É sabido que a literatura brasileira é de forte tradição realista. Nossa produção privilegia o realismo literário e marginaliza textos fora desse modelo. Nesse sentido, é notável a recente onda de narrativas de teor distópico na literatura brasileira contemporânea. Podemos citar O último gozo do mundo, de Bernardo Carvalho, A extinção das abelhas, de Natália Borges Polesso, e O deus das avencas, de Daniel Galera, como exemplos de obras com aspectos distópicos publicadas nos últimos anos. Essa crescente presença de distopias na contemporaneidade pode ser entendida com uma possível sensação de esgotamento do paradigma realista entre escritores atuais.
Com A segunda mãe, Karin Hueck junta-se a este grupo de ficcionistas. No centro do romance, o primeiro de Hueck, está uma especulação intrigante: e se mulheres governassem a sociedade? Situada em um futuro distante, a narrativa apresenta um mundo regrado pelo sexo feminino. Mulheres ocupam todas as posições de poder enquanto homens vivem em cativeiro, sendo usados unicamente para fins de reprodução. Com esse enredo, a autora cria um universo ficcional provocante e com potencial de desafiar as certezas de leitores. Infelizmente, tal potencial não é inteiramente realizado.
Não havia como negar a violência. Uma em cada cinco mulheres estupradas ao longo da vida. Cinquenta mil assassinatos ao ano no país. E ainda havia guerras. Combates travados por anos a fio por soldados uniformizados, pilotos anônimos desmanchando bombas no ar. Líderes autoritários assinando papéis timbrados que ordenavam o extermínio de etnias inteiras. Ditadores que tiravam do povo para dar aos seus. Presidentes que faziam troça de pestes. Generais, autocratas, déspotas, genocidas, terroristas, todos homens. Eles existiram, sim, não havia dúvida, eram exatamente desse jeito que Rosa tinha descrito, e quase levaram a humanidade à ruína.
Assim é apresentado o antigo mundo regido por homens em A segunda mãe. Ao ser indagada por Rosa, sua pequena filha, sobre a existência dos homens, Madalena, a protagonista, lembra do que estudara na escola. Para ela, homens também são uma ideia abstrata, seu conhecimento pautado por livros didáticos. Isso é porque o mundo figurado por Hueck não é em um futuro próximo. O leitor é informado que houve uma revolução em que “decidiram que seria melhor eliminar o cromossomo Y” e como “agora só nasciam homens em condições controladas […], em quantidade suficiente apenas para repovoar a nação”. Hueck não desenvolve para além disso a questão da revolução na trama, mas estabelece de maneira clara seu motivo: a violência gerada por homens.
Menos violentas
Aqui surge o aspecto mais instigante de A segunda mãe. Em narrativas distópicas, geralmente cria-se um mundo imaginário localizado em um tempo que o leitor contemporâneo ao romance encara como pior. Contudo, se o livro de Hueck representa uma sociedade em que a violência foi erradicada porque ela é inerente ao homem, como o leitor pode considerá-la ruim? A resposta está em como A segunda mãe questiona justamente a certeza de que mulheres são essencialmente menos violentas do que homens. O grande potencial da obra está aí, mas a autora não o leva a cabo.
Na primeira parte da narrativa, Hueck constrói de modo habilidoso seu universo. Ela posterga a revelação de que se trata de uma sociedade sem homens, optando por criar sinais de que há algo de diferente sem expor a situação por completo. Isso ocorre na caracterização das personagens ao início da narrativa como assombradamente iguais, na ausência completa de personagens masculinos, no adiamento em comunicar ao leitor que Dedé é de fato Andrea, esposa de Madalena. Hueck elabora tão bem a primeira metade do romance que a importância de certas informações, como o ocorrido durante uma visita das personagens a um novo alojamento onde homens serão mantidos, só se torna clara numa segunda leitura.
Falhas
É na segunda metade do romance, após a revelação do aspecto distópico, que a narrativa expõe suas falhas. Em específico, Hueck não explora a fundo as implicações da sociedade imaginada por ela, tratando-as de maneira superficial. Há um lugar-comum que acredita que a sociedade seria melhor governada por mulheres. Apesar de fazer parte de um certo discurso feminista, o argumento apoia-se numa ideia essencialista que enxerga mulheres como seres pacíficos. Entretanto, mulheres, como qualquer outro ser humano, são complexas e capazes de atrocidades. No livro, Hueck rodeia esse ponto, mas não o encara totalmente.
Madalena é alienada. Casada com uma mulher em posição de poder, ela goza de privilégios econômicos e sociais. Dessa maneira, a personagem serve à autora como ferramenta para desvendar o lado sombrio da sociedade criada em A segunda mãe. Isso é feito por meio da amizade da protagonista com Tomé, jovem engajada em um movimento crítico ao governo. É com a representação da amizade e das descobertas de Madalena que Hueck figura a violência do estado autoritário que prende e tortura opositores e desaparece com meninos recém-nascidos. Além disso, é também na relação entre as duas personagens que desigualdades socioeconômicas são representadas na narrativa. Ao contrário de Madalena, Tomé é pobre, o que a torna suscetível às explorações do governo.
No entanto, tais questões são pouco exploradas por Hueck em um romance que acaba por ser muito breve. Os pontos de tensão mencionados, cuja elaboração enriqueceria o romance ao adicionar nuance à narrativa, ocupam a periferia da trama. Quando se trata das críticas feitas à sociedade representada no livro, Hueck dedica maior espaço a lembrar o leitor de que homens também têm direitos e não podem ser mantidos em cativeiro. Argumento válido, mas que oferece menos matéria literária do que a exploração da capacidade de violência do ser humano, homem ou mulher.
O ponto mais fraco de A segunda mãe ocorre justamente em seu clímax. No ápice da narrativa, Hueck opta por fazer uma revelação configurada com uma grande reviravolta. O intuito parece ser o de gerar um final impactante, mas o oposto ocorre. A revelação é insensata, gerando mais dúvidas do que respostas. Ainda mais, ela põe por terra a já parca investigação da abrangência da dimensão violenta do ser humano. O resultado é um final decepcionante para uma narrativa promissora.
A epígrafe de A segunda mãe é de Grande sertão: veredas. “A natureza humana não cabe em nenhuma certeza”, escreveu Rosa. A citação é um bom norte para A segunda mãe. Ela nos lembra que seres humanos são complexos, incompletos e longe de definições essencialistas. Hueck parece querer enveredar por esse caminho em seu romance de estreia, mas a execução deixa a desejar.