Nenhum véu sobre o amor

No romance "Baixo esplendor", de Marçal Aquino, um policial infiltrado conduz uma história na qual o erotismo é mecanismo de sobrevivência
Marçal Aquino, autor de “Baixo esplendor” Foto: Renato Parada
01/09/2021

Amor não é completo se não sabe
coisas que só amor pode inventar
Carlos Drummond de Andrade

É dado a homens de sangue quente o traço nômade por onde se infiltra seu desejo. O professor Schianberg, em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), aponta tais tipos como homens que, apesar da bravura com que resistem, terminam reféns da própria volúpia. Nunca são vencidos pelas forças de contenção. Mais do que isso, vivem a experiência do desamparo, fruto da intensa vulnerabilidade com que se entregam. São seres que respondem tudo com paixão, seres de tudo ou nada.

Marçal Aquino elabora novamente — e com habilidade — tal tipo em Baixo esplendor. Miguel — nome falso do protagonista — é policial infiltrado no bando de Ingo e com Nádia, a irmã deste, relaciona-se tórrida e apaixonadamente durante a missão.

Nádia é menos “fatal” que Lavínia, já Cauby (os dois últimos presentes em Eu receberia…) é mais romântico que o protagonista de Baixo esplendor — a condição de artista (fotógrafo) do primeiro em contraponto à função policial justifica tal diferença.

A construção de um enredo policial, há muito explorado por Aquino, mantém-se bem estruturada pelo autor, que alia ótima elaboração de personagens e tramas, bem como demonstra domínio do jogo temporal empregado. Isso porque são entremeados ao enredo principal fragmentos narrativos em flashback sobre a vida do pai de Miguel — também um “tira”, cujo assassinato impacta as ações do filho no tempo presente.

O autor, que também escreve para o formato audiovisual, incorpora técnicas de roteiro que, aliadas à objetividade jornalística, constrói, sem divagações ou adornos desnecessários, uma prosa potente e pungente. Ainda sobre técnicas de construção, Karl Erik Schollhammer, em Ficção brasileira contemporânea (2009), aponta que “a proximidade entre as duas linguagens [literária e cinematográfica] certamente é um traço importante no percurso de Aquino e favorece uma prosa sucinta, sem extravagâncias descritivas e com objetividade na construção narrativa”.

De fato não há extravagância nem floreio, ainda que a busca estética pela beleza da frase também seja um constructo do autor. Além de ótimas construções imagéticas, os interessantes efeitos sinestésicos e jogos de aliteração (feitos sem floreio) demonstram preocupação com o apuro formal — ritmo, imagens e sons.

Fios narrativos
O trecho separado em destaque abre a história como primeiro capítulo da primeira parte. Construído com a potência de um miniconto, nele é possível constatar a pungência da concisão, bem como a tônica imagética pela qual a tensão do amor dos personagens percorrerá.

Nesta obra, amor e linguagem são construídos com despudor. O amor deste homem de sangue quente começa pelo corpo. Platão não senta à mesa com Miguel. Inclusive, adiante no enredo, uma das câmeras que monitoram o apartamento do policial infiltrado gravará um dos vários encontros amorosos com Nádia — para a festa da delegacia, cujos policiais com o vídeo voyeuristicamente se deleitam.

Os fios de enredo de Baixo esplendor podem se dividir entre a investigação policial, em que Miguel (infiltrado) tenta colher informações suficientes para a prisão de Ingo, chefe do bando criminoso que trafica, rouba e mata; a relação fraturada com o pai, cujo abrupto rompimento alegoriza a fenda emocional; e a esfera amorosa com Nádia, construída não como a mulher “fatal” do noir, mas com a fatalidade que carrega toda entrega amorosa. Cabe apontar que engenhosamente Marçal Aquino constrói o pai como “tira” e Nádia como irmã do líder criminoso, tornando as malhas da história entremeadas e complexas, o que agrega densidade ao romance exatamente pela forma como o protagonista se sente enlaçado.

A trama policial, em nossa visão, é tecido de luxo diante da hipnotizante fúria do corpo.

Lemos:

Ocorreu uma ignição.

Ninguém disse nada. Não foi necessário. Quem já fez amor alguma vez na vida sabe que existem situações em que as mãos, e o restante do corpo (cada poro, na verdade), falam melhor do que a boca, que, assim, fica livre para outras finalidades. Se atracam no corredor com algo de fome e desespero e se buscaram com fúria. Miguel puxou o corpo dela com força para junto do seu e o pressionou contra a parede. Nádia gemeu. O que as bocas — e as línguas — faziam não pode, de maneira nenhuma, em nome dos bons costumes, ser classificado como beijo.

Nádia pede uma trégua — no jogo de lençóis, a luta da imersão dos corpos, feito apneia, é de quem consegue segurar mais — para ir ao banheiro. Intuímos a finura das paredes ou a larga fresta por debaixo da porta do lavabo, pois Miguel “ouviu, abafado, o som do jato da urina dela”, o que agrava sua volúpia, sentindo inesperadamente desejo “pelo cheiro de urina na carne de Nádia”.

A umidade dos cheiros é perfume para o Deus-Dispêndio dos amantes que não temem o Suor, o Sêmen, o Sangue delícia e violentamente derramados (em itálico, os títulos das seções do livro). Eis o aspecto líquido do que bombeia, do que transpira, do que jorra.

Amar também é uma literatura suja. A catarse dos gozos físico e anímico não pode ser anêmica na linguagem. E esta prosa fluida é uma escrita do contágio.

Bons costumes
O aspecto irônico do trecho anterior se revela em nome dos bons costumes; referência à moralidade da família tradicional brasileira imposta pelo governo militar (anos de chumbo em que a história se passa). Aquilo que não pode ser beijo é a maneira tátil com que a fala sobre um corpo debruça seu discurso, em uma época em que o corpo é morto quando se dá com a língua nos dentes.

Essa cena de Baixo esplendor nos remete ao seguinte poema de Fabiano Calixto (presente em Fliperama): “numa manhã de setembro/ meio dormindo/ meio acordado// foi assim/ no êxtase enovelado/ do pós-sonho/ que ouvi pela primeira vez/ a mijadinha dela”.

A escolha proposital do termo “mijadinha”, em Calixto, aponta, via linguagem, para o descompromisso informal da cena em que ambos acordam inebriados um do outro — em um “pós-sonho” cujo sonho transcende o literal a fim de nos apontar para o êxtase dos primeiros encontros (quando as primeiras vezes vão acontecendo), quando a voracidade do desejo aos poucos se mistura à decisão de permanência.

Baixo esplendor elabora, em meio à contaminação da missão policial, o contágio dessa relação tempestuosa e convulsiva transformada em amor por meio de uma linguagem que não poderia ser estéril, posto que o apaixonar-se é, antes de tudo, transgressão. Essas estocadas de linguagem em pequenas mortes a dois, em cenas ditas “sujas” (tanto em forma quanto em conteúdo), contribuem para a construção do erótico como mecanismo de manutenção da vida em oposição ao grave risco de morte da tensão policial.

O paradoxo apontado pelo título sugere os padrões de dilaceramento emocional que Marçal Aquino costuma propor para seus protagonistas, aqui mais tensionado pelo uso da experiência individual e coletiva como exercício limítrofe entre contenção e transgressão — bem como pelo jogo rubro entre a pulsão dos homens de sangue quente e o derramar sanguíneo das inevitáveis cenas violentas.

Baixo materialismo (Georges Bataille), baixo esplendor: nada de grandioso escorre dos seres, nenhum brilho romantizando o visível das cicatrizes. Nenhum véu sobre o amor. Nada por cima da ferida.

Baixo esplendor
Marçal Aquino
Companhia das Letras
261 págs.
Marçal Aquino
Nasceu em Amparo (SP), em 1958. É jornalista e roteirista de cinema e de televisão. Publicou, além de volumes de contos, os romances Cabeça a prêmio (2003) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005).
Ramon Ramos

É autor de Tinta (2012), Caroço (2013), A vulnerabilidade como procedimento (2018).

Rascunho