Edla van Steen não me era um nome conhecido, nem mesmo como organizadora de várias coleções da Global. Assim, ao me ser dada a tarefa do mês para este Rascunho — fazer a resenha do recém-lançado Melhores contos de Edla Van Steen —, recebi-a de maneira neutra. Afinal, não conhecia a autora, que há 41 anos escreveu seu livro de estréia, Cio. Tampouco sabia que ela agora completa 70 anos de vida, e que este livro, publicado “quase à sua revelia”, como informam os seus editores, é uma homenagem ao seu trabalho. Confesso que um dos maiores prazeres de colaborar com este Rascunho é poder ter a chance de chegar a autores que desconheço e surpreender-me, pois de outra forma estaria preso aos figurões e pouco experimentaria em termos de literatura.
Edla van Steen para mim foi um achado. Se ela não havia publicado nenhum trabalho próprio em suas coleções, foi devido a uma precaução extrema, talvez o receio de ser acusada de usar de seu poder de organizadora de coleções para incluir seus trabalhos entre obras que ela considera de melhor qualidade. Mas após a leitura da seleção de seus Melhores contos, qualquer dúvida que alguém possa ter quanto à capacidade da autora se dissipará. Estamos lidando aqui com literatura de fino trato. Estamos lidando com uma autora que possui um olhar aguçado da realidade. Temos em mãos um trabalho que devassa o ser humano e, ao buscar o que possuímos de mais íntimo, torna o trabalho atemporal.
Os 23 contos foram selecionados dos seis livros do gênero que a autora publicou ao longo de sua carreira. Nos textos percebe-se que a autora não cede à tentação da palavra fácil. É possível notar em cada um dos 23 textos um apuro, uma dedicação, uma vontade de retirar do texto todo excesso que ele possa ter, e manter apenas o essencial. Assim, se entre Cio, publicado em 1965, e Antes do amanhecer, de 1977, a autora esperou doze anos, apesar dos elogios recebidos pela primeira obra, é porque ela acredita em algo mais que quantidade ou sucesso pura e simplesmente.
Lodo escondido
A temática dos Melhores contos é a vida real. Não que a autora fique presa às situações comezinhas de cada um de nós. Muito pelo contrário. Ao partir da vida real e de situações que bem podem ter acontecido em algum lugar, ela usa a imaginação para tornar o real ainda mais real e assim poder cutucar e mexer com o lado escondido que todos temos. Assim, em alguns casos ficamos chocados com as soluções dadas por Edla a seus personagens e seus impasses. Chocados pois o filtro da moralidade nos impede (na maioria das situações) de sermos os animais que somos. Mas no fundo pode haver momentos em que a solução animal é a mais desejada por nós.
Por isso, em uma primeira leitura, Edla pode parecer muito pessimista. Não é pessimismo, acredito, mas sim excesso de realidade. Diz Secchin em seu prefácio: “Uma espécie de poética do desconforto subjaz na arquitetura de muitas narrativas. Há escassos sinais de felicidade ou de completude. Pequenos arranjos ou composições mal disfarçam o vazio sobre o qual se erguem. O narrador, em Edla, não se comisera de tantas vidas miúdas que a custo ousam lançar-se para além do perímetro da prudência que a si mesmos impuseram”. É desconforto o que sentimos, mais que repulsa ou assombro, quando lemos os contos de Edla.
No meio do livro, um longo diálogo, mais próximo a uma peça teatral que a um conto, Rainha-do-Abismo, surpreende o leitor acostumado ao desconforto experimentado até ali. Nele vemos que, se pode haver desconforto, sempre há esperança. Claro, há outros textos em que um ou mais lados bons aparecem. Mas é neste que, sem ser pueril, a autora consegue mostrar melhor as chances que as pessoas têm de chegar mais perto de algo parecido com a felicidade. E a sua colocação no meio da coletânea ajuda a quebrar uma barreira que poderia ter sido formada após a leitura sobre alguns personagens amargos, frutos de famílias disfuncionais, de casamentos desfeitos com dor e mágoa, de vidas vazias e sem sentido e de existências sem esperança. Novamente, é bom frisar, é desconforto mais que repulsa ou assombro. É a vida como ela é e os seus resultados na maior parte da humanidade, sem grandes tragédias ou desastres que conduzam à infelicidade, que nos deixa desconfortáveis. Afinal, basta que a vida seja uma grande rotina para que ela nos conduza quase que inevitavelmente à infelicidade.
A maior parte dos contos é narrada em terceira pessoa, deixando para o leitor o trabalho de mergulhar nos personagens para descobrir as razões implícitas de seus gestos. Quando narrados em primeira pessoa, parece que a autora deseja nos conduzir pelos pensamentos do personagem e de suas reações. Edla também utiliza algumas técnicas narrativas não convencionais, como dividir os pensamentos de dois personagens em duas colunas para procurar passar a simultaneidade de seus pensamentos — utilizada no conto CAROL cabeça LINA coração — ou de uma decupagem cinematográfica para a recomposição dos fatos — como em A volta —, entre outros, para conseguir dar ao leitor outras visões de situações aparentemente corriqueiras. E toda a técnica é utilizada para que não haja floreios ou demonstrações de virtuosismo desnecessárias. Edla quer é pegar na veia do leitor e fazê-lo mexer-se da poltrona.