Nascido para perder

Nossos perdedores são melhores que os perdedores dos outros. É uma das lições da biografia de Lima Barreto, escrita por Francisco de Assis Barbosa
Lima Barreto, autor de Recordações do Escrivão Isaías Caminha
01/02/2003

Metia o pau em qualquer governo, mas não catava mulher. Nasceu “sem dinheiro, mulato e livre”. Mãe morta, pai louco, um emprego de merda. Escrevia pra caralho, mas ninguém lia. Não trocava de camisa por meses. Não trocava nada por uma birita — e bebeu até cair. Nome: Afonso Henriques de Lima Barreto. Com vinte e poucos anos, ele sacou que estava fazendo hora extra no mundo. Tinha um fogo dentro que só apagava com água que passarinho não bebe. Então tratou de apressar a conta. E caía matando na parati, cana que era o goró mais loser da época, comecinho do século 20. Como Frank Sinatra no clássico All the Way, ele falaria: “Don’t call me a doctor. Call me a drunk”. Como Nicholas Cage em Leaving Las Vegas, para LB, beber até morrer não seria obra do acaso — mas um plano muito bem definido.

Vida de pingente
A agonia do criador de Policarpo se arrastou anos — até os 41, em 1922. Mas é contada em tom épico por Francisco de Assis Barbosa, jornalista que o biografa em A vida de Lima Barreto. Um livraço que, ao contrário do biografado, pára em pé. A vida… foi elogiado por figuras do porte de Sergio Buarque de Holanda por “reunir as virtudes de uma genuína biografia literária às de uma reportagem perfeita e em grande estilo”. É mesmo. Barbosa desce a detalhes: a ascendência do jornalista mulato, seu rastro pela imprensa alternativa da época, seu diário, os livros de sua biblioteca, suas travações sexuais, sua burocrática paixão pelo anarquismo, seu cotidiano roto, suas horas infelizes trancado no quarto espiando pela janela as árvores que sussurravam feito fantasmas dentro do delirium tremens no mais melancólico de todos os subúrbios — um lugar chamado Vila Quilombo, Rio, Zona Norte.

“À tarde, o enterro saiu, levado lentamente pelas mãos dos raros amigos que lá foram. Mas, ao longo das ruas suburbanas, de dentro dos jardins modestos, às esquinas, à porta dos botequins, surgia, a cada momento, toda uma foule anônima e vária que se ia incorporando atrás do seu caixão, silenciosamente. Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da vizinhança (muitos eram afilhados do escritor), comerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até borrachos, com o rosto lavado em lágrimas, berrando, com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do companheiro de vício e de tantas horas silenciosas, vividas à mesa de todas essas tabernas…”

Era Dia de Todos os Santos, 1922, mesmo ano da Semana Modernista. Lima Barreto tinha nascido em 1881, num 13 de maio, sete anos antes da abolição. Morreu com 41 anos, como Edgar Allan Poe. Detalhe: 48 horas antes do próprio pai. João Afonso Henriques, criador do primeiro manual de tipografia da Imprensa Oficial, havia ficado louco vinte anos antes — um peso que Lima Barreto não conseguiu suportar muito tempo: foi a doideira do pai que o fez se aliviar na manguaça.

Dedo duro
Mas calma. A vida… não é crônica de Nelson Rodrigues nem roteiro de O ébrio, com Vicente Celestino. O buraco é bem mais pra baixo. LB foi o mais dostoievskiano dos escritores brasileiros da primeira metade do século 20. A primeira frase de Memórias do subsolo (“Sou um homem doente… Um homem mau.”) poderia ter sido escrita pelo terceiro oficial da Secretaria do Exército, cargo que LB exerceu, entre copo e outro, durante uns 15 anos. LB foi o burocrata clássico. Mocozado atrás da escrivaninha do ressentimento, LB fazia coisas como o brilhante e rancoroso Recordações de Isaías Caminha, um roman à clef — leia-se baseado em fatos reais. Do mesmo jeito que Dante Alighieri fez na Divina comédia, ele retratava, satírico, todas as figuras eminentes de seu tempo, entre políticos, jornalistas, artistas e aspones, pretendendo com isso fazer muita polêmica na provinciana Rio de Janeiro de 1900. Não rolou: ninguém falou do livro, a treta ficou restrita aos botecos, e LB ficou queimado com toda a grande imprensa da época.

A grande contribuição de LB para a literatura foi sua ausência de beletrismo. O lance para ele era escrever de um jeito tosco, ácido, áspero, intratável. Se possível, com erros de ortografia e gramática. Uma tosquice milimétrica, claro. LB estudava filosofia, tinha lido todos os clássicos e manjava francês e inglês: sabia do que estava falando ao falar errado. Não queria ser social nem psicológico, nem experimental nem vanguardista: queria simplesmente ser sincero, tendo a sinceridade como uma arma ideológica — fazendo sua literatura quase resvalar na panfletagem.

A vida…, além de devassar a existência do escritor favorito do paulistano João Antonio — sinuqueiro borracho que lhe dedicou simplesmente todos os seus livros, a começar pelo essencial Malagueta, Perus e Bacanaço —, é também uma grande panorâmica do Rio de Janeiro e da vida artística e política brasileira do início do século 20. Impiedoso e leal como todo bom repórter, Barbosa sobe e desce e desce e desce sempre como um ombro amigo de Lima Barreto, nunca acima nem abaixo dele. Não trata o biografado nem com comiseração nem com puxasaquismo. É apenas um puta testemunho de um cara que colocou todas suas fichas na literatura. Cavalo errado. Da mesma linhagem que Van Gogh, LB só começou a ser valorizado pela crítica depois de sua morte — era o elo perdido entre o naturalismo positivista do século 19 e o modernismo coloquial dos anos 20.

Eu não presto
Impossível, claro, não lembrar da biografia de outro notório loser — Garrincha, a estrela solitária. Mas a bela bio de Ruy Castro, ao contrário da de Barbosa, somente usa 50% do livro em desgraças. Os outros 50% são dois títulos mundiais e andanças alucinantes com mulatas do porte de Elza Soares. Lima Barreto não. Foi 100% loser (melhor, 99%). Era tão mal-humorado que detestava futebol, por exemplo — para ele, coisa de colonizados. Aliás, como outra “moda” que ele torcia contra: o feminismo, então nascente, que, para ele, era só mais um artigo macaqueado do mundo civilizado. Como ele evoluiu desse preconceito para a misoginia pura, do naipe “mulheres, tô fora”, Barbosa é meio reticente. Talvez, LB fosse daqueles caras que, porra, nunca se dão bem com as mulheres e não comem ninguém mesmo.

Cana, andarilhagem, discurso anti-establishment, mulheres de menos… Talvez você se lembre de um outro loser notório, Charles Bukowski. Mas o velho Buk morreu celebridade, com uma Mercedes na garagem e mais de 1 milhão de dólares na conta. Nossos losers são melhores que os losers dos outros. LB se odiava. Queria ser um dândi ao contrário: raramente trocava de roupa, vomitava nos próprios panos e saía andando, andando, andando, andava o Rio de Janeiro inteiro, da zona norte à zona sul, unindo Leblon a Vila Quilombo com seu passo de caranguejo, a cabeça branca, a língua mexendo sozinha, as rugas em volta dos olhos, sorrisos involuntários, os dentes moles, a sede, a sede.

À parte isso, ele tinha todos os sonhos do mundo. E transferiu furiosamente para o papel — em 17 livros organizados, pela primeira vez, pelo próprio Barbosa. LB escrevia com raiva, amor, devoção, olho no olho, sem medo nem esperança. Infelizmente, sua obra maior, Cemitério dos vivos, escrito a partir de duas longas temporadas que o escritor passou em hospícios, não foi concluída. Pois poucas vezes um escritor desceu aos infernos de uma autoconsciência doente como LB, nesse curto começo de romance. LB não teve medo de beber seu próprio veneno, até a última gota. E destilou esse veneno com uma tinta rara, crua — e original.

Uma puta vida que, pode crer, daria um filmaço. Que, claro, nunca vai ganhar nenhum Oscar.

A vida de Lima Barreto
Francisco de Assis Barbosa
José Olympio Editora
458 págs.
Ronaldo Bressane

É escritor e jornalista, autor da trilogia de contos A outra comédia (Infernos possíveis, 10 presídios de bolso e Céu de Lúcifer) e do volume de contos O impostor. O texto publicado nestas páginas é o 15.º capítulo de seu romance ainda inédito Mnemomáquina.

Rascunho