Após acompanhar as notícias da estreia literária de Geovani Martins, fui ler O sol na cabeça convicto de que nele encontraria textos restritos ao testemunho prestigiado pelo segmento culturalista dos estudos de literatura, e/ou ao exotismo periférico tornado produto pelo mercado livreiro. Creio que a sensação prévia não foi exclusividade minha, pois a Companhia das Letras fez um poderosíssimo trabalho de marketing para promovê-la. Entre a capa e a contracapa do livro, passando pelas orelhas, há uma coleção de carimbos vistosos: apresentação de Antonio Prata, comentários de João Moreira Salles e de Chico Buarque e um adesivo que informa da publicação do volume em oito países estrangeiros. Num mesmo dia (2 de março, uma sexta-feira), Geovani apareceu com destaque nos cadernos de cultura de grandes jornais do Rio e de São Paulo. Em formato impresso, li o Segundo Caderno, de O Globo, que deu capa (com foto do autor), matéria, resenha e reprodução parcial de um dos contos — Rolézim, que abre o conjunto e que foi empregado para a sua divulgação. O texto busca reproduzir um tipo de fala próprio de jovens de periferias da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de malsucedida tentativa de mímese linguística, pelo excesso, que termina por denotar artificialidade e reforçar estereótipos, e pela falta de simetrias relativamente óbvias, como a referente à ausência de concordância de número, o que compromete a consistência do texto, cujo narrador diz, por exemplo, “várias gente” e “as orelha”, bem como “um dos pancados”, “com ele nos acessos” e “esses bagulhos”.
Esses aspectos, aqui preliminares para a análise literária, chamaram-me duplamente a atenção — nos âmbitos da crítica e da cidadania. Geovani Martins é cria de Bangu, bairro da Zona Oeste do Rio, fato apontado no crédito do livro e invariavelmente nos jornais que o anunciam. No início da adolescência, foi viver em favelas da Zona Sul da cidade, Rocinha e Vidigal, onde reside hoje, algo também sublinhado midiaticamente. Moro na Zona Oeste desde que nasci, há trinta e sete anos, em Campo Grande, bairro vizinho a Bangu. Conheço autores da área, e quando tomei conhecimento da muito repercutida aparição de Geovani Martins, foi-me imediata a dúvida: teria havido o estrondo se ao autor não fosse associável a etiqueta de favelado e, mais especificamente, de favelado do Vidigal, onde paradoxalmente convergem antigas e novas referências sociais desse tipo de espaço? A reboque da especulação imobiliária ocorrida no início desta década, simultaneamente à instalação de Unidades de Polícia Pacificadora no itinerário da Copa do Mundo e das Olimpíadas, o Vidigal, a exemplo da Rocinha, foi gourmetizado pelo consórcio de empresariado e imprensa, que passou a destacar suas festas e a rede hoteleira que ali se instalou para desconstruir estereótipos. A década ainda não se encerrou, e todo esse foguetório se revelou artificial, e até a Flupp (Festa Literária das UPPs) já foi renomeada como Flup (Festa Literária das Periferias).
Voltando à pergunta, ela me ocorreu por parecer — com base na divulgação de Rolézim — óbvio que Geovani Martins estava sendo incensado por ser a nova “voz da periferia”, tomada pela ação dos grupos desejosos de disseminar sua “responsabilidade social”. O que me aguçava a curiosidade, ao fundo, era se Geovani Martins faria o mesmo sucesso caso tivesse permanecido em Bangu, bairro periférico mas não inteiramente favelizado, por onde as elites da cidade não costumam instalar seus negócios caritativos. A ideia da “cidade partida” não dá conta do complexo movimento de inclusão e exclusão social carioca. As dúvidas me ocorreram quando eu ainda lia sobre o livro, que, ao que tudo indicava, se sustentava pela geografia do autor e pela reprodução textual dela. Até que li o livro e percebi sua aguda qualidade artística. Diferentemente do que se pode supor, as dúvidas permaneceram, desdobrando-se: como um jovem autor se torna editorialmente o que é? Até que ponto o lugar de fala de Geovani Martins é determinante para o sucesso editorial que vem fazendo, e em que medida tal lugar pode ter ainda mais peso em sua disseminação do que a própria fala (literária) do autor? Por que se tomou justamente Rolézim para abrir o volume e para se divulgar o livro na imprensa, considerando que os outros doze contos são diferentes ou bem diferentes do primeiro — alguns, inclusive, antológicos, como Espiral e Roleta-russa? Deixo as perguntas em aberto, como quem tenta muito modestamente contribuir para um debate em que é necessário verificar possíveis convergências entre a representatividade sociocultural da literatura e a avaliação crítica baseada no cânone, orientações teóricas que, em seu melhor, concordam em advertir o público leitor sobre interferências do mercado na produção artística.
Talento e técnica
O sol na cabeça é um livro apreciável, em cujas páginas se verifica o encontro de talento com repertório técnico. A capacidade de tocar sutilezas dos universos narrados, a fluidez e a beleza dos enredos (independentemente da dureza de tantas situações relatadas) permitem ver em Geovani Martins um narrador nato, com capacidade de coesão e de variação textual poucas vezes reduzida no conjunto. Tendo em vista que o autor é um jovem de vinte e seis anos e tem escolaridade baixa, seu potencial de leitura é altíssimo, porque sua escrita congrega expressão social com procedimentos formais de que apenas iniciados lançam mão, como a reticência, a quebra de expectativa, a reversibilidade emotiva dos personagens e a poeticidade da linguagem narrativa: “Se passasse batido dessa vez, não voltaria a ser desse jeito, jurou com a mesma verdade que jurava das outras vezes” (Roleta-russa).
No livro, a ambientação em favelas é frequente, e, excetuando o já excetuado, Geovani Martins não resvala na mera reprodução: assimila e desenha um cotidiano machucado e machucador, dentro do qual a ordem vigente é a da naturalização da barbárie: “Quando os vagabundo se entocou pros polícia entrar, bagulho virou terra de ninguém, menó. Ainda mais que os cara quente no morro meteram tudo o pé pra outras favela que tava mais tranquila. Quem se fodia mermo era morador, como sempre”, diz A história do Periquito e do Macaco, que narra um conflito entre um traficante de drogas e um policial, a partir da instalação de uma UPP num morro.
Mais do que descrever localidades, o livro de Geovani Martins reverbera culturas que atravessam periferias e subúrbios. Não apenas a favela com seus componentes emblemáticos — o tráfico, a droga, o tiro — tem relevo em meio aos textos; antes, formas de ser e de dizer são captadas em sua variedade e com minúcia, especialmente nas narrativas que envolvem crianças, com suas fantasias, medos e forças (O mistério da vila é um belo exemplo). Ponto alto do livro, O rabisco narra a história de Fernando, um pichador compulsivo e aflito, desejoso de um sentido existencial registrável publicamente: “Queria mesmo marcar sua cidade e seu tempo, atravessar gerações na rua, se transformar em visual”. Nisso personagem e autor, pichador e ficcionista se aproximam e complementam, uma vez que O sol na cabeça se compõe de linguagens e traços culturais de partes da cidade ainda sob o solo, de onde surgiu um novo narrador.