Nas pegadas de Dante

A importância de ler autores que sedimentaram caminhos para a literatura
01/04/2006

Edgar Allan Poe preconizava que a obra literária moderna deveria ser de curta extensão. Precisaria ser lida de uma só assentada. O ritmo da vida e da cultura exigiria a alteração na dimensão da obra, bem como na forma e nos objetivos da leitura. A percepção é comum ao tempo. Em 1886, Eça de Queirós escrevia que “esta expressão, ‘a leitura’, há cem anos, sugeria logo a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Sêneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim: e nesse retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro, num recolhimento quase amoroso. A idéia de leitura, hoje, lembra apenas uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça.” Na seqüência, Eça descrevia a alteração no desígnio das obras. O Autor Clássico, com maiúsculas, encontrava no Leitor uma cumplicidade que era também de caráter pedagógico: “como Filósofo tinha nele um discípulo, como Poeta um confidente”. Com a tomada da Bastilha, concluía o romancista, o Autor passara a ser um simples escritor, um produtor de textos; enquanto o Leitor se dissolvia nessa entidade anônima e monstruosa chamada público.

Com os exageros da graça, Eça tocava num ponto importante: a transformação da literatura em mercadoria e do leitor em consumidor. Estava desfeito o mundo clássico e começava o mundo romântico e burguês.

Estamos agora num estágio avançado desse processo, e uma das novidades é que a educação já não é o lugar onde se forma o Leitor, nem onde se preserva, ainda que por poucos anos, o Autor. E é agora, quando nem a escola nem a educação familiar se ocupam de providenciar os equipamentos de tradução que permitiriam a continuação da conversa do homem do passado com o homem do presente, que a pergunta se apresenta com inflexão mais dramática: por que ler os clássicos?

Houve um tempo no qual a leitura dos clássicos, ainda no período moderno, era um trunfo em si mesma. O homem que lê vale mais, dizia o refrão; e provavelmente valia, no sentido literal, pois saber a sua dose de mitologia e de latim era um diferencial na hora de obter um emprego ou conquistar um lugar de destaque social. Hoje, porém, a não ser em raras situações, dificilmente se pode sustentar que o conhecimento dos clássicos tem algum valor prático. Ler os clássicos, assim, é uma atividade cujo fim se encerra nela mesma. E se hoje um homem que lê vale mais, esse “vale mais” significa apenas uma agradável tautologia: “o homem que lê vale mais como leitor”.

Já dentro dessa tautologia, é inegável o valor dos clássicos. Clássicos são obras que podem ser descritas de dois modos. Um modo seria dizer que são obras à sombra das quais, por conta da sua perfeição, muitas outras nascem e proliferam. Outro modo é dizer que são acervos de imagens, frases e idéias que podem ser continuamente saqueados, para dar origem a novas obras. A segunda maneira de definir um clássico me parece mais precisa. Principalmente porque os fragmentos que são apropriados trazem consigo, além do sentido que tinham no lugar de onde foram sacados, outra coisa: a história dos aproveitamentos que tiveram ao longo do tempo, por outros autores, que deles retiraram o que em cada momento pareceu ali mais interessante.

Nesse sentido, um clássico é uma obra que persiste porque é seguidamente apropriada pelos que vêm depois dela. E tanto mais clássico é um texto, nesse sentido, quanto mais ele serviu a vários e diferentes fins, ao longo do tempo.

Ler os clássicos, dessa maneira, é uma atividade básica da formação de qualquer leitor. Se não por outra razão, porque o conhecimento dos clássicos permite o reconhecimento e o diálogo, do leitor moderno, com os vários fragmentos, alusões e interpretações deles que estão dispersos pelas obras que vieram depois deles.

Sentido pleno
Por outro lado, é certo que um texto raramente se constitui como repositório de imagens e idéias e fórmulas lingüísticas se não tiver surgido, no seu próprio tempo, como uma obra de sentido pleno, uma obra na qual o seu tempo se reconheça de alguma maneira.

Talvez por isso, T. S. Eliot, num ensaio famoso, intitulado Que é um clássico?, tenha afirmado que um clássico só aparece quando uma língua e uma literatura atingiram a maturidade. No mesmo ensaio, distinguia o que denominava “clássicos relativos”, isto é, autores e obras que serviam de baliza dentro de uma língua ou cultura específica, e “clássicos absolutos”, isto é, autores e obras que possuíam tal universalidade, que ultrapassavam as barreiras da língua e criavam padrões e critérios de julgamento que perduravam ao longo dos tempos. Nesse nível de referência e reflexão, mesmo um autor como Goethe surgia, aos olhos de Eliot, como marcado pelo particularismo, e era Virgílio o modelo (e talvez mesmo a única realização plena) do clássico de amplitude e relevância verdadeiramente universais.

Uma definição tão radical tende a gerar absurdos. De acordo com ela, Dante Alighieri seria um “clássico relativo”. Ou talvez nem fosse sequer um clássico. Primeiro, porque a sua Comédia não brotava de uma língua madura: pelo contrário, era ela mesma o momento de proposição, criação e realização de uma língua literária. Segundo, porque se Goethe era marcado pelo particularismo alemão, Dante era, sob todos os pontos de vista, um homem profundamente marcado pelo particularismo florentino, que permeia sua obra desde a linguagem até a distribuição das personagens e eventos nos três reinos espirituais.

No entanto, não há como ler proveitosamente algumas das principais obras da poesia ocidental sem ter conhecido a Comédia. Ou melhor: ainda hoje, é impossível deixar, em algum nível, de conhecer a Comédia. Como as categorias de Freud, a geografia infernal e celeste, a arquitetura dos círculos e das rosáceas, bem como a plasticidade das cenas de castigo e de contemplação habitam o imaginário comum e fornecem, de uma forma ou de outra, ainda hoje, base para metáforas várias.

Mesmo o poema mais famoso do século 20, The waste land, do próprio Eliot, é a rigor pouco compreensível se não lhe reconhecemos a matriz dantesca, assinalada, aliás, nas notas com que o poeta completou o poema.

E se Dante é um exemplo, como quer o próprio Eliot, de uma integração total entre a poesia e a filosofia, ou melhor, se Dante faz a filosofia transfigurar-se em poesia, nem por não ser mais essa a preocupação da poesia na modernidade deixa ele de ser um referente, um padrão, um acervo de imagens, frases e idéias continuamente reatualizadas, mesmo em contextos nos quais elas não guardam semelhança com o sentido que tinham no conjunto chamado Comédia.

E chegamos aqui a uma segunda razão, não utilitária, para ler os clássicos, que não é de menor importância: a sua diferença em relação ao que somos e ao que hoje entendemos por obra literária.

Tomemos o exemplo da Comédia. Não encontramos nada parecido com ela, na modernidade, enquanto aliança íntima de teologia e poesia. Assim, é claro o choque do leitor moderno com aquela massa de palavras articuladas em torno de uma filosofia, de uma série de conceitos teológicos que funcionam como uma máquina infalível ao longo de uma centena de cantos e vários milhares de versos. A compreensão da aliança é difícil, como é difícil entender o sistema de valores que tem implicações várias, no nível mesmo do entendimento dos episódios, passagens e mesmo versos. Para um leitor desprevenido do século 21, que percorreu a obra de uma ponta a outra, o núcleo teológico fica tão presente (pois o poeta, além de materializar a teologia em imagens, ainda a expõe longamente, nas provas a que o narrador tem de se submeter para alcançar a visão da beatitude), o livro pode erguer-se como uma espécie de centauro, ou melhor, de Gerião textual. E mesmo que o leitor logo se dê conta da inteira coerência do sistema dantesco, isso não garante a compreensão das partes, e a leitura de qualquer uma delas, isolada, pode resultar num contra-senso no interior do próprio poema e das regras do seu funcionamento. Mesmo com todos os cuidados, é possível que o sentido que damos a muitos episódios parecesse absurdo a Dante e seus contemporâneos. O que é mesmo que dizer que, de certa forma, o sentido previsto para esses episódios na estrutura da obra e nos textos de Dante que se referem a ela pode também parecer absurdo ao leitor de hoje. Mas esse não é um problema a evitar. É antes, uma das razões para ler os clássicos, mesmo aqueles que não reconhecemos, nos termos de Eliot, como clássicos universais: perceber as diversas formas do passado, os diferentes problemas que ele nos apresenta e, assim, perceber a contingência do nosso presente que, sem o choque periódico com a diversidade, pode parecer absoluto e natural.

Texto fundamental
Há ainda uma terceira razão — e esta é, quanto a mim, a mais importante delas — para ler um clássico como a Comédia: trata-se de uma obra na qual se reconhece que aquilo que estava para ser feito foi feito de modo perfeito, acabado.

Um clássico é assim um texto fundamental, isto é, que define o nosso conceito e ideal de literatura, pois é continuamente redescoberto ou reinventado como modelo. Nesse sentido, ler os clássicos não é só uma incursão no diferente ou um passeio turístico às ruínas do passado, mas a atividade mesma que constitui o que entendemos por literatura. Ou seja, uma obra clássica, como o D. Quixote, o Édipo Rei e a Comédia, nos aparece como matrizes porque nelas reconhecemos um padrão muito alto de realização. Um padrão que funciona como termo de aferição da qualidade artística das obras que depois vamos conhecendo ou reconhecendo.

Quando li pela primeira vez a Comédia, todos os poemas que tinha lido mudaram de lugar na minha escala interna de valores, e os que li depois tiveram, de alguma forma, como pano de fundo da sua avaliação, a perfeita maquinaria da Comédia. Se alguém já fizera aquilo em poesia, se aquilo que eu lera era possível de ser feito, como não ver o seu fantasma em cada novo texto, ainda que ele não fosse ali chamado por nenhuma referência intertextual? Ao mesmo tempo, as pegadas de Dante e do seu livro se foram tornando patentes em muitas obras nas quais, sem essa leitura, teriam passado despercebidas. Ou seja, além de um padrão, o entusiasmo da primeira leitura pôs-me nas mãos uma chave — ou a ilusão de uma chave, não importa, pois tanto faz, nesse caso, descobrir ou produzir a alusão ou o eco involuntário.

Já quando voltei outras vezes à Comédia, aquela que talvez seja a maior virtude da leitura dos clássicos se tornou mais patente. Lendo, nos intervalos, várias outras coisas sob o prisma criado por essa primeira incursão na obra de Dante, cada vez que voltei ao livro não só o poema me pareceu mais cristalino na sua grandeza, como mais clara a junção e relação de suas partes. Em cada leitura, foi diferente a profusão dos versos que ficaram na memória, por dias, como objeto de contemplação ou como desafio ao entendimento. Freqüentar um clássico é, portanto, um exercício de humildade, pois cada novo contato com ele exibe cruamente os limites da leitura anterior, ou, para dizer de modo mais generoso, demonstra as virtudes da releitura e redesenha o vasto campo do possível ainda por explorar.

A leitura dos clássicos, tal como a vejo, portanto, é uma atividade que se faz a contrapelo do que Poe e Eça descreviam, a partir de pontos de vista distintos, como a forma de leitura típica da modernidade. É uma atividade que nos faz experimentar todo o tempo os limites das formas e costumes do presente, e, especialmente, os limites da nossa própria maneira de conceber a arte e a leitura.

Nem mesmo os melhores leitores escapam a essa experiência dos limites, que um grande clássico proporciona. Um exemplo basta aqui, pela excelência do leitor. Quando Jorge Luis Borges escreveu sobre Dante, em 1980, interpretou um tanto rasamente, de uma perspectiva a rigor romântica e psicologista, o famoso episódio de Francesa da Rimini, que está no canto V do Inferno. Dois anos depois, porém, num dos Nove ensaios dantescos, a interpretação anterior nesse leitor contumaz de Dante já não subsiste. Ao invés, o autor do Aleph nos dá uma série conjeturas sobre o sentido do episódio, escrevendo o seguinte sobre a última, que sintetizaria o seu juízo: “a quarta conjetura, como se vê, não desata o problema. Limita-se a formulá-lo de modo enérgico. As outras conjeturas eram lógicas; esta, que não o é, parece-me a verdadeira”.

Com alguma modificação, essa frase poderia sintetizar uma forma moderna de ler os clássicos: não se trata de desatar os problemas que eles nos colocam, mas sim de, respeitando-os na sua alteridade e inteireza, exibir a sua diferença e a resistência que apresentam à leitura.

E também uma razão para o fazer: depararmo-nos com a sua força específica, seu sentido opaco pela distância e pelas camadas de interpretação que se acumulam com o tempo e deles fazer uma figura do nosso tempo, vê-los simultaneamente como fonte do contemporâneo literário e testemunho dos limites da leitura e da interpretação. Limites esses que, mais patentes no contato com o clássico, também determinam a aproximação aos objetos novos, ilusoriamente transparentes sob a luz da familiaridade do presente.

Paulo Franchetti
Rascunho