Narrativas possíveis

Ensaio esmiúça os narradores dos quatro romances de Milton Hatoum
Ilustração: Osvalter
04/10/2015

Elefantes indianos e tapetes de Kasher no casarão repleto de artefatos orientais. Lá fora a luz do dia e a cidade da infância. Amores de muçulmanos com cristãs na capital da Amazônia e histórias do tempo antigo, marcadas pelo estrangeirismo de quem se arriscou a vir para os lados de cá. No centro, o comércio, a bela Rânia carregando suas mercadorias importadas. A pensão Saturno, onde os jovens dormem em quartos abafados. Na beira do Amazonas, os filhos ricos que não se misturam aos índios, seringueiros chegando de barco, mitos contados pela boca de uma cunhatã. Sentenças repletas de perfumes e sabores esquecidos no tempo distante. Quem as amarra? A quem cabe o duro ofício de captura de um tempo esquecido? Em tempos de tempo apressado, no qual a vida é tecida em imagens, perfis de internet e telas de celulares, a única temporalidade possível parece ser aquela da vida que corre para que o dia seguinte chegue logo, e assim sucessivamente. A leitura é convite à resistência, fazer inútil que deixa o tempo escorrer como água. Disse uma vez Antonio Candido que “tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida”. Com quatro romances de Milton Hatoum na mão, é atrás desse tempo outro que sai o leitor. Sem certezas ou prolegômenos, na partida há apenas a pergunta: quem narra essas histórias?

A construção da trama
Quem conta o Relato de um certo Oriente é narradora sem nome, identidade, traços precisos. Ela carrega um passado e sua voz não é forte o suficiente para reconstituí-lo sozinha. Seu relato inicia-se com a volta ao casarão de Manaus, no momento em que morre sua avó, Emilie. Seu tio Hakim, primogênito de Emilie, é quem a ajuda a puxar o fio de lembranças de um tempo em que ela não era nascida. É pela voz do tio que são evocados também testemunhos de Hindié, empregada da casa, e Gustavo Dorner, fotógrafo alemão e única testemunha do breve relato da chegada ao Brasil contada pelo avô da narradora. Trata-se do coro que não é uníssono. O passado cantado é plástico, líquido, faz-se de difícil apreensão e escapa às personagens que tentam reconstruí-lo. Tempo antigo de Tripoli, de Marselha, do Monte Líbano, do casarão de Manaus ainda cheio. Diante dele, a narradora monta mosaico, tece a trama com os diferentes pontos de vida que lhe chegam, preenche lacunas da trajetória da família que a adotou junto com seu irmão mais novo e cuja história não lhe foi contada.

A partir das palavras das outras personagens, sobretudo de Hakim, o leitor acessa os segredos da família. A casa em território manauara, enfeitada com o pesado relógio das terríveis badaladas trazido por Emilie do convento onde estivera quando jovem. A Parisiense, negócio da família onde morou Samara Délia, perseguida por seus irmãos depois de ter engravidado na adolescência. Soraya, filha de Samara, criança surda, morta num acidente aos 5 anos de idade. A lavadeira Anastácia Socorro, prima do curandeiro Lobato Naturidade, dona do trabalho pesado e das histórias sobre a vida na mata, cuja família fora explorada pelos irmãos de Hakim. A mãe Emilie, cristã e casada com o marido muçulmano de poucas palavras, marcada pela morte misteriosa de seu irmão Emir, fotografado pela última vez por Gustav Dorner. Nas lembranças de Hakim, o leitor é apresentado ao gosto das tâmaras, ao cheiro de almíscar, aos “odores inesquecíveis”[1] da infância. Nos diálogos de Hakim com Gustav Dorner, surge a imagem de Emir segurando a flor vermelha, momentos antes de ser encontrado morto. No desespero de Hindié, também são compartilhadas as confissões de Emilie, seus segredos, o significado de suas quatro pulseiras, uma para cada filho.

Vinda da clínica onde estava internada em São Paulo, a narradora registra cada palavra que lhe é contada. Anda pelas ruas devastadas de Manaus, faz a travessia do rio de barco e chega ao porto sujo e miserável. Tem a chance de reencontrar Gustav Dorner no passeio pelo centro e retorna a casa para o velório de sua avó. Só no último capítulo, ela revela sua tarefa: registrar tudo que pudesse e sussurrar aos ouvidos do irmão mais novo a “canção seqüestrada”.[2] A menina adotada pela família, tendo visto poucas vezes na vida sua verdadeira mãe, define seu trabalho: “ofício necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso”.[3] O que fez a observadora passiva da sua vida, como se chama, onde mora, do que gosta — tudo isso está no campo do inacessível. Privado da vida da narradora primeira, o leitor de Relato de um certo Oriente acompanha o trabalho árduo de colar os cacos do passado distante e entende que é isso que a narradora pode oferecer. Voz quase que desconhecida, sem endereço ou identidade, ela existe para cantar “a melodia perdida”.[4]

Ilustração: Osvalter

Conflito e rivalidade
O passado parece a sina de quem se arrisca a narrar e as casas, o porto e o igarapés de Manaus são retomados pelo narrador de Dois irmãos. Dessa vez, sua voz tem mais força e parte da história recontada conta com sua presença. Filho da empregada Domingas, o menino que dorme nos fundos do casarão inicia seu relato se lembrando de Zana, a mãe dos gêmeos Yaqub e Omar. Filhos de Halim e irmãos mais velhos de Rânia, os dois irmãos são donos do conflito que sustenta o enredo. É a partir da rivalidade entre os dois que o narrador se lembra das histórias contadas por Domingas e das confidências que lhe eram feitas por Halim. O casamento do jovem com Zana, a adoção da pequena cunhatã Domingas, o nascimento dos filhos. A formação da família acontece antes do nascimento do menino, que conta com o relato dos mais velhos. Mas o desfecho dos conflitos, a velhice de Zana e de Halim, tudo isso é presenciado por ele. Observador, desta vez menos passivo, o menino estuda no quartinho dos fundos e faz pequenos serviços à família. Não é tratado como os filhos de Zana, mas tem o direito de sentar-se à mesa, comer da mesma comida. Ganha livros, roupas deixadas pelos mais velhos. Não é filho legítimo de ninguém, mas tem acesso aos cômodos, às histórias, aos segredos.

O eixo da história — sugerido pelo seu título — são Omar, o Caçula, e Yaqub. Gêmeos idênticos, o Caçula é preferido pela mãe, vive na boemia, leva mulheres para casa, recebe mimos das mulheres da família nas suas frequentes ressacas. Yaqub é aquele que voltou do Líbano depois de separado da família durante alguns anos. Estudioso, sério, de poucas palavras e portador da cicatriz adquirida em briga com Caçula, estuda em São Paulo e se torna rico, bem sucedido. A guerra entre o vadio querido pela mãe e do engenheiro prodígio da família, iniciada desde cedo e muitas vezes silenciosa, é acompanhada pelo narrador. Mas ele não a acompanha apenas porque é testemunha da história da família. Nael, cujo nome só é revelado no nono capítulo, segue as vidas dos dois irmãos porque procura por resposta que custa a aparecer. “Meu pai. Sempre adiaria, talvez por medo. Eu me enredava em conjeturas, matutava, desconfiava de Omar, dizia a mim mesmo: Yaqub é meu pai, mas também pode ser o Caçula (…)”.[5] Os episódios narrados revelam pouco a pouco os motivos de sua história. Ele revira o passado porque este ainda não o pertence.

“Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde eu tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia”,[6] diz Nael no quarto capítulo, passagem em que já se delineia melhor o motivo da história. Dois irmãos, mais do que tratar de Omar e Yaqub, trata de Nael diante dos “sons da memória ardente”[7], na busca pela identidade do pai. Somente momentos antes da morte, sua mãe lhe revela que ele é filho de Omar. Justamente o irmão detestado pelo narrador, que o chama de “filho da empregada” e passa a vida a atrapalhá-lo. Yaqub, querido por Nael até certo ponto da narrativa, também passa a ser tratado com distanciamento conforme se desenrolam as brigas familiares. Testemunha da degradação da família e da morte de Zana, Halim e Domingas, o menino que antes buscava no engenheiro a possibilidade da paternidade distancia-se do pouco que restou. Presencia as mortes dos mais velhos e a briga dos gêmeos. Vive, neste mesmo tempo, as mudanças de Manaus: os militares que tomam a cidade, o professor de poesia Antenor Laval, assassinado em praça pública, as palafitas destruídas, o casarão da família vendido a um comerciante indiano, a degradação do comércio e a miséria do porto, cheio de sujeira, pedintes, destroços.

Destroços
Manaus parece à deriva. Capital marcada pela “euforia” com “o futuro, ou a ideia de um futuro promissor”[8]. Nael testemunha a ruína da família cuja cidade cresce “no tumulto de quem chega primeiro”[9]. O tempo áureo da borracha ou a expectativa de modernização do país são seguidos pela devastação da população da cidade Flutuante, o medo imposto pelos militares, o avassalador capital estrangeiro. As novidades, vindas num navio da Booth Line ou da Lloyd Brasileiro, são promessas de vida melhor nunca realizada às dançarinas da Maloca dos Barés ou aos seringueiros pobres. Depois da alegria crescente dos anos 50, são os destroços e os “leprosos amontoados” que representam a cidade que crescia “irreconciliável com seu passado”[10]. E é justamente na década de 60, com a ditadura militar, que se inicia a história contada por Olavo. Lavo, como é chamado, ainda habita a casa pobre da história, como Nael. Seu nome e a identidade dos seus pais, já mortos no início da narrativa, são sabidos. Na casa da tia Ramira e do tio Ranulfo, o jovem acompanha seu amigo Raimundo, o Mundo.

Mundo é filho único de Alícia e Trajano, comerciante rico e muito próximo dos militares. Bem quisto pelo casal, Lavo tem acesso à mansão dos Trajano e narra os conflitos familiares. O menino rico se opõe ao pai quando decide seguir caminho de artista e renuncia ao lugar de homem de negócios que lhe foi deixado. Com a cumplicidade de Alícia e Ranulfo, com quem mantém amizade clandestina, Mundo acaba indo morar na Europa depois de expor a obra Campo de Cruzes que retrata a miséria da população de Novo Eldorado provocando os militares e envergonhando o pai, que morre em seguida. Lavo permanece em Manaus, onde estuda direito, sob as críticas de seu tio Ranulfo — desempregado, dono de projetos de arte nunca terminados. Como fica explícito no penúltimo capítulo de Cinzas do Norte, o narrador “publica relato em homenagem à memória de Alícia e de Mundo”[11], como pedira seu tio. A narrativa é formada pela voz de Lavo e por algumas cartas que Mundo recebe de Ranulfo, seu verdadeiro pai. O conteúdo das cartas, conhecido pelo leitor, só chega a Lavo no fim da história. Os segredos de família são peças para Lavo, que, diferente de Nael, não está em busca do seu passado. A curiosidade pelo que já se passou começa com o objetivo de contar a história de Mundo, o artista que desafiava Trajano. Lavo está no lugar de quem pode narrar o que aconteceu. Um pouco como Naiá, empregada fiel à família Trajano que acompanha a morte do pai, da mãe e do filho da família rica.

Mas Naiá é a empregada, que tem respostas quando se trata de saber dos segredos familiares e vive as ambiguidades contidas no trabalho das cunhatãs nos casarões de Manaus. Um pouco escravas, um pouco melhores amigas das patroas, as Anastácias, Domingas e Naiás testemunham as intrigas familiares. Transmiti-las, no entanto, não parece ser sua missão, como é a de Lavo diante de seu grande amigo. O lugar de Lavo, este sim, é privilegiado para quem quer contar as histórias. Pois Lavo é importante o suficiente para entrar na mansão onde mora Mundo e ser confidente de toda a família. Mas também é desimportante o bastante para não ser notado, para testemunhar grandes cenas sem protagonizá-las. Lavo é quase invisível na casa onde mora e na mansão que frequenta. Mas é capaz de juntar pedaços da história de Mundo e publicá-la. Ele não é o artista que morre sem abrir mão da dolorida arte que fazia – Mundo –, não é o artista que age como um diplomata e se coloca ao lado dos militares para poder vender mais — como a personagem Arana, com quem Mundo se decepciona no desenrolar da história — nem mesmo o artista que nunca chegou a ser — como seu tio Ran. Por não escolher a arte e estudar a lei, Lavo é quem pode observar e julgar. É a ele que cabe a tarefa de contar a história de Mundo. E se antes de Cinzas do Norte, as personagens retratadas recebiam a história de Manaus como ondas, no vai e vem da ascensão e da queda dos núcleos familiares e dos casarões, no caso da narrativa de Lavo, o conflito político é explicitado no interior da casa dos Trajano. A disputa no campo privado não significa, no entanto, mera mimese da oposição entre indivíduo e governo. Mundo não é porta-voz da resistência, sua arte não é panfletária. Jano e Mundo seguem tentativas distintas e nem o comércio próspero do pai nem a arte do filho têm lugar na Manaus da década de 60.

Ilustração: Osvalter

Sonhos, intuições, maus presságios
O fim de Cinzas do Norte expõe o Brasil e suas marcas de resignação, em tempos sem promessas ao futuro. Tempo diferente da Manaus no início do século 20: paraíso no meio da floresta, aposta de riqueza e progresso com o ciclo da borracha. Manaus poderia também ter sido Manoa Del Dorado, ou então somente Eldorado — o mito contado pelos indígenas colombianos no século 16 sobre o local repleto de ouro a ser encontrado na América Latina. Eldorado também é nome do navio cargueiro visto pelo jovem Arminto Cordovil, narrador da história povoada por sonhos, intuições e maus presságios. Sem mãe e afastado do pai desde cedo, o velho habitante da tapera pobre, tomado por louco, conta sua história de juventude marcada pelo encontro com a índia Dinaura. Órfãos do Eldorado é história cujo título dá conta dos protagonistas de um romance nunca continuado e também da Manaus habitada por entusiastas da extração da borracha e do progresso na cidade em meio à Amazônia.

As primeiras frases da narrativa são lembranças da infância de Arminto: a índia que falava alto na beira do Amazonas e atraía toda a gente para lá. Florita, cunhatã que cuidara do menino desde cedo, traduzia-lhe as palavras dizendo que a mulher iria “morar com o amante lá no fundo das águas”, num “mundo melhor, sem sofrimento”.[12] O homem velho lembra-se de outros mitos, como o da mulher que se dividira em duas — corpo e cabeça — para poder acompanhar a cabeça do marido nas suas caçadas, até o dia em que o corpo desaparecera. A marca do mito na beira do rio Amazonas está em toda a fala de Arminto, que desta vez conta da própria vida, sem dividi-la em capítulos. Num só golpe, o homem que herdou muito dinheiro e agora vive na miséria fala ao ouvinte misterioso da sua juventude. Expulso da mansão por seu pai, Amando Cordovil, depois de acusado de ter abusado de Florita, o moço passa a viver em Manaus, sem muito dinheiro. Quem lhe traz notícias de Amando são Florita e Esteliano, o advogado e melhor amigo da família. O início do enredo traz a expectativa da conversa com o pai que nunca ocorre: ao chegar para o encontro marcado, Arminto vê seu pai morrer.

A morte de Amando faz do narrador o dono dos negócios e das propriedades da família. No enterro, Arminto conhece Dinaura, a índia interna do colégio Sagrado Coração de Jesus, a mulher de duas idades — pois se parece menina e também moça. Depois desse encontro, Arminto ainda viaja a Manaus para cuidar de negócios e fica pouco em Vila Bela, onde morrera seu pai. Sua relação com o lugar muda conforme o narrador vê Dinaura novamente e sente-se ligado a ela, deseja-lhe, quer saber de sua história, tenta encontrá-la. Os negócios de Manaus se tornam quase nulos e o jovem vive em busca da índia, pedindo ajuda de Esteliano e ouvindo maus agouros de Florita. Esteliano, descendente de grego e amante de literatura europeia, lhe sugere a entrega de um poema à madre Caminal, responsável pelas órfãs. É com ela que Arminto consegue autorização para se encontrar com Dinaura. Os encontros passam a ser o eixo de sua vida. Dinaura surge, provoca-lhe, sai correndo. Seu humor é instável, ela confunde Arminto e foge de repente. A chuva é forte no último encontro dos dois. Eles se amam “como dois famintos”[13]. O jovem sonha com o casamento: vão morar em Manaus, Belém ou até no Rio. Nos lábios da órfã ele vê uma história desconhecida. É atrás dela que vai o narrador até o fim, na busca pela amada que desaparece depois do dia de temporal.

A percepção do sumiço de Dinaura chega junto com a notícia do naufrágio do navio Eldorado. A decadência dos negócios do pai é seguida da dívida no banco inglês que Arminto deveria pagar. O naufrágio do Eldorado divide sua história. O herdeiro do homem que exportava borracha vende tudo. Deixa de ter a chácara e a casa da família, o chamado palácio branco. Passa de bon vivant a miserável em pouco tempo e enquanto lhe resta dinheiro, ainda tenta encontrar Dinaura. Florita sempre o acompanha. Sem as mansões da família, fica ela também sem lugar e morre pouco tempo após deixar o palácio. Sozinho em sua tapera, Arminto ainda encontra Esteliano uma última vez. Só então sabe que Dinaura era protegida de seu pai. Ajudado pela madre Caminal, Amando mantinha a índia numa casa próxima ao colégio. Esteliano nunca soube se Dinaura era filha ou amante de Amando. Também o leitor não conhece a verdadeira história da mulher de duas idades. Com pistas deixadas pelo advogado da família, o narrador ainda faz a tentativa de encontrar Dinaura em povoado de Eldorado, a poucas horas de Manaus. Eldorado, diz ele, é “habitado pela solidão”[14]. Encontra apenas uma moça em casa de farinha e pergunta por Dinaura, mas não revela ao leitor o que aconteceu depois disso. Suas últimas palavras são proferidas em Vila Bela. São palavras àquele que entrou “para descansar na sombra” e teve “paciência para ouvir um velho”.[15] Termina o livro, enfim, com pergunta a seu ouvinte, “Pensas que passaste horas nesta tapera ouvindo lendas?”[16].

Ilustração: Osvalter

Narradores órfãos
Se há lendas contadas, há também quem as conte. Do relato difícil de um certo Oriente à fala ininterrupta de Arminto Cordovil, existe um denominador comum: todos os narradores são órfãos. Pois a narradora sem nome que revisita Manaus fora adotada pela família cujo passado vai sendo revelado. Assim como Nael, que narra doze capítulos repetindo a pergunta: qual dos gêmeos é meu pai? Lavo mora com os tios, vive sem pai nem mãe. É órfão não só porque seus pais faleceram. Ele vive sem ser muito cuidado, despercebido, desimportante. Arminto é o primeiro filho legítimo das quatro histórias: tem nome e sobrenome, herda riqueza dos Cordovil, conhece o nome de sua mãe, Angelita. No entanto, seu pai o expulsa de casa cedo e ele passa a viver como filho bastardo, menino pobre. A legitimidade de seu nome está no sangue, nos documentos. Não nos seus caminhos nem no embate com a sombra do pai, que o acompanha até o fim de seus dias. É certo que Lavo não apresenta em Cinzas do Norte a dúvida sobre seu passado. Mas sua existência entre os narradores de Milton Hatoum não parece exceção. Ela é a chave para entender a figura do narrador nos romances. Só pode narrar aquele que foi esquecido, apartado da casa da família, acomodado em pensão qualquer ou quartinho da casa dos fundos. Ser órfão parece condição necessária a quem se arrisca a organizar fragmentos do passado e transformá-los em narrativa. Figuras esquecidas, filhos não legítimos — não são exatamente assim os que tentam narrar em tempos do fim das narrativas?

Ora, qual é o lugar-comum sobre os narradores contemporâneos? Anti-heróis que escrevem sobre a própria vida, cujas histórias são marcadas pelos sentimentos particulares, os caminhos e frustrações do eu, as sensações daquele e só daquele indivíduo? Não se trata aqui de desqualificar narrativas em primeira pessoa — presentes em todos os romances de Milton Hatoum. A referência à primeira pessoa é trazida para lembrar que é desse modelo de texto que vem a afirmação de que “o narrador não está de fato presente entre nós”[17]. Se a hipótese de 1936, formulada por Walter Benjamin, tornou-se nessas oito décadas verdade inquestionável, importa a quem vive o tempo presente perguntar: qual a literatura possível em tempos de velório da figura do narrador? Qual é, pois, a narrativa possível?

Algo que desperta curiosidade nas quatro narrativas passadas em Manaus e seus arredores é a passagem da fragilidade da narradora de Relato de um certo Oriente à força de Arminto Cordovil em Órfãos do Eldorado. A narradora da primeira história parece traço esfumaçado — um pouco como o narrador do conto O espelho, de Guimarães Rosa, que olha a imagem refletida e não encontra seus contornos. Talvez a passagem a Dois irmãos tenha a narradora misteriosa e dos traços imprecisos como momento necessário da constituição daquele que narra. Pois no segundo romance o narrador começa a ganhar corpo. Sua identidade se revela conforme os capítulos correm. O leitor presencia um narrador discreto, que economiza nas opiniões e desejos próprios e demora a entregar o jogo. Demora essa que não é excesso de segurança de Nael. A passagem do tempo é preço que ele deve pagar em troca de seu passado descoberto. Então, finalmente, o leitor encontra Lavo e com ele não há segredo: é filho de Raimunda e Jonas, é menino pobre que vai estudar na faculdade de Direito. E em poucas páginas de leitura fica claro que a identidade do narrador não desata nenhum nó. Os capítulos de Cinzas do Norte são às vezes cartas de Ranulfo a seu filho Mundo. Endereçadas também ao leitor, elas brincam, sorrateiras, com o narrador. Consciente do próprio passado, Lavo tem de enfrentar o deserto da espera, as incertezas desta ou daquela conversa, o tempo demorado das respostas. Pois sua tarefa não é o ganho da certeza de si, a firmeza do eu. Sua tarefa é contar, construir uma história. Por isso, encontra-se ele, Lavo, e também o leitor desavisado, no mesmo labirinto da memória, cujas saídas se aliam a silêncios e ao esquecimento. Inimigas do imediato, as histórias precisam do tempo e dos enganos do narrador.

Ilustração: Osvalter

Relatos pessoais
A neta adotada de Emilie, Nael e Mundo carregam suas finitudes e impotências no trabalho das narrativas. Qualquer um carrega, poder-se-ia dizer. Afinal, as grandes narrativas, aventuras densas e totalizantes que há hoje, não são elas restritas ao mundo do sonho, da fantasia, dos bruxos, elfos e vampiros? Os outros mundos são evocados para que haja personagens ligadas pela unidade da magia ou de uma grande história, algo que não pertence aos narradores do lado de cá. No campo do sonho e da fantasia, há vozes oniscientes que explicam o que ocorre aqui e ali, antes e depois. Vozes que sabem do bem e do mal antes das ações das personagens. As certezas e valores a priori se tornam possíveis com o abandono do real — e nas realidades paralelas, o que é irreconciliável por aqui se torna possível lá. Que resta, pois, à literatura atual que não renuncia a este mundo? O já citado anti-herói parece carregar o legado dos romances, herança que se divide em possibilidades diversas: o indivíduo que sai pelo mundo em busca de sua formação, o protagonista que entende a realidade como suporte de suas lembranças passadas, a fala que é fluxo de pensamento, pouco atada aos fatos do cotidiano. São caminhos muitas vezes felizes. Dadas as dificuldades das grandes narrativas, ainda resta aos narradores possíveis o trabalho dos relatos pessoais — talvez o que exista de universal nos dias de hoje.

Mas isso não é tudo que se diz. Sobretudo em tempos pós Segunda Guerra Mundial, nos quais os valores universais são questionados. O regionalismo e a arte das minorias é uma das respostas à literatura possível. Como se num mundo já sem unidade, em fragmentos, testemunha da miséria e da violência feita em nome da razão, restasse aos narradores a chance de falar de um local muito próprio ou de uma causa ainda não atendida. De um lado a literatura do universal, do outro o regionalismo e a voz das minorias. Sempre, a certeza de que o particular escapa às definições e que é próprio das teorias o desajuste com seus objetos. Pois há a possibilidade dos relatos regionalistas donos ainda de compromissos mais universais, como o da reelaboração do passado. É nela que chega o leitor da Escadaria de Manaus, do teatro que lembra mesquita das histórias de infância no Monte Líbano, das mangueiras e formigueiros nos jardins dos casarões. Órfãos do Eldorado, romance muito mais condensado que os outros, é espaço para o protagonista que fala de si próprio. Arminto Cordovil escancara seus tropeços, seus presságios, se debate com as imagens do passado e relembra e os mitos contados à beira do Amazonas. Traz, na sua narrativa pessoal, a falsidade do mito de Eldorado, a falência necessária da exportação de borracha, a passagem do futuro promissor ao passado revisitado e contado à margem do rio.

Como os outros narradores, Arminto tem de acertar as contas com a memória. A memória, aliás, contém a ambiguidade de ser grande tormento e única saída possível os narradores. De um romance a outro, o narrador ganha substância. Sua arma, porém, não muda. É na rememoração que os narradores se apoiam. Em Relato de um Certo Oriente o tema da rememoração preenche falas mais especulativas das personagens e da narradora, que sabe que “no silêncio do olhar, a memória trabalha”[18]. Nael e Lavo já tratam a memória de forma mais encarnada, escavando não só os testemunhos alheios, como as próprias vidas. Órfãos do Eldorado parece, então, autorizar seu narrador, menos esquivo ao leitor e mais sujeito da sua trajetória. Ele é o único dos narradores que fala de um amor do passado. Amor impossível, representado ao leitor com imagens oníricas, espelhado nos mitos indígenas que o homem ouvia na infância. Num primeiro olhar, este narrador pode ser tomado como figura ingênua, que só consegue narrar as esperanças da ilusão de seu amor com Dinaura. O naufrágio do Eldorado e a referência à cidade Encantada — possível moradia de Dinaura — surgem, porém, como traço de lucidez. A Manaus que se degrada acompanhando as ruínas das famílias dos outros livros agora é retratada como lugar do mito da felicidade que não se realiza. Pois Dinaura e Arminto protagonizam o amor sem solução. Como nas histórias anteriores, não há saída feliz e os conflitos apresentados não se resolvem.

O ganho do último romance parece ser, então, não o rumo do enredo, mas a posição do narrador. Em Órfãos do Eldorado, ele sabe que o decorrer dos fatos não é mera fatalidade, como se um acaso qualquer fosse possível mudar o fim de sua história. O naufrágio do Eldorado é a dissolução da ideia de um país cuja felicidade estava guardada no futuro. Ao contrário da busca da identidade dos outros livros, onde as personagens vivenciam com dúvida o próprio passado e os altos e baixos de Manaus, o narrador do último romance carrega algumas certezas. Caracteriza como mítica a promessa de riqueza e desenvolvimento e narra o reencontro com Dinaura que não ocorre e a venda do casarão como decisões suas, que pobre e sem dinheiro é finalmente dono da própria história. Nas palavras finais, Arminto Cordovil revela que seu ouvinte é alguém que passava e entrou em sua tapera em busca de sombra. Difícil não lembrar da fala extensa de Riobaldo ao interlocutor também misterioso de Grande sertão: veredas. O ouvinte calado — e por que não o leitor? — escuta, por fim, perguntas que problematizam e justificam o narrar, essa busca cansativa no passado, capaz de “expulsar este fogo da alma”, pois “a gente (…) respira no que fala” e “contar ou cantar (…) apaga a nossa dor (…)”.[19] Contar ou cantar que costura a possível narrativa. Narrativa de cada história e também da totalidade dos quatro livros, com imagens, cores e perfumes que conferem objetividade aos fatos passados e com um sujeito que se faz pouco a pouco. Narrativa aliada da memória e do tempo — o senhor dos enredos. Escravos do tempo, eles, narradores, e nós, leitores, a costurar o passado com seu tecido poderoso e lidar com a pressa angustiante do futuro. “O futuro, essa falácia que persiste”[20].

[1] HATOUM, M, Relato de um Certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, página 37.
[2] HATOUM, M, Relato de um Certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, página 166.
[3] Idem, página 165.
[4] Ibidem, página 166.
[5] HATOUM, M. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, página 133.
[6] HATOUM, M. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, página 73.
[7] Idem, página 51.
[8] Ibidem, página 128.
[9] Ibidem, página 41.
[10] Ibidem, página 264.
[11] HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Página 225.
[12] HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Página 11.
[13] Idem, página 51.
[14] HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, página 102.
[15] Idem, página 103.
[16] Ibidem, página 103.
[17] BENJAMIN, W. “O narrador”. In BENJAMIN, W. Magia e Técnica. Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994, página 197.
[18] HATOUM, M. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, página 155.
[19] HATOUM, M. Órfãos de Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, página 103.
[20] HATOUM, M. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, página 263.

Milton Hatoum
Nasceu em Manaus em 1952 e estudou arquitetura. Estreou na ficção com Relato de um certo Oriente (1989), vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano. Seu segundo romance, Dois irmãos (2000), mereceu outro Jabuti e foi traduzido para oito idiomas. Com Cinzas do Norte (2005), ganhou os prêmios Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou Órfãos do Eldorado, e em 2013 teve suas crônicas reunidas em Um solitário à espreita.
Natalia Leon Nunes

É formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).

Rascunho