Muita gente pensa em escrever um livro. Mas muita gente mesmo. E vários conseguem, basta ver as livrarias, cada vez mais entupidas de lançamentos, isso quando não tivemos tempo nem de ler os clássicos ainda, aqueles que um antigo professor de literatura me aconselhava com uma maldição: “Se não leres esse, morrerás duas vezes!!” Claro que, no meio dessa inundação de novos títulos, nem todos são de qualidade. É necessário garimpar para encontrar os bons autores, os bons lançamentos.
Nesse momento penso no autor que publicou seu livro. Qual foi a motivação que o tirou da inércia para colocá-lo em frente a um teclado ou a uma máquina de escrever ou a um caderno e o fez escrever um livro? Qual foi a centelha que o motivou, quando teria sido mais fácil não fazer nada? E principalmente, no caso dos maus livros, quem foi que lhe disse que o que ele escrevia tinha qualidade, que iria ser lido? Provavelmente ninguém disse coisa alguma, a não ser seu espelho e sua vaidade extrema.
Por outro lado, há uma série de gente que, dotada de um senso crítico maior, mas muito maior, não escreve linha alguma, mesmo sabendo-se dotado de uma habilidade acima da média, com boas histórias para contar e que mereceriam ser ouvidas. Esses escritores que não escrevem, por assim dizer, recusam-se a sair da imobilidade. Preferem o silêncio às palavras impressas no papel. Negam o quanto podem sua vontade de escrever, e até acham graça disso. E quando publicam algo, o fazem simplesmente para poder negar sua obra posteriormente, e mergulhar em um silêncio enorme, longo, gigantesco, que parece ter muito a dizer, desde que alguém entenda isso.
De cara, sem fazer pesquisa, me lembro de dois exemplos. J.D. Salinger, autor do clássico O apanhador no campo de centeio, tem pouquíssimas obras publicadas, apesar do enorme sucesso conseguido com aquele que é seu livro principal. E ele parou de escrever bem cedo, e sumiu no mundo. Há “n” teorias da conspiração a seu respeito, há uma biografia escrita por uma mulher não-amada, há suposições de como seria seu visual, mas não há o principal: obras novas de Salinger. Há apenas o silêncio. Outro é Rimbaud, gênio aos 17 anos e com a carreira literária encerrada aos 19. Preferiu embrenhar-se pela África a continuar escrevendo. Para esses dois casos, o Não foi absoluto.
Mas há outros tantos, muitos tantos. Se você gosta de literatura e quer descobrir mais por que gênios como os dois citados e outros tantos param de escrever repentinamente, pode-se ler o excelente Bartleby e companhia, do espanhol Enrique Vila-Matas. Nele desfila uma série de escritores, reais e fictícios, mortos e imortais, que em determinado momento de suas vidas abraçaram o Não e desistiram de escrever. Isso mesmo sabendo que as idéias continuavam pululando em suas cabeças, que o ímpeto de lançar-se à frente, domar as palavras e ordená-las em um texto lacerava as suas essências, que o chamado (se é que escritores escutam algum) era incessantemente repetido em suas mentes.
Segundo o autor (não farei pesquisa, reafirmo nesse mês o que disse no mês anterior: quero dar-me o luxo de poder ler sem ter que me preocupar com a veracidade dos fatos, mesmo que seja um livro sobre outros livros), Bartleby foi o personagem não tão conhecido de um conto de Hermann Melvile (que escreveu Moby Dick, que todos conhecem). Nesse conto, Bartleby é empregado como copista em um cartório de Nova York. A princípio aparentemente ativo, Bartleby vai se entregando pouco a pouco a uma atitude contemplativa, olhando eternamente o prédio vizinho, em que a inação é a única ação que ele consegue ter. Quando perguntado sobre alguma tarefa, qualquer tarefa, ele responde: “Preferiria não o fazer”. E não o faz. E assim caminha (?) até o seu triste fim.
Vila-Matas, por meio do personagem de Bartleby e companhia, captura essa vontade de fazer nada, essa atração pelo nada, pelo Não, e percorre os caminhos da literatura verdadeira e imaginada listando os vários, muitos autores que um dia sucumbiram ao Não e calaram-se. Aparecem Sallinger, Rimbaud e tantos outros que será inútil tentar citá-los aqui. Mesmo porque, como pesquisa alguma será feita, há tantos que parecem ser falsos, mas tão bem construídos que se fossem verdadeiros não seria algo de se espantar.
O próprio protagonista do livro, que se refere a si mesmo como um corcunda nada atraente às mulheres e de um único amigo e que em um determinado momento se batiza QuaseWatt, em homenagem a um personagem de Samuel Beckett, sucumbiu à crise do Não. E em vez de escrever um longo texto acadêmico sobre os autores do Não, vai pondo sobre o papel notas de rodapé, uma após a outra, sobre os autores que descobre, sobre a correspondência com outros autores preocupados com o Não e sobre seu único amigo. Mas a crise do Não se reflete em um outro texto, nesse conjunto de notas de rodapé que é como o diário de bordo dessa pesquisa feita por QuaseWatt.
Vila-Matas nos conduz então pelos meandros do pensamento literário, como que querendo conversar conosco sobre por que não se escreve, e assim acaba respondendo também por que se escreve. Tão evidente é o contraponto que um dos personagens do livro é Georges Simenon, um dos mais laboriosos autores de que se tem conhecimento, que escreveu muito, mas muito mesmo, durante a vida inteira. Se o livro é sobre autores que nunca escrevem ou que um belo dia deixaram de escrever, o que faz um autor que não fez outra coisa em sua vida que não escrever?
Mais que um tratado crítico, o que absolutamente Bartleby e companhia não é, a obra de Vila-Matas é uma declaração de que a literatura é absolutamente desnecessária, e por isso mesmo ela é absolutamente bela. Pois só conseguimos apreciar com verdadeira paixão aquilo de que não necessitamos. Quem precisa de livros, quadros, música, arte em geral, para viver? Não valem respostas como “é o alimento da alma”, ou coisa que o valha. Que dá prazer, não nego, mas que é vital, ah não é mesmo! No fim, falar dos autores que abraçaram o Não é falar da literatura bela, que às vezes não precisa nem existir para continuar bela, deixando essa vida um pouco menos dura.
Talvez mesmo o ideal seria que todos ensacassem a sua viola e fossem carpir em outra freguesia, eu incluído, como diz o trecho do livro citado abaixo. Felizmente, há autores como Vila-Matas que mostram que literatura pode ser inútil, mas que é bom demais.
O autor – Enrique Vila-Matas, nascido em Barcelona (1948), estreou na ficção em 1973 e, desde então, além da atividade jornalística, assinou mais de uma dezena de livros, negando de forma contundente a síndrome do Não. Bartleby e companhia recebeu os prêmios Cidade de Barcelona (2001) e, na França, o de Melhor Livro Estrangeiro (2002).