Narrar a vida nua

Depoimentos de romenos levados a campos de trabalho russos foram ponto de partida para "Tudo que tenho levo comigo"
Herta Müller, autora de “Tudo o que tenho levo comigo”
01/08/2011

O trauma e as catástrofes relacionadas à Segunda Guerra Mundial são ainda um dos grandes temas em debate. A literatura de testemunho e os fios da memória recuperada e reconstruída marcam uma série de publicações que chegam ao mercado editorial desde a segunda metade do século 20. Narrar contra o esquecimento? Narrar como uma forma de exorcizar o passado e tudo o que ele comporta? Sem dúvida, além do século das ideologias, dos regimes totalitários, o século 20 poder ser lido pela lente da desumanização, do homem diante do não-homem; a vida nua, colocada em questão e problematizada por Giorgio Agamben. Reler esse passado recente significa também pensar nas relações entre arte e política e arte e pensamento.

Uma experiência do vivido que é como uma profunda ferida, cuja cicatrização se dá de modo demorado, deixando sinais indeléveis, que marcam psicológica e fisicamente o corpo mental e físico. Como é aquela de Leo Auberg, de origem alemã, que aos 17 anos, em janeiro de 1945, da Romênia é levado para os campos de trabalho na Rússia. Leo é o personagem-narrador de Tudo o que tenho levo comigo, da vencedora do Nobel Herta Müller, publicado esse ano, pela Companhia das Letras, com tradução de Carola Saavedra. Esse não é o primeiro romance da escritora a ser editado no Brasil. O compromisso, de 2004, e Depressões, 2010, são as outras obras em circulação. O espaço geográfico desses dois primeiros coincide com aquele inicial de Tudo o que tenho levo comigo: a Romênia, mais especialmente uma região de minoria alemã. A vida de Herta Müller, por conseguinte, sua produção literária e ensaística, com fortes traços autobiográficos, traz as marcas da opressão dos regimes totalitários. Em O compromisso, por exemplo, é possível percorrer, por meio dos fios da memória e da construção literária, a dura realidade de opressão do regime de Nicolae Ceausescu, a sua saída da Romênia e a chegada como imigrante na Alemanha.

Em Tudo o que tenho levo comigo, além dos 64 capítulos, todos com nomes emblemáticos, há um Epílogo, assinado pela autora, no qual ela dá um breve panorama sobre a situação da Romênia, no final da guerra, e fala da genealogia do livro. Como afirma Herta, os alemães, homens e mulheres, residentes na Romênia, foram deportados para os campos de trabalho soviéticos, e sua mãe passou cinco anos num desses campos. Uma atmosfera vivida e presenciada em família, que acompanhou a sua infância. Em 2001, Herta começou a registrar por escrito alguns depoimentos de pessoas conhecidas. Ao falar sobre esse trabalho ao poeta romeno-alemão Oskar Pastior, que também tinha sido deportado, os dois decidem escrever um livro juntos. Em 2006, Pastior morre e Herta, dos encontros, tinha várias páginas de anotações do relato do poeta. É desses encontros de experiências compartilhadas que saem as diretrizes de Tudo o que tenho levo comigo.

Viagem anunciada
“Tudo o que levo comigo. Ou: tudo meu levo comigo” são as frases iniciais que abrem esse romance, caracterizado por uma leveza e por um ritmo poéticos, contrapostos a dureza do tema abordado. Leo, na flor da juventude, obrigado a “ir sabe-se lá para onde” pelos russos, vê nessa viagem anunciada uma forma de se distanciar do seu cotidiano:

Eu queria ir embora daquele dedal de cidade onde até as pedras tinham olhos. Em vez de medo eu sentia uma impaciência encoberta. E certa culpa, já que a lista que fazia meus parentes desesperarem-se era para mim uma circunstância aceitável. (…) Eu queria partir, para um lugar que não me conhecesse.

Essas linhas das primeiras páginas apontam para algumas problemáticas: a visão e a vontade do jovem de “romper” com o núcleo familiar; o entendimento maior dos familiares do que significava ser levado pelos russos, o que justifica a ânsia, a apreensão e o medo. Recuperar, a última frase da citação acima é fundamental, “(…) partir, para um lugar que não me conhecesse”. Ao pensar, desejar esse lugar, Leo não poderia imaginar o que significa ser um anônimo, um no meio de muitos todos iguais. O carinho, a acolhida familiar, as lembranças simbolizadas pelas peças de roupas presenteadas por tios, tias, avô, pais, guardadas na caixa do gramofone transformada em mala, seriam, num curto tempo, apenas lembranças.

Sobre fazer as malas é o título do primeiro capítulo que prepara Leo para uma viagem sem volta. Sem volta porque o Leo que retorna e escreve as suas memórias não é mais aquele jovem adolescente que queria deixar a pequena cidade e a família. Essa ânsia de deixar o núcleo natal também se dá pela opção homossexual. Depois das primeiras experiências, Leo sente-se inquieto com a possível condenação familiar. A viagem, dessa perspectiva, é uma necessidade de libertação. A preparação da mala é um verdadeiro ritual, que vai desde a confecção da própria, feita e aproveitada a partir de um gramofone, até a descrição detalhada das coisas e quantidades que são colocadas em determinados espaços na mala-gramofone. Uma preparação que antecede o horário da meia-noite marcado pelos policiais: “E a meia-noite veio, mas a patrulha estava atrasada. Tiveram que se passar três horas, era quase insuportável”. A mala-gramofone continha objetos e alegorias que Leo, ao deixar sua casa, só veria a partir de uma ausência, de uma fome, tanto física quanto simbólica. As roupas de lã, cachecol, meias, e o sobretudo com a gola de veludo, que a mãe segura e lhe dá ao ir embora, se contrapõem ao frio que começa a se instalar. Fazia quinze graus negativos, mas é um frio também metafísico, perfilado pela nova atmosfera, muito próxima da morte, como aparece no seu sonho, já no campo de agrupamento, antes de pegar o trem junto com os outros que se encontravam ali.

Nesse momento da narrativa parece haver uma ambigüidade ou uma percepção um pouco diferente por parte de Leo do que poderia significar aquela viagem. Com efeito, ele continua a afirmar o desejo de ir realmente para a Rússia, mesmo num vagão de animais, porém, logo depois, diz: “Enquanto estivermos viajando, nada pode nos acontecer”. Aqui, misturam-se a voz do menino de 17 anos e a de Leo, mais velho e mais maduro, que conta a sua história; essa marcação concretiza-se no romance, um pouco mais à frente, quando o narrador reflete e fala consigo mesmo dizendo que “Talvez eu fale de mim mesmo, quando relato isto hoje. Talvez nem de mim mesmo”.

O trem, vagões para animais, esses são os compartimentos ocupados. Um espaço onde a singularidade começa a desaparecer; está-se mais em companhia do que consigo mesmo; a individualidade passa a ser uma coletividade. Um coletivo que é formado a partir de necessidades compartilhadas. Na escuridão do vagão, a percepção de que se entrava em solo russo é dada pela adaptação das rodas aos trilhos russos que eram mais largos. O solo russo significa o início de uma nova vida nua, ou uma não-vida para um não-homem, esquecimento das individualidades. Um dos primeiros exemplos acontece ainda durante a viagem de trem, quando todas as portas dos vagões se abrem e as sentinelas russas gritam: UBONAYA. Todos são obrigados a descer, apesar da neve que chegava à altura dos joelhos. Com armas apontadas em suas direções, escutam: “Abaixem as calças”. Uma ordem a cumprir!

Esse embaraço, a vergonha do mundo inteiro. Que bom que aquele território nevado estava tão solitário ali conosco que ninguém viu (…) Eu não tinha vontade de ir ao banheiro, mas abaixei as calças e me agachei. Como era cruel e silencioso aquele território noturno, como ele nos ridicularizava em nossas necessidades.

Uma primeira noite, um primeiro horror que de repente obriga Leo a se tornar mais adulto, a entender o que está acontecendo à sua volta e a lembrar a todo instante das palavras da avó, ao despedir-se dele: EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR. Palavras que, no seu retorno, são substituídas por: DE LÁ NUNCA MAIS SAIREI. É nessa dobra entre luminosidade extrema e escuridão absoluta, que é possível encontrar possíveis saídas na contemporaneidade.

Tudo o que tenho levo comigo
Herta Müller
Trad.: Carola Saavedra
Companhia das Letras
304 págs.
Herta Müller
Nasceu em 1953. Escritora e ensaísta romena-alemã, foi casada com o escritor Richard Wagner, e destaca-se pelos seus textos com um olhar penetrante e poético sobre a vida de famílias alemães na Romênia e sobre as duras condições de vida durante o regime de Ceausescu. Em 2009, ganhou o prêmio Nobel de Literatura com o livro Tudo o que tenho levo comigo. Também são dela as obras O compromisso e Depressões.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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