Negativas que afirmam

"O livro dos pequenos nãos", de Heloisa Seixas, intercala histórias para mostrar como o acaso interfere nas decisões
Heloisa Seixas, autora de “O livro dos pequenos nãos”
01/06/2022

A vida se submete a qualquer pessoa, o tempo todo, como um arsenal de possibilidades: você abre a porta ou fecha a porta e tudo muda. A partir desse pressuposto mais ou menos evidente, e que não raro é tema recorrente usado por uma quantidade considerável de escritores, Heloisa Seixas resolveu fazer o romance O livro dos pequenos nãos. No caso dela, a opção foi por estipular interrupções na trajetória de Lia, a personagem central, para intercalar relatos relativos a outras pessoas, em diferentes tempos.

À medida que se avança na leitura, o leitor começa a deduzir sem dificuldades que aqueles relatos têm a ver de alguma maneira com Lia, são as relações ancestrais dela que estão em jogo, justamente nos momentos em que, tendo fechado portas, tendo dito não aos avanços industriosos do acaso, evitaram a própria morte e prosseguiram nas trajetórias que desembocaram na história de, claro, Lia. Não à toa, a certa altura ela diz: “Os pequenos nãos mudam histórias” e existe um “vazio estranho que se cria a partir das bifurcações”. Ela parece dar atenção toda especial a esses pequenos jogos do acaso, em que um deus mexe os cordames de maneira mais ou menos aleatória e intempestiva. Embora tudo na narrativa gire em torno do modo como esses acasos parecem de fato atados num mesmo vínculo e, portanto, o conceito de acaso não se aplica jamais.

Lia conversa com uma amiga, Ana, a respeito da morte do poeta Ronald de Carvalho, que ao pegar carona um dia sugeriu ao amigo que o levava que fossem por outra rua — o que terminou num acidente fatal. Ou seja, no fundo Lia e a amiga Ana conversam sobre as artimanhas do acaso, durante jantar corriqueiro num restaurante às margens da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Alguma coisa não parece bem com a personagem central, um tanto reticente e algo distraída, mas Ana não consegue retirar dela muita informação. O jantar termina, elas se separam. Lia entra no próprio carro e se aventura pela noite carioca, com desdobramentos imprevisíveis.

Outras histórias
A cada tanto, um intervalo se interpõe e uma narrativa de outro tempo vem à tona: um médico da terceira expedição a Canudos se dirige, junto com o destacamento liderado pelo coronel Moreira César, para o cenário do conflito, em 1897. Sabe-se hoje que só a quarta expedição é que será efetiva no massacre produzido no sertão baiano.

O médico em questão, João Alexandre, está impressionado por uma imagem: a do médico da primeira expedição, que havia enlouquecido. O próprio João Alexandre, na companhia da mulher e antes da entrada no cenário de guerra, experimentou uma situação que lhe desafia a racionalidade e lhe ronda como uma ameaça tangível. Num momento extremo no meio do conflito, o médico se retira de uma cirurgia por instantes para buscar gaze, em vez de mandar para a tarefa simples o enfermeiro que o acompanha e auxilia, e que fica em seu lugar cuidando do ferimento. Na volta, o enfermeiro está morto com um tiro, que teria sido para João Alexandre, não fosse a decisão de última hora que tomou.

Assim se encaminha a narrativa, sendo interrompida por relatos de outros tempos e por essas intervenções sempre tão impressionantes do acaso. Mariá se prepara para um banho de açude, em 1912, mas decide antes subir numa árvore de umbu e colher algumas frutas. Advertida por um chocalho, encara os olhos da cascavel por um microssegundo antes de reagir e voltar atrás sem ser hipnotizada pela paralisia que poderia ter se mostrado fatal.

A jovem Angélica vai com a família para a beira da praia, de férias, em Vila do Conde, na Bahia, em 1935. Há boatos de que o bando de Lampião, acuado por tropas em Alagoas e Sergipe, talvez apareça por ali, à beira-mar, embora a preferência pelo sertão adentro seja sempre enfatizada. Ao mesmo tempo, Angélica vê o despertar da própria sexualidade e teme que o boato se concretize numa ameaça terrível. Se o bando aparecer, vai sequestrar Angélica, lhe diz um interlocutor, num tom entre advertência e ameaça. De fato, o bando surge. Lampião, no entanto, reconhece em Angélica a mesma armação de óculos que ele usa, e que ela, por sorte, não retirou do rosto antes de adormecer. “Pode ficá sossegada”, lhe diz Lampião. “Ninguém aqui vai mexê com voismecê.”

Por fim, Délio embarca num hidroavião para ir ao encontro da própria mulher, no Rio de Janeiro, em 1948. O avião, porém, tem uma carga de fumo de rolo e o cheiro forte, associado a um trauma antigo provocado pelo charuto do avô, um antigo médico, o faz abandonar a aeronave numa das escalas no meio do caminho, em Ilhéus, e trocá-la por outra. Não ter seguido viagem o salva: o hidroavião com a carga de fumo sofre um acidente em alto-mar, na costa do Espírito Santo, e todos morrem.

Dedos do acaso
Ou seja, a cada recusa, a cada bifurcação em que o caminho apresenta possibilidades de a vida ser transtornada, as personagens tomaram decisões que, pela via negativa, se revelaram acertadas.

A última narrativa intercalada, com data de 2018, diz respeito à própria Lia e a coloca na situação de revelar aquilo que tinha escondido da amiga durante o jantar. É aí que todos os “nãos” se harmonizam numa grande recusa afirmativa. Até então, o leitor acompanhou a trajetória dela depois do jantar com a amiga e pela noite carioca adentro, com todos os perigos potenciais sendo dispostos e se concretizando num desfecho impressionante. Tanto envolve violência urbana, que ao mesmo tempo se faz presente e impacta, quanto parece também conter cada vez mais um componente qualquer de normalização e aceite que é, no mínimo, inquietante. É possível resignar-se e se conformar diante da ascensão da violência? O preço a se pagar por esse tipo de postura talvez ainda esteja por ser cobrado e deve se revelar alto demais.

O dispositivo de intercalar as narrativas funciona e está muito bem aproveitado no romance breve. A não ser pelo quarto capítulo, que parece ter sido criado apenas para manter o andamento do processo e não avança o enredo, ao se deter em certo ponto do delírio de Lia e dar a impressão de estar ali apenas para cumprir tabela. É talvez o problema com essa sorte de artimanhas: elas precisam seguir o próprio protocolo inventado e isso gera certa artificialidade inevitável que, por mais bem disfarçada que esteja, sempre transparece.

O que talvez destoe um pouco e não funciona tão bem é o tom adotado na escrita, que oscila entre jovial e moderno e, em alguns pontos, muito arcaizante e pomposo. O legado é certo descompasso no ar, como se fosse uma nova camada ou forma de bifurcação possível.

De todo modo, o romance sugere que a maestria da autora é realmente grande e deixa transparente que o interesse despertado pelas histórias — pequenas ou singelas, impactantes ou simples — está sempre à disposição dos narradores para fazer os torneios que tornam a literatura aquilo que ela é: exercício perpétuo de fascinação pela imensa variedade de aventura humana possível.

O livro dos pequenos nãos
Heloisa Seixas
Companhia das Letras
158 págs.
Heloisa Seixas
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1952. É jornalista, tradutora e autora de mais de vinte livros. Passou pela redação d’O Globo e manteve a coluna Contos mínimos, no Jornal do Brasil, por sete anos. Estreou com os contos de Pente de Vênus: histórias do amor assombrado e publicou, entre outros, A noite dos olhos (2019) e Agora e na hora (2017).
Paulo Paniago

É jornalista, escritor e professor. Venceu prêmio Cidade de Belo Horizonte com  Quando termina. Publicou também os ensaios de  Outra viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira e o romance Com meus dentes de cão.

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