Nazismo e ateísmo para crianças

Um menino pouco verossímil em Auschwitz; um menino diante de uma possibilidade para a nossa existência
John Boyne, autor de “O menino do pijama listrado”
01/02/2008

“Bruno é um menino da minha idade (nove anos). Ele e sua família se mudam para Haja-Vista e deixam Berlim para trás. Quando chega lá, Bruno odeia o lugar e quer voltar imediatamente pra Berlim. Depois de algum tempo, ele arranja um amigo chamado Shmuel, um garoto com pijama listrado, ou seja, um prisioneiro. Um dia Bruno quis passar pro outro lado, onde mora seu amigo, para conhecer o lugar. Mas aí ele teve que vestir a mesma roupa que Shmuel para conhecer seu lar. Quando Bruno passou pro lado de lá, foi junto com os presos e seu amigo para um quarto escuro. Depois disso ninguém nunca mais soube de Bruno.”

O parágrafo acima é a síntese do livro O menino do pijama listrado, feita por minha filha Luísa, com nove anos recém-comemorados. Ao presenteá-la com o livro, atirei no que vi e matei o que não vi. Ou, pelo menos, o que não sabia antes de ler, eu próprio, o livro. A intenção inicial era fazê-la ter um primeiro contato com o assunto, a partir do qual discutiríamos, até onde sua atenção infantil me concedesse a honra. Nada melhor do que um best-seller dirigido ao público infanto-juvenil, pensei, ainda mais que vai virar filme em 2008.

Entretanto, à medida que seguia as agruras do protagonista Bruno, o menino que se tornou amigo de Shmuel, esse sim o do pijama listrado, fui tomado por uma sensação desconfortável do tipo “ou algo está muito errado aqui ou eu estou ficando velho e ranzinza”. Bruno, um alemãozinho bem alimentado e educado, com nove anos de idade bem no meio da Segunda Guerra e filho de um oficial nazista de alta patente, é estúpido. Bruno é a criança-personagem mais incrivelmente estúpida que um escritor já foi capaz de criar.

Como pode um garoto alemão de noves anos não saber pronunciar corretamente as palavras Der Führer e Auschwitz? Bruno diz The Fury (na versão original em inglês) ou O Fúria, e Out-With ou Haja-Vista (!!??). Como pode esse garoto imaginar que Heill Hitler seja “uma outra forma de dizer ‘Bem, até logo, tenha uma boa tarde’”? Mas o mais bizarro: como pode não saber que estava num campo de concentração (um presídio, vá lá) e que todas aquelas pessoas com pijamas listrados eram prisioneiros?!?

Depois disso, mal contive a angústia pra perguntar à minha filha o que ela havia entendido do livro. Pra minha satisfação, confirmou minhas expectativas: Haja-Vista, tal como estava descrito, só podia ser um presídio, e as pessoas de pijamas listrados só poderiam ser os prisioneiros. Claro, a conexão dos nomes Haja-Vista com Auschwitz e O Fúria com Der Führer, nem pensar. Mas que O Fúria era “o chefe” ficou-lhe óbvio. O porquê daquelas pessoas estarem presas ali também ficou por minha conta explicar (ela já tinha ouvido a palavra judeu várias vezes, mas, numa casa de católicos, nunca se preocupou em saber o que significava, aliás, provavelmente o mesmo se aplica à palavra católico).

Conclusão: minha filha é um gênio. Ou: as crianças brasileiras são muito mais inteligentes do que as alemãs. Ou ainda: as crianças alemãs da metade do século 20 eram burras. Ou, quem sabe: de duas, uma, ou John Boyne escolheu mal a idade de seu personagem, ou o caracterizou pessimamente. Isso sem falar nos encontros às escondidas entre Bruno e Shmuel, incontáveis vezes, sem que fossem descobertos uma única. Isso num campo de concentração como Auschwitz.

Ao par desses defeitos, O menino do pijama listrado entretém. Escrito rigorosamente de acordo com os manuais de “Como prender a atenção do leitor”. E prende mesmo.

O que me traz à segunda leitura de férias, George e o segredo do universo, de autoria de Lucy Hawking, em parceria com seu pai, o famoso físico Stephen Hawking, além de Cristophe Galfard, também físico. Embora seja o dobro do tamanho de O menino do pijama listrado, George e o segredo do universo é mais leve. Não só porque tem várias ilustrações (O menino… não tem nenhuma) que lembram as do Pequeno príncipe, e também obedeça ao manual do escritor de língua inglesa de sucesso. Mas principalmente porque o assunto é mais leve. Ficção científica. Quer dizer, ciência de verdade camuflada em ficção científica.

A intenção é clara. Educar o leitor nas áreas de física e astronomia. E de quebra algumas lições morais também, já que se trata de literatura infanto-juvenil. As “aulas” entremeiam o livro na forma de quadros, gráficos e belíssimas fotos que podem ser visitadas depois de acabada a leitura sem prejuízo algum à compreensão. Temos aí um problema: embora a estória contenha elementos realistas ela é essencialmente fantasiosa. A criança/jovem pode terminar como começou: ignorante (ou quase) no assunto. Não há como não parar para ver as fotos, mas o mesmo não pode ser dito quanto aos quadros explicativos, todos “chatos”.

A mensagem de mais fácil apreensão é: não vale a pena contrapor ciência e vida, imaginando que a primeira é sempre uma ameaça à última. Os “verdes” e os cientistas bonzinhos precisam juntar forças para salvar a Terra e ainda manter as buscas por outro planeta viável. Mas há outra mensagem, muito mais fascinante e que torna essa uma leitura obrigatória para pais críticos e seus filhos. É apenas subliminar ao longo do livro, apresenta-se-nos por meio das fotos do universo, dos números impressionantes. Mas ao final mostra a cara:

Há bilhões de anos havia nuvens de gás e poeira vagueando pelo espaço cósmico. De início essas nuvens eram muito dispersas e espalhadas. Mas, com o passar do tempo e com a ajuda da gravidade, elas começaram a se tornar mais densas… E então vocês podem perguntar: e daí? O que uma nuvem de poeira tem a ver conosco? Por que nos importamos com o que aconteceu há bilhões de anos no espaço cósmico? Nos interessa? Bem, interessa, sim, porque aquela nuvem de poeira é a razão de estarmos hoje aqui. (…) Independentemente das nossas crenças, somos todos filhos das estrelas.

Esse é um trecho do discurso que George faz para concorrer a um computador, no finalzinho do livro. Notaram a falta de algo? Isso mesmo. Deus. Um garoto britânico diz com todas as letras que a origem do universo (e nossa) nada tem a ver com um deus (ou O Deus) e o que acontece? Ele ganha o concurso!

Aqui vale um esclarecimento: não é que eu seja ateu. Não tenho coragem suficiente para isso[1]. Também não é o caso d’eu ser um pai radical pró-ciência e querer que minha filha também o seja. É que há algo mais importante. Algo verdadeiramente sagrado: a liberdade de pensamento. Minha filha não precisa ser atéia, mas deve ter consciência de que essa é uma possibilidade. Nesse sentido considero George e o segredo do universo uma leitura riquíssima. Pra você e seu filho.

Nota
[1] Estou com Pascal: é melhor apostar que Ele existe, pois se Ele não existir, não perco nada e se existir, apostei certo. Mas se aposto que não existe e Ele existir, estou lascado.

O menino do pijama listrado
John Boyne
Trad.: Augusto Pacheco Calil
Companhia das Letras
192 págs.
George e o segredo do universo
Lucy e Stephen Hawking
Trad.: Laura Alves e Aurélio Rebelo
Ediouro
306 págs.
Flávio Paranhos

É escritor, autor do livro de contos Epitáfio.

Rascunho