É característica inerente à ficção científica trazer, em seus códigos internos, o comentário político-social. Publicado em 1897, o clássico A guerra dos mundos, de H. G. Wells, traçava, em seu conflito entre humanos e alienígenas, um paralelo crítico ao colonialismo, ao voraz avanço do imperialismo europeu que causou a aniquilação de milhares de animais e dos povos originários do novo continente. No século seguinte, George Orwell vaticinava, em 1984, um futuro desolador no qual a humanidade é controlada por um governo totalitário e manipulador da verdade, enquanto em O homem do castelo alto, de 1962, Philip K. Dick subvertia os rumos da história, retratando um mundo em que os nazistas venceram a Segunda Grande Guerra e instituíram uma nova ordem geopolítica fundamentada em genocídio e asfixia econômica. Atualmente cabe à canadense Margaret Atwood o epíteto de dama da ficção especulativa, por meio de uma série de livros em que o estado imaginário de uma sociedade distópica se aproxima, com tangível legitimidade, da realidade vigente. O mais célebre é O conto da aia, no qual as mulheres são privadas da liberdade por um sistema de vigilância estatal, tendo a violação física e o fundamentalismo religioso como instrumentos para perpetuar o libelo da inferioridade feminina.
A vida breve dos cães, romance de estreia de Elton Frederick, enquadra-se nesta mesma vertente do gênero. A premissa é bem instigante: após a morte de milhares de pessoas por conta de uma severa pandemia, descobre-se que a cura para a doença se encontra numa substância produzida pelo sangue das mulheres assim que estas completam 79 anos. O Estado, então, leva a efeito um plebiscito popular, no qual fica decretado que as chamadas Propiciadoras, ao atingirem tal idade, deverão ser levadas ao Centro de Transfusão, onde serão drenadas, em seguida sacrificadas. O fármaco, de nome Solução 79, será aplicado em venturosos doentes, de acordo com a seleção imprevista de um algoritmo. O procedimento, entretanto, não se configura uma unanimidade, gerando um atrito social, entre células contrárias à decisão e uma maioria que aprova a nova resolução. O protagonista do livro faz parte deste último grupo, vivendo o exato dia em que entrega sua mãe para salvar vidas em decorrência do próprio fim.
Seu nome é Isaque (e aqui já se apresenta uma das inúmeras referências bíblicas que caracterizam todo enredo), um tosador de cães, que trabalha numa petshop, cuja infância foi marcada pelo abandono de seus pais biológicos e a adoção por Isabel, fervorosa diaconisa de uma igreja neopentecostal, condicionada por pensamentos ultraconservadores e por um homem que manobra tal comportamento. A última peça do eixo que conduz a história é Cecília, uma jovem publicitária, que teve um envolvimento com Isaque, radicalmente avessa à ideia do extermínio de mulheres como um bem coletivo, pois visualiza no processo sua futura condenação. Através destas três vozes, sendo uma delas flexionada em terceira pessoa, a narrativa se fragmenta em pontos de vista distintos para um contexto associado, contando ainda com a presença de Mordecai (de novo a Bíblia e suas fontes), uma cachorra que funciona para a transição dos acontecimentos bem como de elemento simbólico da temática premente.
Repetitivos saltos
O caso é que, a partir daqui, a trama estaciona. Ou melhor: vai para frente na ponta dos pés e, para trás, em largos e repetitivos saltos. O autor opta por concentrar mais de 200 páginas neste percurso do despacho de Isabel, então semimorta em virtude de um acidente, ao centro de abate, explorando de modo contumaz o passado, a relação entre mãe, filho, cão e religião, crescendo pelo reverso. O cenário estagnado do presente vai ganhando novas nuances ora aqui, ora ali, lentamente; em grande parte apenas mudando a perspectiva para um fato consumado, sem ressignificá-lo. Com isso, os relatos tornam-se circulares, monocórdios, passam a sensação de que não avançam, apesar do contínuo vaivém temporal. Um recurso que se acumula e se converte em digressão, em excessivos desvios do argumento central, que afetam o poder de imersividade. E que fique claro que não se trata de inabilidade literária, pois o texto denota uma experiência na escrita, um domínio técnico na articulação dos componentes ficcionais. A questão está no desempenho criativo, nas escolhas ao explorar um subgênero desgastado com inventividade ao mesmo tempo que respeitando certas chaves tradicionais.
É regra básica, de qualquer enredo antiutópico, estabelecer uma atmosfera de opressão, de um mundo regido por princípios autoritários, em mau caminho por conta de atos desumanos. Frederick relega tais aspectos a ecos, apostando na distopia particular dos personagens, na investigação de seus dilemas, dramas, repercussões de decisões em si e no outro. A mãe encerrada na alienação da fé, que derrama seu fanatismo no filho, cujo afeto se converte em idolatria para o animal de estimação. Um menino moldado por uma severa educação religiosa, que se torna um homem apático e resignado, obedecendo sem questionar um sistema que institucionaliza o descarte de mulheres. Ao contrário da ex-companheira, que se rebela, protesta, vê tudo como é: abuso e violência, embora intimamente tenha consciência da impossibilidade de mudança. Os atores da trama são o foco, e isso não seria mau, caso suas motivações e impasses não fossem tantas vezes reprisados ao ponto de ficar maçante, caso houvesse um pouco mais de investimento na contextualização. Como se descobriu que a cura estava no sangue das septuagenárias? Qual a extensão social da nova resolução? No que se transformou o mundo?
Fica evidente a estratégia do autor em se utilizar da premissa como espaço para exercitar alegorias e analogias dentro e fora do livro. A despersonificação do corpo feminino, a cosmogonia patriarcal, a chancela ao intruso religioso em determinações que deveriam ser afiançadas pelo conhecimento científico. Neste ponto específico, as referências bíblicas também permitem algumas concatenações narrativas, especialmente com as passagens sagradas em que o sangue de Cristo é dito como possibilidade de redenção e justiça para os povos. Outro instrumento de instilação do debate sobre moralidade e ética está na figura da cachorra, no compadecimento geral atribuído aos animais domesticados, para os quais é permitida a eutanásia, diferente da lei para os humanos. Frederick cumpre com aplauso a cartilha de como bem suscitar o comentário político-social, de como se valer da ficção especulativa que aparentemente rompe com a aparência realista para, na naturalização do absurdo, encontrar-se mais fundo com a realidade. A vida breve dos cães, sem dúvida, oferece muitas interpretações. Mas, ainda que bem-sucedida na articulação de seus códigos internos, toda boa ficção depende crucialmente do desenvolvimento de sua história.
Por fim, vale uma crítica à edição. Talvez para reduzir o número de páginas, por motivos comerciais alheios ao nosso conhecimento, o livro apresenta uma diagramação condensada, com fonte minúscula, fazendo da leitura um exercício de esforço. Obviamente que isso não interfere em nada na qualidade literária, mas, com certeza, sobretudo para quem tem qualquer distúrbio visual, prejudica bastante a experiência do leitor.