Nas bordas da história

Em seu terceiro romance, Moacir Japiassu mostra como a literatura pode ser melhor que os livros oficiais
Japiassu: longe dos clichês.
01/11/2005

O último presidente da ditadura militar deixou o Planalto faz 20 anos. E há 41, com controvérsias sobre o dia certo — 31 de março ou 1.º de abril (o que, se não é historicamente verdadeiro, faz todo o sentido) —, aconteceu o Golpe Militar ou, como os militares preferem chamá-lo, a Redentora. Foi um golpe estranho, pois nos instantes em que aconteceu, praticamente não houve luta armada, não houve resistência. Não houve conflito, por assim dizer. Os militares saíram dos quartéis, Jango saiu do país, os militares entraram no Planalto, e acabou. Já se sabe bastante o que aconteceu com aqueles que participaram ativamente do golpe. E o que aconteceu com os personagens periféricos, aqueles que tinham relações com pessoas que de alguma maneira tiveram suas vidas afetadas diretamente pelo golpe? Deles pouco se sabe.

Por isso, ter em mãos Quando alegre partiste — Melodrama de um delirante golpe militar, terceiro romance do jornalista Moacir Japiassu, é um alento. Mesmo que a história seja fictícia (ou não, pois Japiassu consegue dar uma verossimilhança enorme aos protagonistas do romance), ela nos remete aos momentos em que acontece o golpe. E o tempo presente se faz necessário. A história acontece justo naqueles instantes em que os militares deixam os quartéis para fazer história. O roteiro do livro corre paralelo ao roteiro da história, em que os personagens têm alguma conexão com a grande história.

Pode-se dizer que a personagem principal do romance é Vera, uma mulher moderna, liberada, filha de um famoso político de esquerda, Tito Lívio de Sant’Anna. Vera namora Maurício de Alencar, jovem repórter mineiro que veio ao Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de trabalho. Se bem que namorar é uma figura meio retórica, pois o grande lema de vida de Vera é “tudo é lícito aqui nessa Sumatra”.

Mas resumir o livro a Vera e Maurício seria reduzi-lo a menos de um terço do que é. Do lado jornalístico, temos a história dos jornalistas da sucursal carioca do Diário de S. Paulo, jornal no qual Japiassu trabalhou à época do golpe e cujos personagens reais são relembrados de maneira fantasiosa pelo escritor. Adalberto Areias, personagem que busca a vingança contra a ex-mulher Rinaura; Léo Guanabara, repórter esquerdista e íntegro; André Burnier, repórter de polícia que utiliza a sua posição para outros fins, muito menos nobres que o jornalismo; e o próprio Maurício, para citar apenas alguns.

Do lado da caserna, temos o general Hércules de Azevedo de Faria Timbó, comandante do Forte de Copacabana e amigo de André Burnier, na casa de quem participava ativamente de memoráveis surubas; o general Clóvis Albuquerque Cavalcanti, mão-de-ferro do Comando Militar da Amazônia e pessoa nada confiável; e, entre outros, Dagoberto Rodrigues, coronel preso, por inveja, nos primeiros momentos do golpe.

E, ao redor deles, temos Rômulo Colares de Souza, ex-rico que então vivia às custas de sua eterna noiva Ivoneide, um verdadeiro “cão-chupando-manga”; a irmã de Rômulo, para lá de gostosa, Mariângela; Aída Cury, a notória jovem jogada do 12.º andar de um prédio da Avenida Atlântica, em Copacabana, em 1958; e, por fim, o vendedor de mel e professor de Belas Artes Stênio Vital Santos, mulherengo incorrigível que descabaçou Vera, amigo de André, com quem organiza as surubas de todo sábado.

Talvez haja outros ainda, mas esse elenco já é mais do que suficiente. E justamente a profusão de personagens torna o livro um pouco enrolado em seu início. São várias histórias correndo paralelas e que aos poucos vão revelando seus pontos de encaixe. É Timbó que fica entesado por Mariângela e usa seu poder para chamar Rômulo e oferecer-lhe um cargo em troca da irmã, sem pudor algum. É Vera que transa Maurício mas conhece André e Stênio e se encontra com Timbó numa das surubas organizadas pelos dois. É Areias que procura dar um novo rumo à sua vida para poder vingar-se de Rinaura e recuperar a guarda dos filhos, e por isso imprime um novo estilo de direção à sucursal do Diário. Enfim, são tantas as histórias que, até o momento em que elas se entrelaçam, o leitor pode ficar um tanto quanto perdido.

Porém, depois que os pontos se conectam, ou melhor, depois que se percebem os pontos de conexão, o livro flui rapidamente até o seu final. Japiassu conhece a arte de escrever bem, e a utiliza com propriedade. E, jornalista que é, pinça extratos dos jornais da época para mostrar como a grande história ia sendo construída e qual a sua relação com a (nada) pequena história dos personagens criados (ou recriados?) por ele. Os extratos jornalísticos parecem referendar o enredo de Quando alegre partiste, que não parece nem um pouco fictício.

Gumbo
Japiassu já havia investido na mistura de ficção com realidade em seus outros dois romances. Em A santa do cabaré (Globo, 2002), Japiassu mistura o mundo real da ditadura de Getúlio Vargas, a seca nordestina e o cangaço com a fantasia das brigas, intrigas e vinganças de seus personagens. Com habilidade, o escritor mescla as criaturas Lenildo Tabosa, Alberico Cruz, Sizenando Coelho e o cangaceiro Ladislau Cardoso com o tenente Ernesto Geisel, Otto Maria Carpeaux, Graciliano Ramos, Saint-Exupéry (em uma conexão inimaginável com o Nordeste brasileiro) e Proust (!!). A mistura exótica cai bem, tal qual um gumbo bem preparado na Nova Orleans americana. Japiassu consegue escapar dos clichês do romance regionalista para contar uma história de homens e mulheres verdadeiros, com dramas reais e conclusões factíveis, uma mostra de que a ficção bem-feita consegue ser até maior do que a realidade.

Já em Concerto para paixão e desatino (Francis, 2003), Japiassu escolhe outro golpe brasileiro — a Revolução de 30 — como pano de fundo. E a mistura envolve um fato real — o assassinato de João Pessoa — com conspirações para transformar o Nordeste em um grande cassino. Novamente, personagens reais se misturam às inventadas por Japiassu, e emerge daí um ótimo livro.

Se fosse feita uma linha, diríamos que a estréia de Japiassu é excelente, o segundo livro é muito bom e o terceiro é bom, quase muito bom. O estilo do escritor permanece o de contar suas histórias como quem as conta numa roda de amigos. Cada novo lance é entrecortado por uma recordação, o momento presente é interrompido para revelar um momento importante do passado, que colaborou para que a personagem chegasse onde está. Longe de atrapalhar, as idas e vindas tornam o texto uma versão fidedigna da história falada e do diálogo.

Em todos os seus livros, porém, Japiassu mostra, com todas as letras, que o principal fator motivador das pessoas, seu leitmotiv, o que as faz acordar de manhã e agir, é egoísta e pessoal. Suas personagens pouco têm de idealista ou ideológico. Quase sempre o principal interesse que move os personagens masculinos é a cabeça (de baixo) e o bolso, quando não os dois juntos. As mulheres de Japiassu são diferentes, como o são, aliás, todas as mulheres, e nobreza e volúpia alternam-se dependendo da ocasião. Em todos os casos, porém, sempre há os que se aproveitam do momento pelo qual passa o país para poder tirar a sua lasca, gerar o seu lucro em benefício próprio, pouco importando quem é afetado por seus atos. Ler Japiassu e sua ficção é conhecer um pouco mais do que se passou às bordas da história oficial e de seus personagens medalhados e transformados em verbetes de enciclopédia.

Quando alegre partiste — Melodrama de um delirante golpe militar
Moacir Japiassu
Francis
288 págs.
Moacir Japiassu
É paraibano de João Pessoa, tendo vivido também em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Desde 1970 vive em São Paulo. Jornalista profissional desde a década de 60, trabalhou no Jornal do Brasil, no Jornal da Tarde, na Isto É, na Veja e na Rede Globo. Criou o Jornal dos Jornais. Edita o Jornal da Imprença, no site Comunique-se (www.comuniquese.com.br).
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho