Narradora do futuro

As relações familiares são o centro de “Quando a inocência morreu”, de Estrela Ruiz Leminski
Estrela Ruiz Leminski, autora de “Quando a inocência morreu” Foto: Carolina Bassani
01/10/2024

Uma constelação familiar com cavalos. Estamos no ano de 2061. Luiza caminha para a arena e diz seu nome, as éguas vêm em sua direção e formam um círculo. Luiza caminha, e as éguas a seguem. O terapeuta interpreta: há uma conexão de Luiza com as mulheres de sua ancestralidade.

Essa cena, de imagens fortes e estranho mistério, apresenta a narradora mais interessante de Quando a inocência morreu, primeiro romance de Estrela Ruiz Leminski, que já tem uma rica trajetória como poeta e compositora. Nesse capítulo, a personagem-narradora reflete sobre o afastamento de seu par amoroso, que irá embora, “deixando tudo pra trás”. Enquanto lida com a ausência, Luiza investiga a história da família, e revira o “baú de parentes”, procurando documentos para um visto de viagem e uma dupla cidadania.

Luiza está no futuro. Em sua época, há aviões autodirigíveis e jogos de realidade aumentada que ajudam no planejamento familiar. Num tempo em que inteligências artificiais produzem best-sellers, sua busca se dirige ao passado: a avó, a bisavó. A investigação traz algum conforto e também vazios, pois “procurar a ancestralidade é perseguir ruínas”.

As relações familiares são o centro desse romance, em suas quatro partes: quando, onde, por quê e quem. Luiza narra o segundo relato. Os quatro capítulos da obra podem funcionar como contos independentes. Tratam de personagens diferentes, e os recursos estilísticos mudam a cada história. O projeto gráfico ressalta essa diferença: cada parte é impressa numa fonte própria. Pedro, o primeiro protagonista, sobrevoa as cenas de sua vida como um espírito, sem estar certo se morreu ou está sonhando. O terceiro conto trata da intensa vida de Josefa, entre espanhóis, ciganos e cartas de tarô. O quarto remete às origens coloniais brasileiras, na voz de um menino que desconhece a tristeza de sua própria origem.

Fronteira fluida
O texto literário é entremeado de fotos e alguns documentos de época, que são retrabalhados visualmente, com recortes, colagens, rabiscos e caligrafia. A beleza gráfica cria uma fronteira fluida entre a composição literária e os paratextos. A folha de rosto traz um mosaico sugestivo de dezenas de sobrenomes que poderiam compor a identidade da autora. Propõe-se um jogo, numa espécie de obra total, em que até a lista de agradecimentos se acrescenta à nossa leitura do romance.

Se consideramos apenas os quatro contos/capítulos, são sutis os elementos que ligam os relatos. Há sim ressonâncias, elementos em comum que pontuam as histórias — o tarô, os imigrantes, as mulheres apagadas, os homens bêbados; há Curitiba, terra de estrangeiros, onde ninguém se sente em casa. Mas as ligações estão espalhadas — avançamos na obra como se chegássemos a uma festa cheia de gente animada. São tantas personagens que ficamos meio espantados. É ao final, na página tradicional de biografia da autora, que um jogo de palavras insinua uma amarração. Surgem os nomes de bisavós da escritora — Catharina, Luiza, Josefa e Inocência —, que reconhecemos da narrativa. A biografia, então, faz parte do romance?

Em sua obra poética, Estrela já demonstrou talento e autonomia que a destacam e a ligam às boas heranças de seus pais (Paulo Leminski e Alice Ruiz): perspicácia, leveza, humor. Desse ponto de vista, é inteligente a estratégia de abrir o livro com o relato da vida/morte de Pedro Leminski, bisavô da autora. Já se exorciza um nome de peso da família. Sugere-se um jogo com o leitor: se você chegou a este livro atraído por esse sobrenome, ei-lo aí, começamos logo por ele. O sobrenome então vai para uma pasta de documentos, guardados fora de ordem. E assim surge Luiza, a mulher do futuro, que investigará seu passado para libertar-se.

Luiza é uma curiosa projeção do primeiro capítulo do livro. O relato da morte do bisavô se encerra com a seguinte imagem: “Para seus descendentes, Pedro vai viver na ordem da descoberta de seus documentos”. Logo em seguida, Luiza remontará os pedaços de seus antepassados, na ordem em que encontrar os documentos. Da avó, ela encontra primeiro o atestado de óbito, depois o álbum de casamento, e finalmente as fotos dela bebê. Assim, em sua percepção, a avó “morreu, depois casou, depois nasceu”.

Há um tom de fantasia e de brincadeira que surpreende, num gênero (a busca por raízes) que muitas vezes é grave e pesaroso. A narração é fluida e concisa; traz anedotas e elementos surpreendentes, como no trecho abaixo:

Um maluco recém-chegado da França tinha surrupiado o corpo de seu marido e o mumificado. (…) Vejam: a primeira múmia brasileira. (…) Venham ver. Aqui entrou o buraco de bala. (…) Já ouvi que a viúva vendeu o defunto pra mumificar. Que horror. Dizem que ficou rica fazendo isso. Nossa, que horror de mulher.

A maturidade do estilo, em sua diversidade, liga a prosa da autora à sua poesia, em vários aspectos: a visualidade, o carinho pelas influências e o senso de liberdade. “Olhando para trás, tudo era sempre passageiro”, lemos no belo relato da vida de Josefa. A linhagens de mulheres, que sobrevivem com criatividade apesar de tudo, espelha um dos poemas de Poesia é não (2011), segundo livro da autora:

Sylvia desistiu/ Marina se rendeu/ Virgínia não quis mais/ Aglaja pediu as contas/ Dorothy abortou a missão/ Alfonsina mandou às favas/ Anayde entregou os pontos/ Florbela abandonou o barco/ Ana Cristina mandou tudo a merda/ e eu aqui/ de quando em quando/ teimando/ teimando/ teimando/ teimando…

Poesia é não está disponível na plataforma PR Cultura [https://www.prcultura.pr.gov.br/Pagina/Poesia-E-Nao]. A leitura dos poemas enriquece a apreciação do romance da autora, que é também compositora, instrumentista e cantora. A música é certamente uma profissão mais agradável que a literatura em prosa — ainda assim, podemos esperar que novos livros tragam essa voz do futuro, como a Luiza de 2061.

Quando a inocência morreu
Estrela Ruiz Leminski
Iluminuras
176 págs.
Estrela Ruiz Leminski
Nasceu em Curitiba (PR), em 1981. Publicou em 2004 Cupido: cuspido, escarrado, que inclui seus poemas de infância e adolescência. Desde então, tem publicado poemas, contos e crônicas em jornais e revistas literárias. Poesia é não (2011) foi selecionado no Programa Nacional Biblioteca na Escola e adotado em escolas de todo o país. Mestre em música, com estudos no Brasil e na Espanha, é também compositora, toca bateria e percussão. Em parceria com Téo Ruiz, lançou três discos com composições autorais. Tem organizado também coletâneas e exposições sobre os poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho