Com Oswald de Andrade homenageado na Flip, a fome volta à agenda literária. O paulista ampliou o significado do termo, alçando-o a fundamento antropológico de nossa identidade plural. Contemporânea e anteriormente a ele, outros autores devotaram atenção ao tema, como os modernistas Flávio de Carvalho, Raul Bopp e Vicente do Rego Monteiro. Já no final do século 19, Raul Pompéia declarou que “a fome é a suprema doutrina”, embora com isso alvejasse a competitividade desenfreada, ao passo que Oswald atacava a ilusão do purismo identitário. Avaliadas as diferenças, a alusão à fome sempre se quer polêmica.
Igualmente inflamado é A fome (1890), de Rodolfo Teófilo, primeiro romance brasileiro sobre a mazela. Enquanto posteriormente se metaforizaria a fome, convertida em estatuto universal, Rodolfo tornou-a metonímia das penúrias do Ceará. A ambientação particularizada difundiu o juízo de que se tratava de um romance regionalista, cujo excesso de cor local comprometia a legibilidade, seja pelas barreiras dialetais, ou pelo interesse restrito do assunto. No entanto, nele são raras as marcas localistas e, havendo-as, o narrador prestará pronto socorro (didatismo pertinentemente criticado por Adolfo Caminha). Desse modo, o regionalismo mais ostensivo, realçado pelo subtítulo do volume (Cenas da seca no Ceará), esmorece sob a carga generalizante do título.
Naturalista é outro qualificador taxativo para Rodolfo Teófilo. Lúcia Miguel-Pereira, por exemplo, condena sua subserviência ao receituário de Zola, apontando, dentre outros delitos, o cientificismo inflacionado e o escândalo gratuito. De fato, A fome descamba em alguns excessos, insuficientes, contudo, para desprezá-lo. Anômalo, o zolismo de Rodolfo não é somente livresco. Senão, vejamos.
O autor de Germinal delegava à literatura a higienização da sociedade, cabendo aos literatos conhecer empiricamente a realidade e recortá-la no livro. A mimese assumiria feição denunciadora, já que em tese prescindiria de intervenção subjetiva. Em muitos casos, porém, nossos naturalistas apenas substituíram o Montmartre pela rua do Ouvidor. Esqueciam que o mestre, conquanto infenso à imaginação, apregoava a originalidade e o garimpo de um estilo em prol de uma união íntima entre “a realidade da cena e a personalidade do romancista”. Sob tal ótica, Teófilo foi obediente pupilo.
Nascido na Bahia em 1853, Rodolfo cresceu e viveu no Ceará, onde presenciou uma das maiores secas da região, à qual dedicou, após a estréia com o Compêndio de botânica elementar (1878), uma História da seca no Ceará 1877-80 (1884), reservatório documental para A fome. Portanto, a experiência vivida, e não lida, transforma-se em livro, empirismo ratificado pela anterioridade do estudo histórico à criação literária.
Contudo, se A fome tratasse de uma estiagem nordestina, por que a denominação abrangente? Afinal, a seca é menor do que a fome, que, por sua vez, não é a única consequência do fenômeno. Essa mudança de foco no título parece atender às solicitações do gênero romanesco. Com efeito, o livro extrapola o perímetro cearense e examina diversas nuances da fome. Uma delas, a mais imediata, enfatiza o aspecto instintivo, matizando-o entre o desejo alimentício e o apetite sexual. Tal perspectiva comparece já no início da obra, quando Manuel de Freitas e sua família deixam o sertão: a esposa Josefa, Carolina, a filha mais velha, e três filhos não nomeados. O narrador se esmera em obstar o êxodo, hipertrofiando o trágico até avizinhá-lo do cômico: morcegos estraçalham criança; urubus devoram mulher viva; cachorro se banqueteia com cadáver do dono; homem come o antebraço. Nos requintes de crueldade, descritos em sádica microscopia, os animais agem agressivamente como para destituir o homem de atributos dominadores, reduzindo-o à besta. Perante tais circunstâncias, Freitas tenta inutilmente ajudar os moribundos, oferecendo-lhes no máximo indigna sepultura.
Na referida cena de autofagia, mesclam-se ramos semânticos da fome. Em frágil abrigo sertanejo, Freitas tenta garantir a segurança familiar e a pureza da filha. Certa noite, vislumbra um quadrúpede a farejar o acampamento e sai para espantá-lo. Constata bandeirianamente que “não era um bicho mas um homem que a fome reduzira a bicho”. Enquanto o pai vela a virgem, o invasor vê nela um alimento, representando Carolina o quiprocó entre as fomes literal e metafórica. Impetuoso, Freitas fere o antebraço do adversário, que suga o próprio sangue, come a parte golpeada e morre. Manuel carrega o corpo fétido e enterra-o num formigueiro.
Cenário escabroso
A indigência, extensiva ao post-mortem, agrava-se na terceira parte do livro, Misérias, quando, já em Fortaleza, Manuel se assombra com a decadência da capital, onde se amontoam cadáveres insepultos e esmoleres. O cenário escabroso, aparentemente ficcional, foi testemunhado por Rodolfo, o que reforça a verdade de seu naturalismo. A chegada de Manuel ao litoral comprova-lhe que a calamidade é antes política do que natural. Doravante, a indústria da fome protagoniza o romance, infestando-o de “zangões do erário”. Não por acaso, Josué de Castro dedicará Geografia da fome a Rodolfo Teófilo.
Possivelmente, o leitor já flagrou nexos entre A fome e outras obras nacionais. Se os retirantes silenciosos, com crianças sem nome e invasões a casas abandonadas (e com algum discurso indireto livre), recordam Vidas secas, a seqüência de mortes de que é espectador aproxima Freitas de Severino. De fato, o título de 1890 é a matriz desses livros e sobretudo do romance regionalista de 1930. Não afirmamos que Graciliano Ramos, João Cabral, Rachel de Queiroz e outros copiaram Rodolfo Teófilo, mas, como os grandes escritores criam seus antecedentes, os cactos modernistas plantam a raiz cearense. Conforme bem observado no competente prefácio ao livro, Rachel de Queiroz, que censurava os exageros do conterrâneo, inseriu em O quinze canibalismo similar ao de A fome, em que um homem, não dispondo de sal, devora uma criança com mel!
Os possíveis contatos com Graciliano e Cabral se alocam no início do livro, onde, malgrado as misérias abundantes, predomina uma contenção estilística (incomum no fim de século) flertando isomorficamente com a secura descrita. Na segunda parte, A casa negreira, se sobressai a dicção social, delatora da politicagem da fome, seara muito mais palatável a Graciliano e a Cabral; todavia, o enredo ficará progressivamente adiposo.
A casa negreira interliga dois núcleos narrativos. Um, centrado em Inácio da Paixão, primo de Manuel a quem ele confiara a venda de escravos: chegando a Arronches, Inácio passa os negros ao comendador Prisco da Trindade e, em vez de reverter o saldo a Freitas, gasta-o jogando. Envergonhado, vai trabalhar nos seringais paraenses (visitados por Teófilo em Os paroaras, de 1899). Ao retornar ao Ceará, obtém perdão de Manuel, cujo estoicismo não admite rancor ou qualquer sentimento pouco nobre, quita a dívida, mas é punido pelo destino, tendo a família dizimada pela varíola.
Em A fome, todo vício é castigado. O trabalho e a família, por outro lado, embasam a resistência às vicissitudes. Inácio abandona a casa; entretanto, se redime pelo trabalho. Já Manuel, herói messiânico, nunca abdica desses valores, chegando a labutar numa pedreira, a despeito da idade avançada. Ele conduz todos à salvação, simbolizada, no final do livro, pela chegada do inverno e pelo retorno ao sertão, não mais a pés calejados, mas numa locomotiva, marca do progresso obstinadamente alcançado e índice da sofreguidão do romancista em concluir um enredo emaranhado.
O segundo núcleo denuncia a cupidez — financeira e sexual — envolvida no tráfico negreiro. Uma passagem muito contundente retrata o exame médico a que os compradores submetiam as mercadorias. Dos homens checavam-se principalmente dentes e músculos; das mulheres, a virgindade. Misto de política, economia e vileza, a consulta evitava prejuízos com eventuais filhos das negras e, não menos importante, certificava o futuro senhor do prazer da primeira cópula nalguma noite lúgubre de senzala. Inspecionando uma das escravas, o médico contratado por Prisco excitou-se, e “o toque foi mais prolongado, menos leve do que devia ser e a tênue membrana em parte se rompeu”.
Abolicionista, Rodolfo penaliza os algozes: a mulher de Prisco tem pesadelos com africanos a perseguindo, e seu filho padecerá de epilepsia, o mesmo mal de Felipa, escrava cuja filha fora torturada ao bel-prazer da senhora. Essa reversibilidade punitiva assemelha-se à degustação do homem por animais ou ainda ao arruinamento da capital (“Fortaleza (…) tem o lúgubre aspecto das povoações do interior”), pois, em todos os casos, se fratura o centro de poder.
Outro vício invectivado é o alcoolismo de Simeão de Arruda, comissário distribuidor de víveres (aliás, o combate ao álcool não é só literário: Rodolfo criou a cajuína, bebida idealizada como substitutivo saudável à aguardente). A ele Manuel recorre para obter auxílio, e o funcionário se encanta com sua filha. Tramando saciar o desejo, e não ajudar os famintos, manda construir-lhes uma casa, encenando mais um jogo de fomes.
No bojo de Simeão surge uma avalanche de peripécias, que tanto impossibilitam sua aproximação de Carolina, quanto amplificam a saga dos retirantes. Atabalhoado, o narrador encadeia personagens ralos num artificialismo folhetinesco: aparições súbitas, viagens inexplicáveis, cartas extraviadas e outras estripulias movem o entrecho. Na galeria dos títeres alegóricos estão Edmundo, moço virtuoso e futuro marido de Carolina, mero contraponto moral de Arruda; padre Clemente, religioso desapegado, antípoda de Quitéria do Cabo, ambiciosa beata-feiticeira; Benardina, escrava desaparecida cujo resgate por Inácio permite-lhe remir a hombridade perdida; Gervásio, personagem totalmente expletivo. Outro ingrediente essencial desse rocambole são as doenças, aparadoras dos farrapos narrativos: o beribéri mata Simeão; a varíola, os três filhos menores de Freitas, a família de Inácio e Quitéria. Eventualmente, porém, a peste atinge vigor estilístico: “Freitas saiu do lazareto com a família. A morte havia reduzido o número de filhos, mas ainda eram muitas as pessoas que tinha de alimentar”.
Atipicamente, a varíola foi debelada antes na literatura do que na vida: se em 1890 A fome tratou da doença, Rodolfo Teófilo, farmacêutico de formação, só o faria em 1900, ao criar a Liga Cearense contra a Varíola e custear uma campanha de vacinação em massa (como a de Oswaldo Cruz em 1906), incomodando a oligarquia local. Esses dados biográficos, detalhados por Lira Neto no posfácio ao romance, atestam o pragmatismo do escritor. Dessa objetividade imperiosa decorrem suas censuradas intervenções nas obras, enodoando-as com explicações e estatísticas, bem como sua indisposição ao intelectual de gabinete, encarnado por obeso sacerdote (oposto do zeloso e delgado padre Clemente) que lê pachorrentamente diante dos famélicos: “Freitas havia chegado à porta precisamente quando o cura concluía um período. Cristo teve, como das outras vezes, um olhar súplice e terno, e o fazendeiro recebeu uma olhadela de tédio e repreensão”. Nessa reação à inércia e à gordura (verbal, inclusive), convém lembrar o Teófilo da Padaria Espiritual, agremiação cultural por ele presidida a partir de 1896 e que se pautava pelo dinamismo, pela comunicabilidade e pela resistência. Sintomaticamente, o periódico do grupo chamava-se O Pão.
Embora carente de aprofundamento psicológico (tônica da obra homônima do norueguês Knut Hamsun, também de 1890), condizente de resto com a bestialização humana, A fome permanece um romance legível, felizmente reeditado pela Tordesilhas, com apuro gráfico e intelectual: além dos estudos de apoio, há preciosas notas de rodapé elucidando aspectos históricos, lingüísticos e editoriais. A única ressalva que fazemos é à exclusão não justificada do prefácio de Virgílio Brígido, que, constante da primeira edição, documenta a recepção do livro em seu tempo.