Nelson Rodrigues gagueja no Leblon

Mesmo flertando com o caótico tom rodriguiano, romance de Jorge Sá Earp peca ao focar na defesa de uma causa: a sexualidade do protagonista
Jorge Sá Earp, autor de “As amarras”
01/03/2021

No dia de seu casamento com Aglaia, Eusébio, arquiteto que deixa um emprego público para trabalhar na firma de engenharia do sogro, depois de parar a cerimônia para ir ao banheiro, foge da igreja e dos cumprimentos padrões para se refugiar na própria festa. É onde conhece o garçom Inair e começa toda uma trama de traições, segredos, assédios, preconceitos, corrupções e chantagens carregada de sexualidade até que o protagonista, enfim, assume sua opção sexual.

Este é o enredo do novo romance de Jorge Sá Earp, As amarras. E se é possível perceber semelhanças com as tramas de Nelson Rodrigues, sobretudo com seus romances e crônicas, isso talvez não seja mera coincidência. O mundo de preconceitos e traições descrito pelo dramaturgo ainda sobrevive: rompeu as fronteiras do subúrbio carioca e se instalou na Zona Sul, no Leblon, na classe média alta — pelo menos na visão que se tem do romance de Earp.

Em linhas gerais, As amarras retoma a tradição da literatura leve, aparentemente tensa, recheada de humor, às vezes cáustica, escatológica, como na cena já citada das idas ao banheiro durante o casamento e a festa de núpcias. Aliás, é no banheiro que muita coisa se passa no romance. É no banheiro do Club Federal, por exemplo, que Eusébio assedia seu cunhado, Tarcísio, uma cena que remete ao canalha rodriguiano a beijar o pescoço da cunhada nos corredores desertos dos casarões do subúrbio.

Como estamos num tempo de classificações, o livro foi taxado de “romance LGBT”, seja lá o que isso for, uma pecha que minimiza o livro e, de fato, pouco contribui para sua análise. Vale lembrar que Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, narra o conflito de um jagunço que se descobre apaixonado por outro jagunço. Tudo bem, há a famosa reviravolta no final, mas, mesmo assim, nunca foi vinculado à literatura de gênero. Sua grandeza literária está acima de toda esta questiúncula.

Na verdade, o enredo de As amarras está mais para discutir e trabalhar os conflitos pessoais de um homem preso às imposições familiares. No entanto tal discussão termina minimizada pela opção do autor em trabalhar uma narrativa na primeira pessoa do singular, o que tira a possibilidade de um olhar onisciente que poderia trazer mais consistência para os debates propostos.

É certo que a narrativa em primeira pessoa dá leveza ao texto, afinal, o protagonista construído por Earp, Eusébio, é cáustico em suas declarações, mas, por outro lado, rouba a possibilidade de maior reflexão psicológica sobre os personagens, alguns bem estereotipados, como Armando, o irmão de Eusébio, um senador que enriquece de maneira ilícita, assedia a secretária e oferece ao irmão uma sinecura em seu gabinete.

Complexidade e referências
O romance também traz personagens complexos, como o tio Zacharias, gay enrustido, católico e cheio de falsa nobreza, e a própria Aglaia, uma dondoca histérica, que mereciam perfis mais profundos. Isso poderia trazer densidade à narrativa. O escritor, no entanto, optou pela levada mais comum, pelos tantos jargões literários que oferece apresentando um narrador suspeito que todo tempo tenta justificar suas escolhas e, de certa forma, se desculpar frente à família repressora, além de jogar para o irmão a culpa pela derrocada final dos pais.

O texto está recheado de referências literárias, sobretudo depois que Eusébio, diante do fracasso como dramaturgo, deixa a arquitetura e se especializa em cenografia. Isso só demonstra o óbvio, Earp é um leitor de largo curso, conhece bem seu ofício. Em As amarras, no entanto, quis, e o fez, produzir um romance mais ligado àquilo que se convencionou chamar de literatura de entretenimento. Não há como negar a existência desse gênero narrativo, as bancas de jornais dos anos 1970 viviam abarrotadas dele; o importante, no entanto, é o escritor saber dosar prazer de leitura com profundidade reflexiva. Autores como Graham Greene foram mestres nesta alquimia, e o próprio Nelson Rodrigues, sobretudo em suas peças, soube como poucos envolver o leitor e, ao mesmo tempo, oferecer um texto com densidade psicológica. A questão é chegar no ponto ideal da transmutação para se revelar o ouro.

Jorge Sá Earp é um bom escritor e sabe construir boas tramas. Seus vários outros livros, mas também este As amarras, demonstram isso. O problema está na opção narrativa. Há uma corrente crítica que defende a ideia de que o uso da literatura para a defesa de uma causa pode matar a própria literatura. E exemplifica a Rússia como talvez a maior vítima desta prática.

Em As amarras, Jorge Sá Earp optou pela causa, não pela literatura. O resultado é um livro apenas mediano de um bom autor.

As amarras
Jorge Sá Earp
7Letras
172 págs.
Jorge Sá Earp
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1955. Cursou Letras na PUC-Rio e é diplomata. Contista e romancista, publicou Ponto de fuga (1995), O jogo dos gatos pardos (2001), Areias pretas (2004) e A praça do mercado (2018), entre outros livros.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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