Foi lendo as crônicas de Fernando Sabino que conheci Jayme Ovalle. Isso aconteceu em 2002. Mesmo ano em que li o romance O encontro marcado, obra-prima de Sabino, no qual há um personagem chamado Germano, claramente inspirado em Ovalle. Na verdade, Germano é Ovalle.
Em uma de suas crônicas, Sabino cita um livro de Ovalle. Lembro de ter procurado pelo livro e pelo autor em sistemas de busca na internet e também na biblioteca da faculdade. Mas não encontrei nada. Óbvio: Ovalle não chegou a publicar um livro.
Mais conhecido como músico (apesar de não ter passado das 33 composições concluídas, por achar que era o número perfeito, pois 33 é a “idade de Cristo”), Jayme Ovalle inspirou diversos escritores e intelectuais brasileiros que com ele conviveram. Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt, Dante Milano, Murilo Mendes e o próprio Fernando Sabino são alguns exemplos.
Todos eles escreveram sobre Ovalle, ou sobre (e sob) sua influência. Cada um tinha uma história curiosa para contar, como a de quando Jayme Ovalle se apaixonou por uma pomba. Ou de como chorava para convencer seus amigos de que estava certo. “Você está errado. Quer que eu chore, para provar?” E ele caía em pranto. Aos soluços, dizia: “Está convencido agora? Tenho ou não tenho razão?”.
Se estivesse vivo, Fernando Sabino elogiaria efusivamente a publicação de O santo sujo, biografia de Jayme Ovalle escrita por Humberto Werneck. Na crônica Um gerador de poesia, escrita para homenagear o amigo falecido, e de onde foi retirado o “caso do choro”, Fernando diz:
Muito antes de estarmos juntos eu já havia lido os poemas de Bandeira nele (ou por ele) inspirados. E a crônica “O Místico”, a propósito de sua partida para Londres. E a “Nova Gnomonia”, sobre sua classificação de todos os seres humanos em cinco categorias. Schmidt já me falara das “noivas de Jayme Ovalle”, não só através de seu belo poema, mas pessoalmente, contando casos pitorescos com ele vividos em noites de boemia na Lapa. Já ouvira de Di Cavalcanti as suas histórias de Paris. Conhecia “Azulão”, “Berimbau”, “Modinha”, sabia de sua fama de músico e poeta. Mas era ainda um mito, de contornos imprecisos, cuja existência eu atribuía em parte à imaginação criadora de seus amigos.
Até que vim conhecê-lo pessoalmente — e foi um impacto para a minha vida. Nosso convívio diário durante quase três anos, morando a princípio no mesmo hotel em Nova York, era um deslumbramento permanente para a minha sensibilidade. Bebíamos juntos todas as noites, almoçávamos juntos todos os dias, e embora a diferença de idade entre nós fosse de mais de trinta anos, éramos como dois velhos amigos.
A crônica é quase um perfil de Ovalle. E termina assim:
Vinicius acaba de me telefonar da Bahia. Peço-lhe que me defina Jayme Ovalle, e ele me responde imediatamente:
— É o poeta em estado virgem. A mais bela crisálida de poesia que jamais existiu, desde William Blake. É o mistério poético em toda a sua inocência, em toda a sua beleza natural. É vôo, é transcendência absoluta. É amor em estado de graça.
Tal como aconteceu comigo, Humberto Werneck descobriu Ovalle quando adolescente. E, assim como eu, ficou deslumbrado ao saber da existência de uma figura tão peculiar. Do deslumbramento adolescente nasceu a vontade de pesquisar sobre aquele homem que às vezes até mesmo seus amigos diziam não ter existido. Essa vontade de saber resultou no livro O santo sujo.
O trabalho de Werneck não foi fácil. Afinal, aqueles que melhor poderiam falar sobre Ovalle já estão com ele, conversando longamente, de sepultura a sepultura, no silêncio das madrugadas. Por sorte, todos aqueles que foram irradiados pela energia de Ovalle escreveram sobre ele. Tais escritos (poemas, crônicas, romances) serviram de apoio para a biografia. Mas só isso não resolveria o problema. Humberto precisou mergulhar na vida de seu personagem, e suas pesquisas se estenderam por quase vinte anos — mesmo que não ininterruptos.
A biografia não tem início no nascimento de Ovalle, nem se restringe apenas a seus passos. Humberto Werneck garimpou a origem da família Ovalle e, além de narrar a vida do músico, faz uma bela retrospectiva de toda uma época, seus costumes, seus personagens e suas peculiaridades.
Nascido em Belém do Pará, em 4 de agosto de 1894, Jayme Ovalle foi o terceiro dos sete filhos do casal Mariano Ernesto Ovalle e Raymunda Elisa Coelho. Em 1911 sua mãe, viúva pela segunda vez, resolve mudar-se para o Rio de Janeiro. Os filhos iriam depois que ela se estabelecesse por lá. Por conta de uma série de coincidências (e algumas influências), ele consegue um bom emprego na então capital do país.
Àquela época, a cidade era só novidade. Tudo o que fosse “novo” estava lá ou primeiro “aparecia” lá. Não poderia ser ambiente melhor para o jovem Ovalle. Na cidade com 928 mil habitantes em 1911, os círculos de intelectuais e artistas não eram tão espalhados, dispersos, como hoje. Tudo era mais concentrado, todos eram mais próximos, no sentido de que não era difícil dois ou três grupos de amigos volta e meia se encontrarem nos mesmos lugares. Foi assim que Ovalle conheceu diversas personalidades e conviveu com Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga, por exemplo.
Mais lembrado pelas histórias engraçadas que protagonizou e pelas declarações de efeito que sempre proferia, Ovalle tem outras facetas reveladas em O santo sujo, como a do artista que não consegue dar forma a sua obra. Mário de Andrade, em carta a Manuel Bandeira, afirma:
O que fica mesmo por enquanto de bem firme na minha opinião é que nunca vi incapacidade criadora artística maior que a dele. Digo artística porque no pasticho musical popular (ele não é popular e daí a palavra pasticho) ele atinge a coisas não tem dúvida que estupendíssimas.
É incrível como uma pessoa tão marcante e curiosa como Jayme Ovalle quase deixou de existir. Afinal, ele estava na memória e nos textos de alguns escritores brasileiros, e quase todos eles já não estão entre nós. E as obras desses escritores, por mais que surja alguém dizendo o contrário, já não são tão lidas quanto antigamente. Mais alguns anos e não teríamos vestígios de Ovalle. O santo sujo chega para corrigir esta homérica “falha” do destino.