Numa cidade provinciana, ao Sul de um país provinciano, existem poucas oportunidades para se falar de literatura. Por isso, a conversa que tive há poucos dias foi especialmente marcante. Meu interlocutor era um tipo inteligente. Quando nos apresentaram, descobri que está escrevendo uma tese doutoral sobre Joyce, e que também é músico, toca clarinete. Entre outras coisas, ouvi uma história na qual figuravam dois escritores, um brasileiro e um português, e uma definição acerba da literatura. A definição vinha de Diogo Mainardi, que escrevera que a literatura existe para degradar a humanidade, que quando a humanidade se descobre por demais segura de si, ali está a literatura para degradá-la e colocá-la no seu lugar. O outro escritor na história era Saramago, para quem tal idéia era anátema.
Obviamente uma definição tão pouco romântica da literatura não poderia ser satisfatória a autores esquerdistas que gostam de pensar em romance, poesia e teatro como a voz dos destituídos, ou como uma prova clara da grandeza humana. Basta pensar no amor ao caráter maravilhoso da vida que declara Cortázar com seus cronópios, na superficialidade graciosa dos personagens mágico-realistas de García Márquez, ou no excessivo valor imprimido ao ser do campo levantado do chão e descrito até a exaustão por Saramago. Todos aqui vivem num mundo regido pela utopia, onde um final hegeliano-marxista da história resolverá todas as contradições que conhecemos e o homem renascerá emancipado de sua presente alienação. A literatura seria, então, um ato de fé, um produto superestrutural que ajudaria a conduzir a humanidade ao seu encontro com o absoluto, ou com a ditadura do proletariado.
Quanto a Diogo Mainardi, não posso avalizar a procedência da definição de que falava meu amigo. No entanto, ela é extremamente pertinente quando se trata do uruguaio Juan Carlos Onetti. Encontramos aqui um autor que não se ilude; nem com a vida, nem com o homem, nem mesmo com a literatura. Se degradar a humanidade é sua função, para Onetti uma simples mirada à realidade basta. Basta ver o homem como ele é, mostrá-lo sem máscaras; lá no fundo, por baixo das varias camadas de enganos, estará sempre um ser caído. A miséria está presente em cada ato, em cada pensamento de cada ser humano. Para Onetti, há muito pouco o que saber além disso. Entender o mundo através do homem é entender nada mais que seu caos, aceitá-lo como um ser essencialmente vil, corrupto, e conhecer as variantes de sua miséria: a inveja, o ódio, a violência.
Onetti faz parte de uma linha de grandes novelistas que começa com Murasaki Shikibu, passa por Shakespeare, Tolstoi, Joyce, Sartre, e se encontra nos anos 50 com Beckett. Todos esses autores foram capazes de expressar a miséria da condição humana. Todos tiveram uma percepção da realidade muito mais apurada do que a maioria de nós é capaz. Shikibu soube reconhecer o caráter efêmero da existência, a essencial solidão à que todos estamos condenados e da qual todos fugimos do primeiro ao último dia; a dor da ausência que rodeia o homem como um vazio certo e insuportável, como o medo do nada do qual provimos e ao qual regressaremos, é um dos grandes temas da Saga de Genji e de seu filho Kaoru. Ali se encontram o mesmo som e a mesma fúria sem significado que Shakespeare reconheceu em Othelo, o mesmo erro irreversível que Tolstoi relegou sobre Ana Karenina, o mesmo rancor frente a uma existência incompreensível que Sartre trouxe à tona em Roquentin.
Onetti foi um dos poucos autores capazes de repetir com real veemência esse grito de verdade sobre o gênero humano, e de fazê-lo reconhecer suas limitações, seu lado escuro, sem ilusões. Como Joyce, o autor uruguaio soube perceber a inapelável mediocridade do homem. Não será coincidência que o Leopold Bloom, de Ulisses, e o Juan María Brausen, de A vida breve, tenham ambos a mesma profissão, que ambos se encontrem vinculados à mediocridade de uma cultura utilitária, consumindo suas vidas em anúncios de produtos sem real importância. Também como Joyce, Onetti é um virtuoso. Virginia Woolf costumava dizer que Joyce era um “show-off”, que gostava de exibir continuamente sua erudição e sua capacidade de manejo da linguagem. Talvez Onetti seja menos erudito, mas quanto ao uso da linguagem é tão habilidoso quanto Joyce. A diferença é que ele não é um “show-off”. Cada palavra de Onetti é comedida, cada frase é magistralmente demarcada. Nada existe por acaso. Nada remete para algo que esteja fora da literatura, Nenhum termo aparece desprovido de uma função estética específica. No entanto, a soma total de suas expressões produz uma sensação de abundância. A narrativa de Onetti chega mais perto da perfeição que a de qualquer outro grande autor do século 20. Ele é um mestre do momento. Um simples gesto, um segundo de seu protagonista deitado na cama, pensando apenas, ou olhando a prostituta que acaba de conhecer e em quem gradualmente começa a bater, primeiro com a mão aberta, logo cerrando o punho, transforma-se no resumo de todas as possibilidades do acaso e da vida, num sistema que engendra todas as perguntas que transformam as grandes obras literárias em reflexo real da existência.
Na narrativa de Onetti, a profundidade está presente em cada linha. Nesse sentido, sua obra se coloca em posição oposta ao Noveau Roman francês. Desde um ponto de vista formal, seria difícil imaginar algo menos contrário a Onetti que a ordem de Robbe-Grillet para que o autor se mantenha na superfície. Tudo em Onetti é mais do que aquilo que as palavras podem descrever. Tudo vai além do que é narrado, nada se esgota nas infinitas perguntas que giram bem no centro de sua teimosa estética da dúvida. Sobre ela, muito tem sido dito sobre a influência de Henry James, de seu “unreliable narrator”. Mas Onetti vai além de James. Até mesmo do James tardio de The Golden Bowl. Porque ao contrário do autor norte-americano, que viveu num século 19 vitoriano e relativamente pacífico, Onetti carrega a marca do existencialismo, da desilusão e da violência que assolou o século 20. Suas dúvidas são mais profundas, mais dolorosas. No absurdo em que se resume o último capítulo de A vida breve, no duplo final de El astillero, na relação de amor e vingança que nunca se explica em El infierno tan temido, e nas inúmeras perguntas a respeito da derrota pré-estabelecida de Junta Larsen e seu prostíbulo em Juntacadáveres, Onetti não só deixa o leitor invariavelmente sem resposta, mas também ofegante, estarrecido frente ao espetáculo de vida e miséria que se derruba de suas páginas.
Onetti concretiza a definição de Pound de que a literatura é a pergunta menos a resposta. Ainda assim, como Beckett, ele reconhece que o valor de uma obra se encontra antes de mais nada numa nova formulação dessa pergunta. Beckett sabia como ninguém propor questões com alto valor estético. Mas o tragicômico em sua obra é inegável. Em Onetti, ao contrário, a pergunta é infinitamente mais amarga. Na obra do autor uruguaio não há espaço para o humor: o tragicômico se transforma em niilismo trágico. Enquanto em Beckett se percebem ainda traços de uma visão de mundo católica, enquanto sua obra dá lugar a indagações acerca da salvação, de se Godot virá ou não, ainda que a espera seja mais provavelmente uma ilusão, em Onetti já não há mais espera. Não há esperança na salvação, nem tampouco um questionamento acerca da possibilidade de uma divindade. Se em Beckett a vida humana está condenada ao fracasso, em Onetti ela já fracassou.
A estética do fracasso liga a obra de Onetti à de duas de suas mais importantes influências: Faulkner e Céline. Faulkner costumava dizer que uma de suas novelas mais consagradas — O som e a fúria — era produto de seu fracasso. O autor conta que a primeira das quatro partes da obra lhe havia deixado insatisfeito. Consciente de seu fracasso nessa primeira cena, uma narração um pouco bucólica em que a protagonista ainda criança tenta subir numa árvore para observar o funeral de um dos membros da família que ocorre num quarto alto da antiga casa de plantação, Faulkner tenta reescrever a mesma história, agora desde o ponto de vista do irmão idiota e esquizofrênico. Frente ao segundo fracasso, o autor reescreve o que se tornará o terceiro e o quarto capítulos de uma das obras mais importantes do século 20. A derrota vai escrevendo a própria novela. O título provém de Shakesperare, “life is but a tale, told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing”. Na ausência de significado se encontra o germe do fracasso. Sem um sentido palpável, sem nada que lhe sirva de justificativa, ou que lhe indique um caminho válido, a vida é um jogo perdido.
A influência de Faulkner se faz sentir em Onetti também pelo espaço imaginário que o norte-americano cria com seu Yoknapatawpha County, uma região situada no Sul onde se desenvolve seu mundo de ficção. Tomando a idéia de Faulkner emprestada, Onetti cria Santa María, um âmbito infernal, situado também à margem de um rio, onde a vida corrompida de seus personagens é levada a cabo em meio ao caos e a infelicidade. Aqui é importante ressaltar o caráter fundacional de A vida breve na obra de Onetti. Nessa novela de 1950, vemos a fundação de Santa María por Juan María Brausen, o protagonista que imagina a cidade em um roteiro de cinema condenado de antemão ao fracasso, mas que segue empenhando-se em escrever.
A obra abre com odor a decadência. Brausen escuta através da parede as conversas de sua vizinha, uma prostituta com quem mais tarde se envolverá, enquanto pensa na cicatriz que encontrará no peito de sua mulher, Gertrudis, que terá um seio removido. Em meio a dificuldades no trabalho prosaico como publicitário, Brausen segue criando Santa María, onde aparecem personagens como Díaz Grey, o médico corrupto que vende ampolas de morfina de forma ilegal a seus pacientes, e Junta Larsen, o futuro Juntacadáveres. A metaliterária Santa María recorda outros espaços imaginários criados pela literatura hispano-americana, como o igualmente infernal povoado de El Olivo, locus ficcional de El infierno sin límites, de José Donoso, e a mais simpática Macondo de Cem anos de solidão, de García Márquez. No caso dos dois primeiros romances, ambos relacionados à estética existencialista, encontramos espaços propícios ao fracasso, lugares que repetem em suas ruas e habitantes o clima geral de derrota das obras. Pode-se afirmar que tanto em Onetti como em Donoso, a desgraça é muito mais que algo individual, ela existe vinculada ao meio, como produto das diversas formas de intercâmbio entre o ser humano caído e o espaço inóspito que habita.
O fracasso ineludível da espécie humana aparece em Onetti também como produto da influência da obra de Céline. O medo e o asco que perseguem constantemente os personagens onettianos guardam grande semelhança com a sensação de terror que sofre o protagonista de Viagem ao fim da noite em sua presença forçada na guerra. Medo e asco configuram a proximidade do mundo de Onetti com o abjeto. Como uma espécie de repulsa primordial, como um desejo de afastamento de algo impuro que é anterior a qualquer forma de consciência moral, a abjeção define o sentido mais primário do fracasso humano. Nela, o sentimento de repulsão para consigo mesmo descobre a vida como negação, e engendra uma reação contra a própria existência. No entanto, em sua expressão do desgosto pela vida, Onetti vai além dos existencialistas franceses, dos quais Céline é precursor. A náusea de Roquentin frente às raízes de uma árvore em A náusea, de Sartre, por exemplo, se transforma em Onetti num sentimento de abjeção frente ao feto. O caráter grotesco e repulsivo da vida humana aparece em obras como A vida breve e El astillero, onde a mulher grávida é descrita como um ser monstruoso que provoca medo e asco nos protagonistas Juan María Brausen e Junta Larsen. Assim como na obra de Onetti não há lugar para o amor, tampouco existe espaço para a beleza. Qualquer tentativa de crença no contrário seria um ato de má-fé.
Em Onetti, o fracasso está embrenhado nos mínimos detalhes da condição humana. A mulher grávida e o feto monstruoso simbolizam a cara da desgraça que é a cara de todos nós. Por isso Onetti é um autor que incomoda. Porque a realidade é, ao fim e ao cabo, dolorosa; e a fuga é sempre um ato demasiado humano, produto de nossa invariável covardia. Mas, como dissemos, esse fracasso não é apenas individual. É algo mais amplo, uma decadência que envolve todo o meio e da qual fazem parte as pequenas infâmias diárias de cada um.
A desgraça que nos mostra Onetti se adapta perfeitamente à definição de Diogo Mainardi da literatura como algo que degrada a humanidade. Mas, como mencionei anteriormente, não posso confirmar se a definição é acurada ou não. Nunca li nada de Mainardi (a não ser alguns artigos na revista Veja). Não por desdém, apenas nunca tive oportunidade. Conheço-o apenas como um tipo um pouco tímido, com escasso carisma para a televisão, que aparece domingo à noite num canal de TV a cabo. Parece-me, isso sim, extremamente disposto à polêmica, e a criticar o país sempre que possível. Mas talvez aqui exista algo mais que liga Mainardi a Onetti, além de sua arriscada definição. Talvez as críticas que faz do Brasil partam do mesmo sentido de fracasso que Onetti reconhece expressa no meio em que vivem seus personagens.
De fato, todo o brasileiro deveria ler a obra de Onetti. Só por meio de uma lição de fracasso poderíamos entender melhor quem somos. E então poderíamos parar de perder tempo com Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Então, também, o caráter vão das críticas de Mainardi viria à tona. Porque a única crítica honesta que se pode fazer a um país inviável, a um país onettiano que nasceu fracassado como um feto morto, é deixá-lo.
Pensando bem agora, alguns dias depois daquela conversa que tive sobre literatura num café, olhando pela janela as ruas aborrecidas da que é culturalmente a mais miserável das cidades brasileiras, recordo que não perguntei a meu amigo o que o levava a escrever uma tese doutoral sobre Joyce. Talvez como eu, ele tenha se dado conta da mentira nacionalista que aprendemos na escola, enfileirados com o hino e a bandeira, sendo obrigados a crer na existência de uma falácia chamada “literatura brasileira”. Mas talvez não.
Seja como for, o que fica para nós é um grande autor, e uma grande tradução. Onetti possui o que em inglês se definiria como “a heightened awareness of being”, uma consciência privilegiada do ser. Temos muito a aprender com ele, ainda que a lição seja amarga.