Sempre que a saudade cresce, te invento inteira e te tenho. Caminhas a meu lado no amanhecer da floresta, como faz tempo caminhávamos desde as areias de Punta de Tralca, por cujo penhasco subiam as mãos de espuma do Pacífico, até as pedras da Isla Negra. Pedras que um dia de repente deixaram de nos entregar os seus segredos. Porque já estavam todos guardados nas fotos do querido Antonio Quintana para teu livro Arte de Pájaros. Era quando falávamos de nossa infância, tu recordando o céu de Parral, teu Liceo de Temuco, onde escreveste os teus primeiros versos, eu fazendo alarde de minhas intimidades com a arte de empinar papagaio, contando que meu avô cego me ensinou a ver as estrelas, tu que teu avô paterno era de punho tembleque e que seu copo tremia quando tomava o vinho.
O copo de vinho da memória te advertia obediência à recomendação inglesa de que never before twelve. Então me perguntavas se eu tinha algum óbice (palavra que até hoje só ouvi de ti) em tomar um tragullo no bar que construíste fronteiro ao oceano e em cujas vigas de carvalho fizeste gravar os nomes dos teus poetas amados.
Contemplas silencioso as águas grandes do meu rio e relembro os teus versos:
Amazonas, capital das sílabas da água
Pai patriarca das fecundações.
Ouves o silêncio sonoro do amanhecer, do qual faz parte a alegria da multidão dos seus pássaros, alguns dos quais já aprenderam o teu nome. Mais ligeiro que todos, o japiim, pássaro preto de bico encarnado, que imita o canto de todos os seres vivos que cantam. Me perguntas se é da família do pássaro-sofrê, que te deu de presente o nosso Jorge Amado, com quem porventura conversas agora em idioma que desconhecemos, se é que se permite o diálogo entre os que já atravessaram o tempo. Comigo, sim, conversas, quando te chamo, tua voz não mudou. A eternidade não pôde contigo.
Na transparência radiosa do espaço cruza uma garça. Asa de paz, comentas, acompanhando o vôo de asas imóveis. Profundos, teus olhos sobem até as frondes mais altas das castanheiras. O ar é fino. As nuvens não caminham. Felizes com a tua chegada (são nuvens minhas amigas), vão tomando forma de bailarinas, sentem vontade de dançar. Sabem que chegaste porque te amo. Chamo o vento geral, que chega cantando para bailar na altura com as palmas mais delicadas. Pousas o olhar numa esplêndida borboleta azul de prata. Me dizes que ela te lembra a que tinhas e ainda tens na tua casa da Isla Negra, hoje o museu mais visitado do Chile. Recordas que eu cantava a modinha de Manuel Bandeira e Jayme Ovalle:
Vai, voa azulão
Companheiro, vai,
Vai ver minha ingrata,
diz que sem ela o sertão
não é mais sertão…
Não és mais Paulinho, nem Pablo, nem Pablo Neruda, o ser que és, que eras, que serás. Sem que me desse conta, enquanto subíamos a bela escada de paud’arco, te transformavas numa entidade da água filha da Cordilheira. Olhas longamente a água, entras nas suas funduras. És o próprio rio, feito de tempo e eternidade.
Sinto tua presença imensa e me lembro do querido Jorge Sanhueza, que sempre que ouvia alguém dizer o advérbio, ele gritava a parte final do teu verso do Poema 20: más inmensa sin ella! Me penetras com teus olhos cheios de palavras:
— As cores de Nemésio Antunez, os pássaros de Mário Toral para minha Arte de Pájaros, eles vieram recolhê-los nos crepúsculos da noite e dentro da luz deste pedaço da nossa América que deu de presente um ramo do seu milagre verde ao nosso Tongoy.
Neste instante fugaz da eternidade, sei que Paulinho não está somente aqui comigo. Sabem as nuvens e os ventos, as cordilheiras e os mares, os homens com sua esperança, os plenos poderes do amor, o canto geral da vida, este Pablo Neruda a quem devo algumas das mais sublimes alegrias da convivência humana, está vivo no coração de todos os homens e mulheres que vivem e aprendem a viver com os seus poemas. Vivo e cantando, para servir à vida.
Uma palavra vibra em minha memória: Tongoy. Meus neurônios fatigados me devolvem límpidos versos de circunstância (acaso todo poema não nasce de uma circunstância?) que me deixaste com tua perene tinta verde “um amanhecer do Encuentro Del Hombre” inesquecível realização do lindo poeta Gonzalo Rojas na Universidad de Concepción, 1962, que reuniu mais de 150 participantes de tantos cantos do mundo. Querias que eu conhecesse o pedaço verde mais antigo de tua pátria. Naquela manhã me tocava falar sobre a vida do meu povo. Não pude te acompanhar. Das mãos de Linnus Pauling, que acabara de merecer o Nobel de Química Molecular, recebo uma página cheia de tercetos. Um deles suavemente me dói:
Que amigo, que compañero
Que no puede decir voy
Con usteds a Tongoy
Quero te abraçar. Mas tua figura querida desapareceu. Em seu lugar deixaste a canção suave de teu riso. Umas nuvens rosadas se escurecem, se fazem uma única nuvem grande como a longa sombra do Noturno do poeta Silva e deixam cair a água celeste torrencial. Te redescubro na beira do rio, com o mesmo traje, a mesma boina da primeira vez que nos encontramos. Quero gritar para que te abrigues. Como se me ouvisse, te voltas para mim e te despedes:
— Yo soy de Temuco, donde nace la lluvia.
Com tua grande mão me saúdas largamente e desapareces na espessura da floresta.
Viva a livraria São José
Primeiro foi a sua Poesia que me entrou na vida como “Pedro por su casa”, expressão popular chilena que Paulinho adorava inverter para “Como casa por su Pedro”. Na mão de cada verso me chegava um ramo orvalhado de uma espécie de felicidade que eu não conhecia. Não, não foram versos do Poema 20, o seu poema mais célebre. Foram do Farewell:
Amo el amor de los marineros
que besan y se van.
En cada puerto una mujer espera,
Los marineros besan y se van.
Un dia se acuestan con la muerte
En el lecho del mar…
Autografava, bons anos depois, o meu livro Vento Geral, na Livraria São José do velho mercador de livros Carlos Ribeiro, no Rio de Janeiro, quando o nosso Jorge Amado me toca o braço e me diz quase em segredo: — Olha quem está aqui na tua festa!
Foi o meu primeiro encontro com a pessoa dotada, como poucas, do dom da amizade e de um mágico esplendor da convivência humana, festiva ou silenciosa, com quem vivi momentos luminosos, que me acompanharão enquanto viva. Ainda que, como a vida deixou, nem todos guardem o sabor da alegria. Por isso os homens somos o que somos.
Neruda vinha de Valparaiso a caminho de Paris, o barco fez escala no Rio, o poeta no meu coração. Saímos para jantar. Pablo, Jorge, Di Cavalcanti, Irineu Garcia (quem editou Neruda em disco), Paulo Mendes Campos (quem viria a ser o magnífico tradutor de Canto Geral) e este caboclo que transforma em palavras resíduos de um tempo que nunca passa. Dos seis, cinco já foram estudar a geologia dos campos santos. A metáfora é do velho Machado, quem me dera! Só fiquei eu para lembrar que Neruda pediu de entrada coquetel de camarões, depois camarões à baiana. Durante os tragos, Jorge lhe contou que eu acabara de ser designado pelo Itamaraty adido cultural do Brasil no Chile. Nas despedidas, o vate virou-se para mim:
— Compañerito, búsqueme cuando llegue a Santiago de Chile.
O tempo que nunca passa
Seguem vivos os tempos, os anos, os dias e as noites de nossa convivência, iniciada dias depois de minha chegada a Santiago e, sem que nos déssemos conta, como árvore que cresce para cumprir seu destino, dela foi nascendo, com frutos e flores, o milagre de uma amizade entranhável.
Meu leitor já sabe, desde a primeira linha, que não cuido de elaborar um ensaio crítico sobre a colossal obra poética de Neruda. Não é meu ofício e a verdade é que não morro de amores pelas páginas de teoria literária. A cada dia entendo-as menos. E me pergunto: se os rapazes sabem tanto de Poesia, porque eles mesmos não escrevem poemas perfeitos? Meu querido companheiro Geir Campos me contou que um dia ouviu de Neruda em Paris: “Quien sabe, hace. Quien no sabe, enseña”.
Recitávamos poemas sempre que nos reuníamos nos inesquecíveis fins de semana em Isla Negra que iam de sexta pela noite até a manhã de segunda-feira. Eram indispensáveis, acho que vou contar, ao fim de cada refeição. Líamos em voz alta, os dois, páginas de Faulkner, de Conrad. Gostava de me pedir que lesse poemas seus traduzidos por mim, queria ouvir como ficavam vestidos com a música do meu povo. Me encantava acompanhá-lo a seus recitais em universidades, teatros, sindicatos, nas reuniões de camponeses, auditórios sempre exíguos para abrigar o mundo de gente que chegava. Minha memória retém o timbre, a cadência, as modulações da voz de Neruda lendo os seus poemas. Voz anasalada, chegava às vezes a tardar num único timbre. E tinha um tremendo poder de domínio sobre seu auditório. Ninguém murmurava, ninguém se movia, o silêncio era como uma pedra sideral (desconfio que esta pedra sideral me está chegando da litania de Alturas de Macchu Picchu), mas ao final de cada poema a pedra se pulverizava em milhares de estrelas vibrantes.
Recordo contente. Com incessante vigilância para impedir que a imaginação entre por uma nesga da memória e a transforme em, de novo o Machado, “velha cidade de traições”. Como sucede com freqüência nas bio ou autobiografias. Conto, a propósito, que, numa tarde antiga, na sala do meu primeiro e querido editor José Olympio, levei meu abraço a Pedro Nava, que vinha de publicar seu quinto volume de memórias. “Eu não sei mais, Thiago — me disse Nava — se estou contando o que vivi ou o que gostaria de ter vivido.”
Volto aos recitais de Neruda. A certo recital. Nunca o esquecerei (mientras viva, como dizem os bolivianos do altiplano), está conservado intacto, impregnado da grandeza da condição humana.
Era o ano de 62. O Poeta lia os seus poemas para mineiros do carvão numa das minas de Lota, em Concepción. Os trabalhadores o escutavam graves, silenciosos, fascinados pelas palavras que saíam de sua boca como pássaros, mãos solidárias. Foi quando vi no rosto solene de um velho mineiro o brilho estrelado de uma lágrima grossa, que deslizava pó em sua face encardida, como um estandarte de luz.
A poesia na mesa
Meu primeiro encontro com Neruda no Chile foi na Sebastiana, nome de sua casa erguida nas alturas de um monte de Valparaiso. Era uma noite de festa. Sempre era festa quando o Poeta recebia seus amigos. E suas amigas também, todas sob o olhar vigilante de Matilde. Naquela noite conheci pessoas notáveis. Ainda que muitas já tenham atravessado o grande rio, todas seguem fazendo parte de minha vida.
Carlos e Silvia belíssima Cellis Altamirano. O romancista Rubén Azocar, cuja irmã Afonsina foi o grande amor de sua adolescência. Carlos e Maraia Martner, a princesa das pedras. Jorge Sanhueza, o nerudiano por excelência, curador da Biblioteca e da coleção de caracóis que Pablo doou à Universidade do Chile. Orlando Oyarzum, companheiro de juventude quando chegou a Santiago. Homero Arce, sonetista admirável, amigo e secretário do poeta durante dezenas de anos. Volodia Teitelboim, íntimo companheiro de muitos anos, autêntico homem de letras, romancista, ensaísta, autor da considerada a melhor biografia de Neruda, e senador da República. A romancista Teresa Hamel, a poeta Sara Vial, Santiago Aguirre, Carlos Vassalo, embaixador do Chile na Itália quando Pablo chefiava a embaixada em Paris. O imenso Manuel Solimano, homem que era puro coração, o pintor do Chile, Nemésio Antunez, pessoa cheia de luz. Salvador e Tencha Allende, sabedoria e bondade. A divina Violeta Parra, minha irmãzinha.
Seus poetas íntimos Angel Cruchaga, Juvêncio Valle. Fico feliz lembrando de Gabriel Valdez, amigo de mesa do Poeta, chanceler de Frei, que em 65 veio ao Brasil e pediu ao ditador que me tirasse do cárcere. Acabo de contar que Neruda me fez entrar pela ampla porta da alma chilena.
Estamos na mesa redonda giratória. Puras especialidades chilenas. Empanadas, pastel de choclo, chester defumado, caldillo de congrio, longanizas de Temuco, picorocos de Puerto Mont, osteones de La Serena. Generoso, o tinto Santa Carolina cinco estrelas, o branco Dueña Isidora para os erizos del mar. (Não se imaginava que um dia ao Chile haveria de chegar Rotshild cheio de cepas novas, mudaria os santos tonéis de carvalho por outros de aço inoxidável para produzir e exportar os caríssimos vinhos emergentes.)
Chegou a hora do brindis. Conquanto fosse redonda a mesa, o lugar do vate ganhava a categoria de cabeceira. Neruda ergueu sua taça, disse que era tradição da casa o brinde em três partes, mas naquela noite haveria um só. O jantar era dedicado ao poeta que o rio Amazonas e seus pássaros enviavam ao Chile.
A bondade de suas palavras pousou no fundo azul do meu peito. A mesa silenciara. Olhei então a fundura do olhar do Poeta e a frase me saiu feliz:
— Gracias, Paulinho. La noche está estrellada y la ternura chilena está conmigo.
O Poeta anunciava o trou normand, dedal de aguardente chilena. Era o sinal para que a Poesia entrasse. Chegava e pedia disciplina, amor e método. (Em todos os inumeráveis jantares que participei na Isla ou em Valparaiso, o nosso repertório foi sempre o mesmo.) Quevedo abria o recital. Neruda dizia o primeiro decassílabo: Cerrar podrá mis ojos la postrera; e a mesa repetia em coro: Cerrar podrá mis ojos la postrera.
O terceto final era recitado inteiro e por todas as vozes:
Su cuerpo dejarán, no su cuidado,
Serán ceniza, mas tendrán sentido,
Polvo serán, mas polvo enamorado.
Do mesmo jeito se recitava o Garcilaso. A única diferença é que todos recitavam juntos só os dois versos finais:
Por vos nací, por vos tengo la vida,
Por vos he de morir, y por vos muero.
A partir daí, números individuais. Ouvi dezenas de vezes o solo predileto de Paulinho, que se anunciava com um silêncio que rogava silêncio e uma mudança entristecida de semblante. Era um poema atribuído a um peruano, homem elegante, de requintadas e melancólicas maneiras, que não merecia, Neruda insistia, não merecia o fim que teve sua vida depois de uma noite de tragos numa taverna sombria dos subúrbios de Lima: afogado na merda de uma fossa aberta. Era um soneto, cujo primeiro quarteto, de duvidoso gosto, Paulinho o declamava com uma lentidão tristíssima:
Mi infancia que fue triste, serena, dulce y sola,
Se deslizó en la paz de una aldea lejana,
Con el manso rumor con que muere una ola
Y el tañer doloroso de una vieja capana.
E depois do lindo verso do primeiro terceto: Y luego el soplo denso y perfumado del mar.
Neruda fazia uma pausa de ator que sabe lidar com as sílabas sonoras do silêncio, e concluía com os dois versos finais coroados pela vibração de palmas e alaridos. Versos que comoveram o meu amigo Celso Furtado a quem convidei uma noite para um jantar nerudiano.
Mi padre era callado y mi madre era triste
Y la alegría nadie me la supo enseñar.
Orlando Oyarzum mudava o rumo da noite. Gostava de dizer uns versos de autor desconhecido, que lograva grandes risos ao alterar o lugar das sílabas tônicas:
Yo amé a aquella cándida
Y ha resultado una bándida.
Pues maté a aquella mujer
Con un tiro de revolvér.
Agora começavam as canções. Também sempre as mesmas. Santiago Aguirre pedia alma à sua guitarra para pedir todo a media luz, la media luz de amor, que suave terciopelo la nédia media luz los dos.
Estamos na Sebastiana: Rodeados pelas vidraças das janelas da grande sala ovalada, que deixavam transparecer iluminada a baía de Valparaiso, mero prolongamento do universo mágico que o Poeta sabia inventar.
Carmem Vassalo nunca se fez de rogar. Era um único número, mas inesquecível: Noches de Ipacaraí.
Bem. O sol nasceu para todos. Era a vez do salão inteiro. Era a vez da sagrada Ola Marina, repetida cinco, seis vezes:
Vamos a ver la ola marina.
Vamos a ver la vuelta que dá,
Tiene un motor que camina pa’delante,
Tiene un motor que camina pa’tras.
Vamos a ver la ola marina.
Era una antigua canción. Ya nosotros éramos todos niños. Merecíamos el trago del descanso. Quando era jantar, o Poeta demorava um tanto de conversa, extendia as despedidas. Mas se era fim de almoço, ele dava as buenas tardes e subia para sua sagrada e longa sesta, arrematada com a leitura de uns sonetos de Petrarca, certas páginas do Lord Jim de Conrad.
O jantar da Sebastiana ainda não terminou. Falta a canção final, a querida de todos. Lembro que depois de um tempo, Paulinho me fez o apresentador oficial do número que fechava a noite. Lá ia eu, para um público que eram os próprios cantores:
— Después de várias presentaciones en los cabarets de Londres, La Habana y Tegucigalpa, confieso que estamos un tanto fatigados. Pero atiendendo a inúmeros pedidos vamos a cantar la más famosa canción de las islas del Pacífico: El Marinero.
Tres solistas: Nemesio, Orlando y Paulinho.
Solo de Nemesio: Soy marinero!
Todos: Me gusta el mar.
Solo de Orlando: Soy marinero!
Todos: Me gusta el mar.
Solo de Paulinho (aqui cabe um parênteses indispensável. A voz do meu amigo não era de merecer louvores. Nasalada e propensa ao desafino. Mas o homem gostava de cantar. De resto, eu o agradava contando que o João Gilberto cantava que os desafinados também têm um coração).
Depois que todos lhe respondiam Me gusta el mar, eu conclamava os poderes vocais de minha mocidade e entoava o estribilho, que em seguida todos repetiam mais de uma vez:
Cuantas estrellas hay en el cielo
Tantos besos yo te daría,
Uno solo no bastaria
Para darte todo mi amor.
Importância e influência
A importância de Neruda em minha vida foi tão intensa que se mantém vívida até hoje e tem sua raiz na coisa mais bela da vida: a amorosa convivência humana. Em nenhum preponderou a diferença de idade, mais de vinte anos, entre nós dois, Éramos dois meninos empinando papagaio, dois companheiros silenciosos diante do oceano, dois homens sofrendo a dor da miséria em nossa América, dois poetas trabalhando juntos, um traduzindo a poesia do outro, tomando o nosso santo trago, comentando como as mulheres são tão bonitas, ele me lendo um poema que escrevera na véspera, relembrando episódios, que eu escutava fascinado, do amor furioso da mulher de Java para quem ele escrevera o Tango do Viúvo.
Influência literária?, me perguntam os jornalistas. Não padeço da enfermidade da falsa modéstia. Sofro da mordida do princípio da identidade pré-socrático. Cuido de ser idêntico a meu ser. Admiro com alegria os mais capazes. Não somente no campo da arte. Sobretudo os que são mais poderosos de coração solidário, quero dizer de amor.
Não, insistem, queremos saber de influência literária. Contesto que nenhuma. Quando nos conhecemos, eu já encontrara a minha maneira poética de dizer as coisas, meu jeito de construção de metáforas. A presença da inquietação social em meus poemas não trazia uma marca nerudiana. Respondo muito naturalmente que não. A indignação contra as desigualdades sociais, abismo infame que separa ricos escarnecedores de uma legião de miseráveis famintos, nasceu da vida, de fatos terríveis que vi e vivi no Brasil, na Bolívia, onde escrevi a Madrugada camponesa, A vida derradeira.
O bem que Neruda me fez foi me lavar para sempre do hermetismo. Devo a ele como a outros que amo. Em Lorca, em Hoelderling, em Bandeira, em Guillén, Miguel Hernandez, Drummond, Hiskmet, para minha felicidade, abracei com a inteligência do coração as metáforas desnudas.
Dele guardo, no entanto, uma lição: o poeta deve trabalhar todos os dias. Tal e qual disse Rodin a Rilke.
Pelas dez da manhã, no seu robusto tronco de carvalho que lhe servia de cadeira, defronte do mar imenso (más inmenso sin ella), todos os dias da Isla Negra estava o Poeta com o seu caderno e sua caneta de tinta verde. Não tinha hora para findar com o seu mágico ofício. Tinha compromisso de entrega mensal de originais para honrar sua retirada de direitos também mensal a seu editor e amigo Gonzalo Losada.
A poesia não se mede
Trabalhava eu com estas recordações aqui no silêncio da minha floresta quando o telefone me traz a pergunta de um jornalista do Sul. Se eu considerava Neruda o grande poeta do século 20. Contestei seguro e sem ênfase (me salta da memória um verso de Drummond, quem me deu de presente um exemplar original do Canto Geral): “Como são tristes as coisas consideradas sem ênfase”:
— Faz mais de meio século que convivo e trabalho com palavras que alcançam a condição de Poesia. Leio poemas todos os dias. Especialmente os meus prediletos. Os que me fazem feliz. Os que mais amo. E confesso que ainda não aprendi o sistema métrico universal para medir quem é poeta grande, poeta maior ou menor. Poesia má? A Poesia só sabe conviver com a beleza, com o que é bom para servir à vida. A minha medida é a felicidade que me dá o poeta. Amo os que me comovem. Somos poetas os que somos. Não tenho conta das vezes que já li Joaquim Cardozo, um dos meus caríssimos prediletos. Um dos poemas limpos e lindos que amo é o Poema sujo do meu amado Gullar, porque limpa a sujeira da vida. Sei de cor e recito sozinho caminhando pelas veredas da floresta o The Hollow Men do T.S.Eliot, o Booz Endormie de Victor Hugo, o Llanto por Ignácio Sanchez Mejias, de Lorca, A última canção do beco, de Bandeira, o Cuando yo vine a este mundo, de Guillén, as Memórias do boi Serapião, do Carlos Pena Filho (que Neruda me ajudou a traduzir para o castelhano), a Máquina do mundo, do Drummond, La Chanson de la Plus Haute Tour, de Rimbaud, A moça enterrada no canavial, do Ledo Ivo, o Alma no me digas nada, do Angel Cruchaga — não sei nem quero saber se eles são grandes, só sei que me dão essa felicidade singular que só a Poesia sabe dar.
O jornalista insiste:
— Mas você não considera Neruda um dos maiores.
— Já te disse que não sei medir. Neruda está entre os que mais amo. Entre os que mais me comovem.
— Quais são os outros?
— Dão para encher um transatlântico.
Recordo um entardecer em Puerto Mont, sul do Chile. Contei a Paulinho que um crítico brasileiro respeitado chamou Manuel Bandeira de grande poeta. O pai de meu mestre Manuel, constante leitor dos bons autores do mundo, disse ao filho:
— Grande é Dante.
Neruda me cortou:
— Petrarca.
— E tu, cada vez mais cantado no mundo?
— Nada mais que um Poeta. Um poeta chileno.
— Chileno e universal. O que tu cantas chega ao coração de todos os homens.
— Estamos nos pondo teóricos. Melhor quero que tu proves um vinho que acabo de descobrir na antiga adega de um amigo pescador.
Poeta nacional
Acho lindo poder dizer, depois de recordar tantas águas passadas, que Pablo Neruda é o Poeta Nacional do Chile. O que é um poeta nacional? O que canta o amor e a beleza de sua pátria, as esperanças e as dores, a vida do seu povo. E o povo se identifica com ele e guarda os seus versos — uma estrofe pelo menos — como se fossem dele. Não há um chileno, poderoso ou pobre, ministro ou mineiro, que não saiba quem é Neruda. Ora, direis, um país de apenas quinze milhões. Sim, mas sem analfabetos.
Não podemos dizer que tenhamos os brasileiros um poeta nacional. Nem Castro Alves, cada dia mais desconhecido. Temos poetas maravilhosos, queridos de uma parcela pouco ponderável de meus compatriotas. Temos milhões de miseráveis que levam na fronte a flor sinistra da ignorância. A meu juízo, nos países da nossa América, são poetas nacionais Neruda no Chile, Nicolas Guillén em Cuba, Ernesto Cardenal na Nicaragua.
A dor do poeta
Membro do Comitê Central do Partido Comunista do Chile, Senador da República, candidato à Presidência do Chile antes da formação da Unidad Popular que levou Salvador Allende ao Poder em sua terceira candidatura, a atividade política nunca chegou a apaixonar Neruda. Digo pelo que ouvi de nossas tantas conversas. O seu poder era a palavra. A sua verdadeira tribuna era a Poesia, na qual defendia com ardor a causa dos pobres da terra. Pagou caro a lealdade de seus princípios. Quando o pérfido Gonzalez Videla lhe tirou o mandato, o Poeta sobreviveu a uma perigosa clandestinidade graças à amorosa bravura de seus camaradas de comunidades humildes, à pobreza generosa que o ocultava consciente dos riscos que corria.
Em tantas ocasiões ele me relembrava com pormenores os momentos de perigo que enfrentou nos dias e noites longas que durou a travessia da Cordilheira dos Andes a cavalo, guiado por companheiros conhecedores de passagens escondidas entre corredores de gelo, até chegar à Argentina. Repetia emocionado o nome de cada mulher a quem devia a liberdade e a vida.
Decido dar lugar nestas lembranças a um vaticínio infeliz do querido Poeta. Feito na noite de 31 de março de 1964. Os militares brasileiros implantaram a ditadura um dia antes. O presidente Jango Goulart seguia em Brasília. Falaria ao povo no começo da madrugada. Salvador Allende, hermano, chegou à minha casa pelas 11 da noite com um aparelho de rádio potente. Pouco depois chegou Paulinho. Ouvimos com nitidez o discurso de Jango. Ia deixar Brasília, não queria derramamento de sangue do povo brasileiro. Ia para Porto Alegre, tomaria o caminho do exílio.
O Poeta se levantou da cadeira de balanço, o rosto abatido, me disse:
— Compañerito, tu pueblo no va a salir a las calles. No va a salir. Eso jamás pasará en Chile. El día en que los militares intenten levantar la cabeza, hasta las amas de casa saldrán con sus escobas a las calles en defensa de la democracia.
Não esqueço o tom grave e pausado de Salvador:
— Hermano, es verdad, tu pueblo no va a salir a las calles. Estoy piensando en las consecuencias. Este golpe abre una nueva etapa en nuestra historia. Primera cosa: yo voy a perder otra vez las elecciones este año. Otros golpes militares se sucederán en nuestros países. Y quizá ni Chile estará a salvo.
Eu fiquei calado.
O ilustrador da alegria
Homero Arce, o delicadíssimo Homero, já disse que foi secretário de Neruda por uns quarenta anos. Sonetista precioso. Seu poema sobre o álamo chileno passou a fazer parte do nosso repertório. Um dia perguntei porque ele não publicava. Não é preciso, me respondeu, Pablo já disse tudo o que precisa ser dito. De tanto insistir um domingo na Isla Negra, ele me entregou 20 poemas. Cada um melhor do que o outro. Editava no Centro Brasileiro de Cultura, fundado e dirigido por mim em Santiago uma série de Cadernos Brasileiros. Inaugurada com Farewell de Neruda, depois Castro Alves, de Bandeira, uma antologia de Drummond, um ensaio de Lúcio Costa sobre arquitetura brasileira, outros títulos. Decidi traduzir e editar uma edição bilíngüe dos sonetos de Homero, mas com uma condição: o livro seria ilustrado por Neruda, que desde moço tinha uma queda pelo desenho. O poeta concordou. Foi uma festa na Sebastiana: o livro de Homero, aberto por um belo texto de Jorge Sanhueza. Acaba de sair uma segunda edição, bem cuidada por Roser Bru e Emílio Helena, que exaltam as virtudes do ilustrador. Trata-se do único livro ilustrado pelo vate chileno.
Dou para o leitor de Rascunho o soneto que Neruda recitava de memória:
Este árbol grande que nació pequeño,
Hechó raíces en la tierra dura.
Y desde el fondo de su oscuro sueño
Sacó el oro terrestre hacia la altura.
Sacó la claridad con dulce empeño
De la tierra y del aire la frescura.
Del aire ahora rumoroso dueño
A los vientos despliega su estructura.
Álamo del camino, mástil de oro,
Navio de las olas florestales,
Alta columna de esplendor sonoro.
Dadme una rama de tu fuerza alada,
Un grama de tus íntimos metales
Y nacerá la luz en mi enterrada.
La chascona
Paulinho gostava de batizar suas casas com nomes inventados num relance. Das quatro que teve, a primeira se chamou Los Guindos, onde viveu bons anos de sua vida com sua mulher Delia Del Carril, porventura a que mais o ajudou a ser o homem que foi. Ele a conheceu na Espanha, nos começos da Guerra Civil. Para usar uma expressão de nosso gosto popular, que nem de longe fere a verdade, ela, a aristocrática argentina de idéias avançadas, foi quem lhe fez a cabeça. De uma vez por todas. Ela o apresentou a Federico Garcia Lorca, a Miguel Hernandez, mas também às principais figuras da esquerda espanhola. Gómez de la Serna entre outros. Era 18 anos mais velha que Pablo.
Depois da Guerra, estava com Delia, no México, quando conheceu e se enamorou perdidamente de Matilde. Mas não conto de um tempo que não convivi com o Poeta, nem está no meu jeito de ser me valer das confidências que me entregou em confiança. Conto, sim, que Delia Carril, intelectual de grande vôo, magnífica pintora de cavalos encantados, foi uma das figuras humanas mais poderosas das mais altas virtudes humanas que já conheci.
Quando era a primavera de 196l, com seus pessegueiros em flor, Paulinho soube que eu e Anamaria Vergara, poeta chilena, íamos viver juntos. Nos chamou para um almoço na Sebastiana. De sobremesa, nos disse que a Chascona, sua casa de Santiago, onde hoje abriga a sede principal da Fundação Pablo Neruda, devia ser a nossa casa. Matilde cuidaria dos pormenores práticos. Naquela casa vivemos, com Maria Cristina e Alejandrito, a quem amo como filhos. Chascona quer dizer cabeleira de mulher ao vento.
1973
A casa da memória, que abriga numa de suas mais queridas salas, as lembranças que tenho de Neruda, de vez em quando transborda, me faz chamá-lo de volta, como ao começo das páginas deste texto.
Me despeço com a derradeira. Deixo em silêncio, melhor que para sempre, as tantas acumuladas ao longo de nove anos.
Estou de regresso ao Chile, como refugiado político. Sirvo ao governo de Allende, como diretor de Comunicação Social do Processo de Reforma Agrária. Passo a maior parte do meu tempo na província de Temuco, zona altamente conflitiva. Pelo meio de agosto de 73, todo Chile sabendo que um golpe militar era iminente, recebo um chamado de meu dileto Nemésio Antunez: “Neruda quiere verte.Ven pronto”. Chegamos na Isla Negra. Paulinho está deitado na sua ampla cama, a cabeça acomodada em almofadas. Parece adormecido. Todo o seu rosto já está coberto pela máscara da Pálida. Nós dois silenciosos ao pé de seu leito. O seu mar bramia violento.Por um fugaz momento, abre os olhos e me vê. Ele me reconhece de pé à sua frente. Quer sorrir, mas o seu sorriso já é um esgar. Com voz débil me diz: “Compañerito!., e volta a adormecer. Desci a escada chorando, abraçado a Nemésio.
Não. Não vou concluir este texto de amor com lágrima. Sinto vontade de cantar “Soy marinero”.
Prefiro terminar minhas recordações com um fragmento da Ode a la energía que ele leu num recital na Feira de Artes Plásticas no Parque Florestal de Santiago, Violeta Parra com sua guitarra, Hector Prado com seus volatines, Jacqueline Pertuiset com sua beleza, na primavera de 1961.
Fuego que corre y canta, agua que crea, crecimiento, transforma nuestra vida, saca pan de las piedras, oro del cielo, ciudades del desierto, danos, energía, lo que guardas, estiende tus dones de fuego allá sobre la estepa, fragua la fruta,enciende el tesoro del trigo, rompe la tierra, aplana montes, extiende, las nuevas fecundaciones por la tierra, para que desde entonces, desde allí, desde donde cambió la vida, ahora cambie la tierra, toda la tierra, las ilas, el desierto y cambie el hombre.
Entonces, oh energía, espada ígnea, no serás enemiga, flor y fruto completo será tu dominada cabellera, tu fuego será paz, estructura, fecundidad, paloma, extensión.
De cachos, praderas de pan fresco.
Amazonas, Santiago de Chile, São Paulo, julho de 2004 .