Uma das qualidades evidentes de A culpa é do livro de Gabriel Gómez é, sem dúvida, o de privilegiar o ato da leitura como formador ou, em alguma medida, deformador da identidade dos mais diversos leitores que protagonizam suas dez curtas narrativas. Para usar um termo do apresentador da obra trata-se, enfim, de um exemplo magnânimo de “livrocentrismo”, em que a erudição bibliófila do autor salta aos olhos. De fato, há uma remissão constante a todo tipo de culto às grandes bibliotecas (Alexandria, Babel) como espaços sagrados, num ato de fiel devoção ao grande argentino Jorge Luis Borges, a quem toda reverência é pouca.
Por esse viés, é uma obra bem inserida no contexto da literatura contemporânea, que elege como central a reflexão de cunho metaliterário, em que o ficcional é matéria-prima de diálogos intertextuais. Nesse caso, a literatura volta-se para si mesma, como se estivesse sempre diante de espelhos curiosos em inquieta indagação.
Não é à toa, pois, que o jogo espectral borgiano norteie boa parte do sumo desses contos, como se evidencia em Um clássico, em que o protagonista, numa viagem de ônibus, lê concentradamente um livro, quando a seu lado senta-se uma mulher que lhe desperta a curiosidade pelo fato de estar, também ela, lendo em silêncio. Não se conhecem os títulos dos respectivos livros, mas o fio da narrativa se sustenta, exatamente, na dúvida que se instaura, a partir do instante em que se quer descobrir que livro seria aquele que a personagem feminina lia. Duplos anônimos que se projetam, espelhos que se duplicam, eu e o outro, imagens espectrais de um único ser que, mesmo sendo um só, jamais é único…
Da mesma forma e sempre em atitude reverencial ao livro, temos o instigante O bilhete perdido, em que um ávido leitor desespera-se à procura de um bilhete que ele mesmo teria escrito e deixado dentro de algum volume, do qual não se recorda. A lenta busca que o faz folhear as páginas aleatoriamente, na bela metáfora da viagem da leitura, em meio às “dobras da memória”, acaba por conduzi-lo a Dante, ao tomo do Paraíso, em que Beatriz salva o poeta, no reino do além-mundo. Nesse instante, a narrativa se precipita, pois o bilhete que surge, contrariamente às páginas salvíficas do livro em que estaria guardado, reporta ao abismo, à perda da amada que, aos poucos, revelar-se-á ter sido assassinada pelo próprio narrador. O contraste aqui é o da sutileza entre o discurso que se articula, num primeiro momento, nesse folhear das páginas equiparado ao folhear lembranças, na chave livro-memória, ficção-vida, para, ao final, gerar a vertigem da queda na realidade. Talvez como se o bilhete encontrado, caindo de dentro das páginas do Paraíso dantesco, fizesse acordar o protagonista leitor de seu mundo diáfano de leituras para um susto, num processo de reversão, em que a névoa do sonho – preservada dentro do livro – se depara com o muro da realidade:
Finalmente, caiu um pequeno bilhete do tomo onde Dante Alighieri canta sua Beatriz em várias línguas. No verso da carta rasgada de despedida, que ela tinha escrito e pensava em me deixar quando a surpreendi, permaneciam, ainda incólumes pelo tempo, algumas gotas de sangue que haviam respingado de sua garganta recém-perfumada…
Em todas as situações narrativas, de certa forma, o livro é o pretexto e o texto ao redor do qual transitam seres embriagados, ao limite do fetiche, por seu cheiro, seu encanto, que quase sempre leva ao desencanto ou — quixotescamente — à loucura.
Há que se notar, também, como elogiáveis as belas epígrafes, escolhidas, a dedo, pela vasta erudição de um autor, que quer se fazer conhecer por um pertencimento à clássica tradição dos que se assumem como legatários ou interlocutores privilegiados dos grandes nomes da literatura.
Porém, talvez aí é que haja alguns aspectos a discutir no constructo geral da obra. Muitas vezes, por esse excesso de citações e de uma hipervalorização do tom ensaístico de quem conhece profundamente as teorias intertextuais da literatura é que a diegese parece se tornar, um tanto quanto, rarefeita. Em outros termos, o eixo de tensão, que normalmente encontramos nos bons contistas, aqui, em boa parte, dilui-se, em detrimento da necessidade verborrágica de reverenciar o tom áulico dos cânones literários.
Para mencionar dois dos grandes autores citados pelo próprio autor, Ricardo Piglia e Edgar Allan Poe, talvez valesse a pena retomar algumas de suas lições teóricas primordiais. De fato, para o primeiro, em O laboratório do escritor, haveria um caráter duplo (excisão) na estrutura formal de todo conto, uma vez que uma história secreta subjaz à outra que se explicita.
Para o segundo, o bom conto precisaria se articular na teoria do efeito único, privilegiando um movimento interno de significação, a fim de que tudo se precipite em função de um desígnio preestabelecido.
Seja pela explicitação dos andaimes da construção de alguns desses enredos, em que a história aparente ganha muita força, enfraquecendo a secreta; seja por um certo descompasso entre o ritmo do andamento inicial e a precipitação final, que diminui a tensão, algumas narrativas, ainda que elegendo temas criativos, perdem o fôlego.
Uma obra coerente com o que Borges teria afirmado em certa entrevista, ao mencionar que deixava aos outros que se vangloriassem dos livros que haviam escrito, enquanto a sua glória, diversamente, residiria nos livros que ele havia lido.
Culpados ou inocentes, livros, leitores e o universo da leitura de Gabriel Gómez roubam totalmente a cena. Às vezes, porém, de modo tão veemente, que nos fazem perder de foco a singeleza despretensiosa de histórias que se narram leves, como águas de riachos, e que, por serem afluentes, nem por isso deixam de ter o brilho dos rios caudalosos e principais.