Neste mundo não há cercas

David Grossman retrata a insegurança e a formação da identidade durante a infância e a adolescência
Ilustração: David Grossman Por Fábio Abreu
24/08/2015

Nem toda infância é doce. Crescer também é duvidar de si mesmo, buscar a própria identidade, enfrentar a família. Na ficção de David Grossman, o crescimento chega com a perturbação e a insegurança. Esse lado obscuro do amadurecimento está em Garoto zigue-zague, publicado originalmente em 1994, e O livro da gramática interior, de 1991. Como protagonistas, os dois romances têm meninos prestes a completar o bar mitzvah — chegada da maturidade religiosa para os garotos no judaísmo, aos 13 anos.

Grossman está entre os principais escritores e ativistas políticos de Israel. Integra uma geração de intelectuais que vê nas histórias o poder de discutir alternativas para o conflito. Mas a qualidade de seus livros ultrapassa a ideia de uma literatura engajada. Especificamente essas duas obras do autor abordam os temas políticos de maneira mais sutil do que outras. Sua maior força está na descrição de dramas familiares e individuais.

Em Garoto zigue-zague, conhecemos Nono Feierberg. Uma semana antes de seu bar mitzvah, o pai e a madrasta o enviam de Jerusalém até Haifa para passar dois dias com o tio Shmuel e ouvir alguns conselhos sobre a nova fase da vida. Mas a viagem não segue o trajeto esperado por Nono. No trem, ele conhece Felix Glick, que com muita confusão vai ajudá-lo a entender sua verdadeira história.

Mesmo relatando acontecimentos do passado — Nono nos conta sobre eles 27 anos depois, já aos 40 —, o narrador prioriza o ponto de vista do menino que está crescendo. A perspectiva infantil rende belas passagens, principalmente no convívio de Nono com os amigos e na descrição do comportamento dele, que tem uma vontade irresistível de desobedecer a qualquer ordem.

Em determinada fase da infância, Nono quer se mostrar corajoso e desafiador para ganhar o respeito dos amigos. Na cena mais emblemática, ele lidera uma brincadeira de mau gosto que sua turma decide fazer com a vaca de um vizinho, e passa dos limites. A personalidade de Nono se resume ao leitor nesse momento. Mais uma vez, o desejo de fazer o que é proibido o consome. Em outra ocasião, ele compete obsessivamente com um amigo para ver quem sabe mais sobre touradas — o nome correto das ferramentas, dos participantes, qualquer conhecimento extra que possa torná-lo especial.

Nono sabe muito pouco a respeito da mãe, Zohara, que morreu quando ele era bebê. O pai se recusa a falar sobre ela, e o suspense criado pelo autor fortalece o mito. Mesmo antes de o menino conhecer essa história por completo, ela dita boa parte de seu comportamento. Nono herdou de Zohara a sensação de deslocamento, o desvario, a desobediência de quem considera o mundo inseguro demais para si e para os outros, características que atordoaram a mãe desde a infância.

Certa vez na classe, no meio da aula, de repente se pôs de pé, e com o olhar dilacerado, como se tivesse saltado de um pesadelo, gritou: “Não há cerca! Não há cerca!”. E quando a professora tentou acalmá-la, abraçá-la, descobrir o que a tinha deixado tão assustada, Zohara se libertou de seus braços e começou a correr pela sala como um bicho assustado, gritando com voz estridente que não há cerca, em torno do mundo não há cerca, as pessoas podem cair.

Para Nono, as cercas que faltam ao redor do mundo, que poderiam mantê-lo seguro, são a sua própria história. A memória dos antepassados dá mais firmeza aos seus passos. Na aventura perigosa que vive com Felix, acaba amadurecendo. Já o amadurecimento de Aharon Kleinfeld, protagonista de O livro da gramática interior, é muito mais conturbado. Diferente do grupo de amigos, que já sentia os primeiros sinais da puberdade, Aharon permanece com o tipo físico dos dez anos de idade. Mas o garoto pequeno, de aparência indefesa, vive com uma turbulência dentro de si.

Grande parte dessa insatisfação pessoal é fruto do ambiente familiar. Os pais problemáticos de Aharon são personagens fundamentais. O capítulo que descreve a cerimônia de bar mitzvah talvez seja o melhor do livro. Nele se concentra a essência da crise da família Kleinfeld: o comportamento obsessivo da mãe, que deixa o filho ainda mais retraído ao obrigá-lo a usar um sapato com salto para parecer mais alto, o desconforto do convívio social.

Feminino
Grossman dá o protagonismo aos meninos. Mas as mulheres são definitivas na formação deles. Em Garoto zigue-zague esse fenômeno tem uma peculiaridade: a pessoa mais influente do romance, Zohara, já morreu. Não convive com os personagens. Mesmo assim, está presente do início ao fim, sua lembrança tem influência sobre eles. Nono também é encantado pela madrasta Gabi, que ajuda a desvendar sua identidade — com uma participação talvez maior do que o leitor imagina no início do livro. Gabi e Nono têm algo em comum: a necessidade de conquistar a qualquer preço a admiração das pessoas que amam. E de defendê-las.

“Aquilo que aos seus olhos são limitações, eu considero vantagens!”, ela declarava para a professora, investindo como uma cobra protegendo suas cobrinhas: “Sim, e podemos chamá-las de vantagens de, por exemplo, uma alma de artista! Sim! Talvez nem todo mundo se encaixe exatamente nessa estrutura escolar quadrada! Pois há garotos redondos, minha senhora, e há garotos gordinhos, e há garotos com formato de, digamos, triângulo, por que não?, e há —”, Gabi baixava a voz, erguia a mão bem alto no ar, como fazia a famosa atriz Lola Ciperola na peça Casa de bonecas, e sussurrava baixinho:“E há garotos zigue-zague!”

Em O livro da gramática interior, a mãe neurótica e invasiva de Aharon impede o seu amadurecimento. Em alguns momentos, só de olhá-lo nos olhos ela adivinha o que Aharon está sentindo ou planejando. A sensação é de vigilância constante. Essa postura compulsiva pode incomodar o leitor, mas não deixa de ser compreendida como resultado da vida amarga que a mulher leva em Israel.

Ficou de pé na cozinha, de avental, apoiada no mármore, cuja face manchada, rachada, se configurara ao longo dos anos como o espelho fiel, nada lisonjeiro, de sua vida.

Quando a vizinha Edna Blum contrata o pai de Aharon para derrubar algumas paredes de seu apartamento, a mãe convoca os dois filhos, Aharon e Iochi, para acompanhar o trabalho de perto e inibir qualquer relação mais íntima entre o marido e a vizinha. Essas incursões deprimentes na casa de Edna mostram como a família está dominada pelas fixações da mãe.

Já o pai, que entra em uma espécie de transe durante o trabalho na excêntrica reforma do apartamento, só volta ao seu estado normal quando precisa cuidar da própria mãe, outro personagem feminino com nenhuma voz na família e bastante influência na vida de Aharon. Idosa e debilitada, vovó Lili mal se lembra de quem ele é, mas o autor dá pistas de uma proximidade anterior com o neto. Durante o período em que ela está internada no hospital, o menino que só pensava em seus problemas de crescimento de repente se concentra nos cuidados com a avó e reflete sobre a velhice.

Narração
A maneira de contar escolhida por Grossman é agitada, principalmente em O livro da gramática interior. A voz do narrador em terceira pessoa, os diálogos, as reflexões dos personagens sobre si mesmos e sobre os outros, tudo acontece ao mesmo tempo, com quase nenhuma distinção formal.

A impressão é de que cada frase quer esgotar em si toda a ideia que começou. Os parágrafos são longos, com pouca pontuação e muita velocidade. Em alguns momentos, o narrador conta pequenas histórias dentro do enredo. E como se tivesse pouco tempo para contá-las, acelera o ritmo, para o leitor não se distrair, não tirar o foco do desfecho principal. Outra marca presente na obra é o uso de expressões do hebraico e do iídiche, que não chegam a prejudicar a leitura. No final do livro, há um glossário com cerca de 80 expressões dessas línguas utilizadas na história.

Identidade
Os livros têm fortes dramas familiares, mas Grossman discute principalmente a formação da individualidade. Garoto zigue-zague tem vários momentos em que Nono se pergunta “quem sou eu?”. Ele vive cercado por essa dúvida. Deseja saber quanto da sua personalidade é herança do pai, da mãe, ou se é algo único, que ele mesmo inventou. E quanto mais conhece o próprio passado, com o auxílio de Felix, mais segurança Nono ganha para crescer.

Tudo bem. Que ele conte. Eu queria ouvir, e não queria. Já não sabia o que queria. A cada palavra dele a minha vida se transformava completamente. Minha vida ficou estranha para mim. Vejam, eu mesmo já estou me transformando. Quando ele terminar de contar, vou precisar começar a me conhecer de novo. Nono Feierberg, muito prazer. Ou talvez não seja tanto prazer assim.

O que para Nono é aventura e descoberta, para Aharon é angústia. Há o agravante da puberdade tardia, que o colocava em uma posição incômoda em relação aos colegas, mas mesmo seu amadurecimento pessoal era feito de dor. Se a vida ao redor não oferecia possibilidade de calmaria, ele buscava dentro de si, em uma gramática interior, alguma solução.

Ele não gostava do próprio nome. Aharon, Aharon, Aharon, pronunciou várias vezes para si mesmo, centrado e concentrado, um nome difícil, como o som daquele o, que o envolvia como um pesado casaco, herança de um velho parente, Aharon, Aharon, e sentia como num leve latejar sua individualidade, viva, o chamava de lá, a brilhar na profundeza desse nome obscuro, como a pupila de um olho lampejante, como o pingo de um i rindo e se escondendo dentro de um o, mas aos poucos, à medida que tornava a pronunciar o nome, a pequena individualidade se afastava (…), e chegou um momento em que Aharon disse Aharon e nada se moveu em seu coração, e então ele parou.

Os livros apresentam uma juventude mais conflituosa do que lúdica — embora Garoto zigue-zague seja muito menos angustiante para o leitor, e tenha o tom de aventura juvenil. Grossman cria protagonistas com dilemas tão profundos quanto dos adultos. Meninos que têm medo de ficar desamparados em meio a toda confusão que é crescer. Como um desejo de se esconder até que a adolescência passe.

Garoto zigue-zague

David Grossman
Trad.: George Schlesinger
Companhia das Letras
417 págs.
O livro da gramática interior
David Grossman
Trad.: Paulo Geiger
Companhia das Letras
535 págs.
David Grossman
Nasceu em Jerusalém, em 25 de janeiro de 1954. É um dos principais escritores de Israel e, ao lado de Amós Oz, defensor de uma saída pacífica para o conflito entre Israel e a Palestina. Formou-se em Filosofia e Teatro. Também escreveu livros como Alguém para correr comigo, Mel de leão, Ver: amor, Desvario, Duelo, Fora de tempo, o infantil Boa-noite, girafa, e A mulher foge — história de uma mãe que percorre Israel para não receber em casa a notícia da morte do filho na Guerra do Líbano. O livro da gramática interior foi adaptado para o cinema por Nir Bergman e em 2010 ganhou o prêmio Sakura do Festival Internacional de Cinema de Tóquio. Garoto zigue-zague virou filme em 2012.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho