Nem uma coisa nem outra

Em "Notas de arrebentação", Marcelo Mirisola afirma seu estilo despertando reações de repulsa e admiração
Marcelo Mirisola, autor de “Animais em extinção”
01/07/2005

“Tô cansado de corromper o carrasco que me castiga; às vezes enche o saco bater de frente, ter a maldita última palavra e entregar o ouro pro  bandido, que sou eu mesmo. E daí que a vida ‘é um sonho, um nada, uma obscura flutuação no espaço?’ Não tô a fim, Gombro, de amar outra vez e prescindir do amor. Me recuso a negociar delicadezas. Qual a diferença de, em vez de filhos, ter o ódio e a amargura disseminadas sobre a face da terra em forma de livros, pra quê? Nem uma coisa nem outra.”

Verborrágico, começa assim o livro Notas de arrebentação, de Marcelo Mirisola. Trata-se do trecho de uma carta endereçada ao escritor Juliano Garcia Pessanha, em que o narrador, notavelmente estudado por Ricardo Lísias no posfácio do livro, dispara contra o sol, como Cazuza, mas também a esmo, apontando problemas e questionamentos que labirinticamente não chegam a lugar algum. Nem filhos nem livros cheios de ódio, é o que pensa Mirisola, ao assinar a carta.

E está justamente aí, nesse “nem uma coisa nem outra”, que encontra-se a relevância desse narrador e dos outros textos: um ser que não se constitui como sujeito, um personagem fragilizado, esmagado por fora pela banalização da idiotia contemporânea e, por dentro, pela sua insuficiência na realização e perpetuação do desejo — ou “da tesão”, como se repete à exaustão no livro.

O que mais incomoda o leitor, provavelmente, é esse impasse, essa falta da bandeirada consagradora na linha de chegada. A expectativa é do final feliz, do início-meio-fim, do casamento do mocinho e da morte do vilão, como acontece no último capítulo da novela, que, para que as pessoas não se esqueçam do conto de fadas, é pateticamente reprisado, impondo-nos a insistência de que sim, seremos felizes para sempre, invariavelmente.

Não ter fim, triste ou feliz, é um desafio para o leitor médio que, desde a metade do século 20, já vinha sendo apontado por Adorno como incapaz de captar o que não é absolutamente encadeado e harmônico. As observações do pensador alemão se iniciaram com a música (ele chegou a apontar essa dificuldade como uma regressão na audição) e estenderam-se para as artes plásticas e a literatura.

Portanto, o primeiro ponto da esquisitice e do assombro causados pelo trabalho de Mirisola vem dessa dificuldade das massas alienadas de suportar o que não é quadradinho. Para a expectativa geral, se o autor fugir do romantismo ou do realismo, com suas descrições universalizantes, a obra não serve, torna-se desafio, ameaça. Ou pior: não passa pela codificação automática, não há enzimas para digerir essas peças espinhosas. O segundo fator de repulsa vem de um aspecto superficial, as frases agressivas, os juízos de valor, a perfumaria que ilustra diálogos e situações vividas por este personagem sem rumo. Estamos diante de um narrador que perdeu, afirma Lísias. O personagem, que é uno, mas que se desdobra nas inúmeras caras dos diversos textos fala mal de tudo: de ícones da música, de literatos, de figuras públicas que ajudam a vender as revistas de fofoca ou que expõem ridiculamente a intimidade das ditas celebridades. O narrador cultua Marina Lima e Ângela Ro Ro; odeia Ed Motta. Fala elogiosamente de John Fante e esculhamba Ferréz: “Basta ver as porcarias que o Ferréz escreve ou andar de ônibus por aí para entender que a alminha brasileira não vingou”.

À parte os revanchismos e as antipatias pessoais que o autor-narrador possa ter em relação a alguns artistas, as observações acabam servindo para mergulhar numa reflexão mais profunda, de que a “alminha brasileira” não tenha vingado, por exemplo. Acaba sendo figura de linguagem do próprio personagem, por um lado, que não vingou e nem parece ter energia, estrutura ou intenção de vingar; e, por outro, uma situação de impasse constitutivo de uma nação que realmente marca passo desde sempre, esparramando-se em canalhices e negociatas, incapacidade de organização, de reação ou de prosperidade, algo que nos marca como ferro quente, iniciais aferradas ao couro e que parecem jamais poder ser retiradas.

A figura da mulher, ao longo do livro, tem dois vieses: a vulgarização — “as putinhas” — ou a forte imagem de mais uma ausência, a das mulheres que rejeitaram o personagem principal. Ficam aqui representando mais um ponto de falência desta estrutura complexa que jamais se constitui, jamais se completa. Ainda assim, há uma voz de resistência, de teimosia na sobrevida, que chama a atenção do leitor, como a que segue abaixo, extraída de Luto, uma peça de teatro:

“Não quero isso pra mim! Se for para abrir mão da fúria e repetir o mesmo paraíso e se for para repetir a mesma cantilena de Deus, é melhor criar galinhas, entregar os pontos como fez o Raduan Nassar… ou estourar os miolos de uma vez por todas!”

Porém, o texto de Mirisola está longe de ser brilhante, estamos distantes de ver nele o que Baudelaire representou para Walter Benjamin. Não é o livro de Marcelo Mirisola a realização mais bem acabada da fragilidade caótica do ser ou o espelho mais adequado através do qual se possa ler a história do nosso tempo. Entenda-se aqui a situação metafórica especular: não se exige dele a mimese colada à hecatombe social vigente, mas como mediação para tal leitura.

Porém, entendo o esforço de Ricardo Lísias, em seu posfácio, de demonstrar um valor hiperbólico na obra do autor: como ele mesmo aponta, não há muitos outros escritos que se prestem à mediação frankfurtiana nas nossas letras atuais. Há essa força na Morte sem nome, de Santiago Nazarian, na literatura de Marilene Felinto e de Marçal Aquino. Aliás, adornianamente, fica aqui uma ressalva ao texto do posfácio: há lá algumas generalizações que os mestres de Frankfurt jamais autorizariam. Toda generalização, toda postura totalizante é um passo firme em direção à reificação. Só o exercício inverso pode gerar discussões produtivas de modo a desarticular a engrenagem da bestificação coletiva.

Voltando às Notas de arrebentação, há no livro uma “atmosfera de genocídio e maresia” que faz do volume uma arma contra a banalização da nossa situação de finitude. Há elementos louváveis para pensar a barbárie que é o mundo hoje e a desestruturação das relações humanas. O ensaio de Ricardo Lísias é mais forte que o livro — não que a crítica valha mais que a obra de arte, ou que deva ser assim, no geral. Mas nesse caso em particular, eventualmente, aconteceu. Talvez por isso tenha vindo ao final do volume, evitando o desconforto que ocorre quando a banda que abre o show é muito melhor que a atração principal.

Ficam então as questões, e estão convocados os leitores a examinar o livro o opinar: Mirisola, gênio da raça? Mirisola, um completo idiota? Como diz o próprio autor, nem uma coisa nem outra. Mas o debate, como não poderia deixar de ser, está rigorosamente aberto.

Notas de arrebentação
Marcelo Mirisola
Editora 34
128 págs.
Moacyr Godoy Moreira

É escritor. Autor de Lâmina do tempo e República das bicicletas.

Rascunho