazantzákis viaja longamente pela Grécia continental e insular. O momento central do ano será, no entanto, a sua partida, a 13 de outubro, para Moscou, como correspondente estrangeiro. Sempre dominado pela sua visão algo budista da eterna destruição e reconstrução de todas as coisas que regem tanto o ritmo cósmico quanto o humano, a sua curiosidade pela inédita experiência da revolução soviética é imensa, assim como a sua atração pela figura de Lênin como o mais radical condutor de almas de sua época, fascinação que nunca abandonará. Sem nunca ter sido comunista, fato aliás impossível, levando-se em conta a sua feroz independência de caráter, Kazantzákis observa tudo com uma mistura de simpatia, esperança e espanto, percebendo de forma quase clarividente o caráter inequivocamente autocrático do partido, as perseguições e as tragédias que daí adviriam, mas reconhecendo algo da necessidade de tudo isso após o caldeirão de violências da guerra civil. Como sempre, o que o fascinava não era essa ou aquela ideologia, mas o irrefreável esforço humano em direção a alguma coisa indefinida que ele descreverá como poucos em Ascese.

Longe do comunismo
A aura de comunista, que sempre envolveu Kazantzákis, não resiste a um exame mais atento de sua obra, talvez especialmente de seus livros de viagens, subproduto biográfico desse viajante compulsivo, um dos intelectuais de sua época mais próximos do lema terenciano do “Sou humano, nada do que é humano me é estranho”. Em sua viagem ao Japão, após andar de riquixá em Kioto — transporte que, segundo ele, humilhava quem puxava e quem era puxado, e no qual sem dúvida só embarcou para perceber isso —escreveu Kazantzákis:

Qual o nosso dever?, perguntava-me eu sem tirar os olhos de suas costas ensopadas de suor. Uma única coisa: contribuir para que uma tarefa de coolie seja cumprida por aquele que não pode aspirar a nada melhor. Estabelecer, mesmo momentaneamente, uma hierarquia exata e justa e não a de hoje, injusta e inumana, onde aqueles que deviam ser coolies circulam a cavalo e comandam.

A justiça não significa que todos sejam senhores ou escravos. A justiça significa que o ser de natureza servil cumpra as funções de servidor e o ser de natureza senhorial funções de senhor. Pois eu creio firmemente na desigualdade dos seres. E se hoje, no mundo em que vivemos, uma alma honesta execra naturalmente a organização social, não é por existirem senhores e escravos, mas porque os senhores atuais perderam as virtudes nobres dos senhores de outrora e se transformaram em escravos de si próprios.

Um texto como esse o aproximaria mais de uma idéia de república aristocrática, como teorizava seu contemporâneo muitas vezes julgado até fascista Fernando Pessoa, do que de qualquer forma de comunismo. A verdade é que o próprio aristocratismo de um Fernando Pessoa só o podia afastar do extremo plebeísmo boçal de todos os fascismos, assim como o desespero de Kazantzákis, um desespero quase dostoievskiano, com o sofrimento material da humanidade o afastaria naturalmente de qualquer república aristocrática.

Mais estranho ainda a uma ideologia comunista é o seguinte parágrafo admirável, do mesmo livro de viagens:

Bendita seja a prodigalidade, aquilo que nós chamamos luxo, supérfluo, extravagância. Ser civilizado significa considerar o luxo como uma necessidade, ultrapassar o animal e não poder se contentar com a comida, a bebida, o sono e o sexo. No instante em que o bípede sem penas aspira ao supérfluo, ele começa a se transformar num ser humano. Todo bem que este mundo possui, tudo que foi salvo dos formigueiros humanos é um luxo: uma pintura, uma flor esculpida, um canto, uma idéia que se eleva acima do espírito mediano. O luxo é a maior necessidade do homem superior. Aquilo que ultrapassa seu coração, isso é o seu verdadeiro coração.

Podemos imaginar como esses dois trechos repercutiriam em qualquer célula do partido comunista pelo mundo. No campo religioso, a controvérsia é a mesma, entre um Kazantzákis ateu e o extremo oposto disso. Tais são as contradições inerentes à riqueza de qualquer grande espírito cioso de sua liberdade. Na verdade, como o maior dos seus mestres, dos seus “condutores de almas”, a maior fixação de sua vida, ele vinha não para trazer a paz, mas a espada. Não é à toa que a sua biografia escrita por sua viúva intitulou-se O dissidente.

No ano seguinte, 1926, Kazantzákis retorna a Atenas, onde se instala com Helena. Em agosto parte para a Espanha, onde entrevista Primo de Rivera. Em outubro, agora outra vez na Itália, entrevista Mussolini. Conhece nessa época o jovem escritor cretense Pandélis Prevelákis, que se tornará o seu maior amigo e colaborador.

Em 1927 Kazantzákis parte para o Egito e o Monte Sinai, viagem que lhe renderá um outro livro. A partir de maio se instala numa casinha em Egina, completamente isolado na criação de sua Odisséia, cuja primeira versão consegue ali terminar. A 20 de outubro parte novamente para Moscou, convidado para as festas de dez anos da Revolução. Conhece nessa ocasião o contista romeno Panait Strati. Após uma longa viagem pelo Cáucaso e o Mar Negro, Kazantzákis e Stratis chegam a Atenas no primeiro dia de 1928. Tendo tomado parte num comício, os dois são processados, o que resulta para ambos na proibição de qualquer atividade política. Em abril retornam à Rússia, onde Kazantzákis se aproxima do cinema soviético em seu apogeu, escrevendo um roteiro, O lenço vermelho. Os dois amigos se encontram com Gorki nesse ano. A partir de 1929 vive durante onze meses na Tchecoslováquia com Helena, e escreve, diretamente em francês, Toda-Raba, seu primeiro romance, com uma forma muito próxima àquela do roteiro cinematográfico. A base desse romance é exatamente a experiência das festas internacionais pelo primeiro decênio da revolução. Entre personagens de todas as procedências, reais ou fictícios, Toda-Raba, um régulo africano, é o mais culturalmente afastado daquela experiência socioeconômica extrema. O final do romance, dentro do mausoléu de Lênin, antecipa o processo que Kazantzákis usará, anos depois, no impressionante final de A última tentação.

O ano de 1930 o encontra a compor uma longa História da literatura russa. Em 1932 morrem seu pai e sua mãe, a perda da última sendo-lhe especialmente dolorosa. Nesse mesmo ano termina a terceira versão da sua Odisséia, que terá sete redações até o seu estado final, composta de 33.333 versos de dezessete sílabas, muito próximos dos hexâmetros homéricos, espalhados por um manuscrito de 1984 páginas. Trata-se da maior epopéia do Ocidente, e do maior monumento da poesia grega moderna. Nela, Kazantzákis retoma as aventuras de Odisseu exatamente onde Homero parara, e o acompanha até sua morte nos gelos do Pólo Sul. É impossível resumir, no espaço deste texto, a riqueza inesgotável dessa obra, síntese final do niilismo místico, do heroísmo trágico de Kazantzákis, delineado primeiramente em Ascese, do seu “olhar cretense” entre o Oriente e o Ocidente, entre o élan vital bergsoniano e o abismo de Nietzsche.

Dedica-se então a grandes trabalhos a quatro mãos com Prevelákis, ao mesmo tempo em que traduz a Divina comédia integralmente, com métrica e rima, em 45 dias. Em outubro retorna a Madri, onde se encontra com Juan Ramón Jimenez, Benavente e Valle-Inclán. Nos dois anos seguintes, 1933 e 1934, entrega-se à composição dos seus Cantos ou Elegias em terza rima, dedicados aos condutores de almas que lhe serviram de exemplo, Gêngis Khan, Yannis Psycharis — o grande líder na luta pela adoção do demótico como língua literária da Grécia, a que Kazantzákis aderiu entusiasticamente —, Santa Teresa, Lênin, Dom Quixote, Maomé, Nietzsche, Buda, Moisés.

1935 é o ano de sua grande viagem à China e ao Japão, que resultará num livro de viagens com notáveis antevisões sobre o destino dos dois países, e também com uma impressão penosa, especialmente no caso chinês, daquele Extremo Oriente que parecia longe de despertar. Se em 1936 Kazantzákis escreve O jardim dos rochedos, espécie de adaptação romanesca, parcialmente em forma de diário, do conteúdo de Ascese, reutilizando-o integralmente — tal como sete anos antes escrevera Toda-Raba —, será a partir da década de 1940 que o gênero dominará a sua obra imensa, outorgando-lhe uma fama internacional que a sua poesia, como sempre acontece, não lhe propiciara. Kazantzákis é, de fato, um romancista da completa maturidade, quando não da velhice.

Obra célebre
Entre 1941 e 1942 termina a tragédia Buda e inicia a redação de Alexis Zorba. Invadida a Grécia pelo Eixo, Kazantzákis abandona Egina, onde estava isolado, e segue para Atenas, pensando em partir para uma ação direta na resistência grega. Hospeda-se com Pandílis Prevelákis, e reencontra Angelos Sikelianos. Traduz nessa ocasião a Ilíada para o grego moderno. Em 1943 termina a sua obra mais célebre, a Vida e obra de Alexis Zorba, brilhante desde o título, geralmente traduzida como Zorba, o grego, livro sem paralelo, o único romance picaresco-trágico da literatura ocidental. Quase um livro de memórias, sob muitos aspectos, nele Kazantzákis buscou imortalizar a figura do Giórgis Zorba que conhecera em 1917. Já outra guerra ensangüentava a Europa, quando lhe chegou o telegrama comunicando a morte do personagem extraordinário, que depois correria o mundo no filme de Michael Cacoyánnis, telegrama que deflagrou em seu espírito o desejo de não deixar desaparecer no esquecimento da morte aquele que considerava “a alma mais vasta, o corpo mais resistente, o grito mais livre que conheci em toda a minha vida…”

Era o retorno da sensação que tivera na infância em relação ao seu avô materno: “Este avô foi o primeiro a me fazer desejar não morrer, para que meus mortos não morressem. Desde então muitos dos que amei morreram, eles desceram não na terra, mas na minha memória, e eu hoje sei que enquanto eu viver eles viverão também”. Do mesmo modo que reconhecia perfeitamente as suas armas para essa missão: “Ah!… As palavras! As palavras! Para mim, pobre de mim, não existe outra salvação. Não tenho em meu poder mais do que vinte seis soldadinhos de chumbo, as vinte e seis letras do alfabeto: eu decretarei a mobilização, eu levantarei um exército, eu lutarei contra a morte”.

Em 1950 escreve O Cristo recrucificado, obra-prima indiscutível, com personagens imortais como o Agá de Lyncovrissi, o grupo dos notáveis da cidade, o Pope intolerante, o místico Manólios, o padre Photis ou o mascate Yannakos e seu mais do que amado burro Youssof. Tal romance teve, sem dúvida, importância na gênese de O pagador de promessas, de Dias Gomes: Yannakos sendo, claramente, uma das matrizes para Zé do Burro, assim como o Pope de Lyncovrissi o é para o pároco cruel da igreja de Santa Bárbara.

Da mesma época é a criação de A liberdade ou a morte, ou Capitão Mikalis, no título original, o maior romance de Kazantzákis, dos maiores de todo o século 20, pela perfeição e complexidade estrutural, pela impressionante grandeza épica, pela variedade de personagens como poucos narradores já alcançaram. Misturando o épico, o amoroso e o costumbrista de maneira genial, mais ou menos como Tasso, em sua Jerusalém libertada, conseguiu tecer uma perfeita tapeçaria com o bélico, o amatório e o religioso, trata-se do seu grande romance cretense, a epopéia das incessantes revoluções da ilha mítica contra o opressor. Os personagens são criações inesquecíveis, desde a figura feroz do protagonista, inspirado no pai do autor e com o seu mesmo nome, até as de Nuri Bey, de sua amante circassiana, do centenário pai de Mikalis, do seu sobrinho Kosmas, do seu filho, obviamente um alter ego do pequeno Kazantzákis, de Ventusos, do Capitão Polyxinguis, de Bertoldo, do alucinado místico muçulmano Effendine, cuja única alegria era, de seis em seis meses, embebedar-se de vinho, comer porco e xingar Maomé na casa do capitão, obrigando-o a ameaçá-lo de morte caso não fizesse tudo isto, para assim diminuir a enormidade do seu pecado, o mesmo personagem que só conseguia atravessar as ruas de Megalo Kastro — por onde à noite São Minas, depois de descer do seu ícone, passeava a cavalo — se alguém o carregasse, pois as via como terríveis rios de fogo.

De 1951 é a composição desse romance violentamente expressionista que é A última tentação. A descrição do esforço titânico do lado humano do Messias para alcançar o seu lado divino foi espantosamente mal compreendida, dando margem a toda sorte de ataques contra o autor, que acabara de produzir, no entanto, uma das mais impressionantes demonstrações literárias de amor ao Cristo de que se tem notícia. O final de A última tentação se resolve num crescendo de angústia quase insuportável, sem dúvida um dos finais de narrativa mais poderosos de nossa época. Talvez coubesse ao Cristo de Kazantzákis, o Cristo lutador que se eleva do carpinteiro fazedor de cruzes ao Deus crucificado, repetir a si próprio a proposição central de Ascese: “Não é Deus que nos salvará; somos nós que salvaremos Deus, combatendo, criando, transformando a matéria em espírito”. Curiosamente, o livro que se segue é O pobre de Assis, o mais lírico, o mais puro dos romances de Kazantzákis, como o seu próprio protagonista o foi. É nesse ano que o autor descobre a leucemia com que passará a conviver, ao lado dos velhos problemas cutâneos, provavelmente de origem psicossomática, de que recorrentemente sofreu, sem falar de alguns problemas oftalmológicos mais ou menos sérios.

Em 1956 inicia a redação das suas memórias, a magistral Carta a el Greco, na qual, como um soldado que entregasse o relatório de sua missão a um superior, ao seu general, ele se confessa ao seu grande conterrâneo do século 16, em sua Toledo adotiva. Indicado ao prêmio Nobel por Thomas Mann e Albert Schweitzer, Kazantzákis perde o prêmio, por um voto, para Albert Camus, de 44 anos de idade, trinta anos mais novo do que ele, após pesado lobby da diplomacia grega contra a outorga do prêmio. O próprio Camus, que no seu Le mythe de Sisyphe expôs algumas idéias próximas às de Kazantzákis, afirmaria mais tarde, em carta a Helena, ser Nikos, que faleceria poucas semanas após a entrega do prêmio, cem vezes mais merecedor da honraria do que ele. De fato, rótulos de herético ou de comunista acompanharam os últimos anos de suas relações com o país natal e a igreja ortodoxa, sem esquecer da Católica, que o condenou veementemente. Seu último romance, Os fratricidas, ou Os irmãos inimigos, publicado postumamente, descreve de maneira terrível a guerra civil grega após o fim da ocupação nazista, um conflito sangrento entre comunistas e nacionalistas. Houve quem falasse de um último Kazantzákis desesperado, por causa do final desse grande romance, mas nada nele se afasta da visão do mundo reconhecível nas obras anteriores do autor.

Sobre o período de sua última doença escreveu a sua sempre fiel Helena:

Nikos Kazantzákis pediu a Deus dez anos adicionais de vida, dez anos a mais para completar sua obra — para dizer o que tinha de dizer e ‘esvaziar-se’. Queria que, quando a morte viesse, encontrasse somente um monte de ossos. Dez anos seriam suficientes, ou assim ele imaginava. Mas Kazantzákis não era do tipo que podia ‘esvaziar-se’ assim facilmente. Longe de se sentir velho e cansado aos setenta e quatro anos, considerava-se rejuvenescido mesmo após a sua última trágica aventura, a da vacinação.

E assim termina sua esposa a narração de seus últimos dias:

De olhos negros como breu, redondos na penumbra, as lágrimas brotando, costumava me dizer: — tenho vontade de fazer o que diz Bergson: ir até a esquina e, estendendo as mãos, começar a implorar aos passantes: ‘Esmolas, irmãos! Quinze minutos de cada uma de suas vidas. Oh, por pouco tempo, o bastante para terminar meu trabalho. Depois, que venha Caronte.’

E Caronte veio — maldito seja! — ceifando Nikos na primeira flor de sua juventude! Sim, caro leitor, não ria. Porque este era o instante para que tudo florescesse e frutificasse. Tudo o que iniciou, este homem que você tanto amou e que tanto o amou, seu Nikos Kazantzákis.

O féretro de Kazantzákis chegou a Atenas, por via terrestre, no dia 3 de novembro. No dia seguinte, de avião, foi transportado a Heráklion, a antiga Candia de sua infância e juventude, e exposto à veneração pública na catedral da cidade. No dia 5, uma enorme multidão acompanhou o corpo — a quem o patriarca ortodoxo teve a indignidade de negar sepultura em terra consagrada, por causa das pretensas heresias do escritor e do homem — ao Bastião Martinengo, nas grandes muralhas venezianas que dominam a cidade, defronte do mar de Creta. Jovens carregavam seus livros como se fossem ícones, e velhos capitães cretenses, com o lenço em torno da testa e o punhal na cintura — homens que provavelmente nunca deviam ter lido seus livros dos quais pareciam ter saído — carregaram seu caixão. Sobre seu túmulo se alça uma cruz de madeira com a única inscrição “Nikos Kazantzákis, 1883-1957”, mas em frente da cruz, numa pedra, pode-se ler seu epitáfio, tão parecido com o lema de Isabel D’Este e síntese do seu heroísmo trágico, quase um haicai, a forma japonesa que ele tanto amava:

Den elpizo tipota.
Den fovumai tipota.
Eimai eleftheros.

Não temo nada,
Não espero nada,
Sou livre!

Alexei Bueno

O poeta Alexei Bueno nasceu no Rio de Janeiro, em 26 de abril de 1963. Publicou, entre outros livros, As escadas da torre, Poemas gregos, A chama inextinguível e Entusiasmo.

Rascunho