Escritores sempre foram dotados para encontrar e retratar o duplo na literatura. Uma narrativa apenas linear, com um personagem enfrentando complicações, beirando armadilhas, seguindo pistas falsas para, num determinado ponto, deparar-se com a verdade, já não é suficiente. Caso se queira apenas isso, basta a leitura de notícias no setor de fatos diversos nos jornais. O bom escritor, ou aquele que tenta sê-lo, tem uma história para contar, mas ela não lhe é suficiente, ele precisa que essa história seja um espelho de outras realidades sob as quais estariam escondidas muitas questões.
Uma chance de continuarmos assim, de Taiasmin Ohnmacht, é um livro que parte de um acontecimento até certo ponto banal: a vida universitária, estudantes e pesquisadores diante de inventos, da tecnologia como necessidade premente. No entanto, acontece um acidente, a tal complicação exigida por uma boa trama: Paula, estudante de letras, tem uma amiga no Centro Tecnológico chamada Marcela; um dia vai ao centro à sua procura e entra numa espécie de cabine de íons chamada Sankofa. A tal cabine é, na verdade, uma máquina para viagens no tempo. Sem saber o motivo, a jovem é transportada para o futuro, onde encontra uma civilização que não lhe é muito simpática. A personagem, porém, não fica definitivamente por lá, vive ao mesmo tempo as duas realidades, a do seu local de origem e a do local para onde foi transportada.
Há momentos em que está no futuro servindo de experimento aos cientistas que a olham com desconfiança, permanece então presa numa cela sem grades. Enquanto isso acontece, ela também se encontra aqui, no mundo físico do presente, de onde partiu. Pelo que somos informados por sua mãe, parentes e amigos, Paula surtou e destruiu os equipamentos tecnológicos da universidade; vez ou outra não atende a chamados de pessoa alguma, tranca-se em si mesma e permanece em silêncio. Por isso, as pessoas do presente olham-na como portadora de problemas psíquicos.
Duas questões
De início, apresentam-se duas questões. A primeira é de universos paralelos; a segunda é a seguinte: pessoas que trazem informações novas são tratadas como desequilibradas ou mesmo como doentes mentais.
De um tempo para cá, entrou na moda narrativas literárias e cinematográficas que contemplam a coexistência de diversos mundos. Quem está no presente deseja saber como é ou como será o futuro. Os que estão por lá desejam vir ao nosso presente porque temos algo que eles já não têm e não conseguem desenvolver sozinhos.
Ainda outro ponto, muito importante, desenvolvido no décimo quarto capítulo, é o problema da preservação da memória: “para haver o futuro é necessário existir o passado, não é possível apagá-lo nem viver como se nada tivesse acontecido”, diz um dos personagens.
Dentro da narrativa, encontramos a discussão de vários tipos de preconceitos. O primeiro deles é a cor da personagem, porque ela não é branca. O segundo é a questão da mulher na sociedade atual e numa possível sociedade futura. Um terceiro: o mundo universitário é olhado com certa desconfiança.
O livro é desenvolvido em quatorze capítulos, numerados e com títulos: Claro demais, Marcela, Algo de muito errado etc. Todos os nomes despertam certa curiosidade no leitor, principalmente os que parecem inventados, como “Matemasie e Eu ouço, eu guardo — Mate Masie”.
Seguimos uma espécie de suspense, em que Paula vai enredar-se numa investigação perigosa para provar que tem razão, que não está louca, para tentar convencer a amiga Marcela que o experimento deu certo. Quando se trata de inventos ou descobertas, percebe-se que eles não são apenas para o bem da humanidade, há pessoas com interesses escusos, como o de um professor que deseja apropriar-se da Sankofa e utilizá-la para benefício próprio.
Entre iluminações e apagões vividos por Paula, a narrativa avança, numa espécie de aventura de ficção científica.
Jovens
O pequeno romance, caso seja trabalhado adequadamente, servirá muito ao público infantojuvenil, porque é o que mais tem afinidade com esse gênero de narrativa. Num país em que os programas de leitura são capengas, Taiasmin poderia, com este romance, trazer a chave do que significa a ficção para o jovem, preso demasiadamente ao mundo da imagem através das telas dos celulares, isto é, presos irremediavelmente em suas Sankofas.
Poder-se-ia perguntar: o mundo digital preocupa-se verdadeiramente com a memória? Muitos afirmam que computadores facilitam o acesso à informação, sistematizam-na e permitem o avanço do conhecimento. Isso não deixa de ser verdade. Mas há a velha polêmica entre Walter Benjamin e Theodor Adorno — à época a tecnologia era a fotografia e o cinema: a reprodutibilidade da imagem democratizaria a presença da obra de arte, poderíamos “ver” próximas a nós obras que estão em museus do outro lado do mundo. Em contrapartida, isso levaria ao avanço do conhecimento ou serviria de publicidade, envolvendo-nos em teias de alienação?
Falando neste tipo de tecnologia, o que se pode especular é que a juventude, a mergulhar constantemente no universo TikTok, Youtube, Instagram etc., viveria como Paula, em várias dimensões, não questionadas pelo sujeito e aceitas de bom grado como definitivas pelo poder dominante.
Talvez o livro, com sua linguagem cuidada e uma história até certo ponto inusitada, estaria colocando em questão uma das encruzilhadas da tecnologia: ela não é capaz de resolver os problemas verdadeiramente humanos. Outro ponto: caso existam seres humanos vindos do futuro, eles já terão perdido o pouco de humano que lhes restava; a nos farejar, estariam à procura do que ainda disso nos resta. Por isso, a resistência no que nos caracteriza como humanos “seria uma chance de continuarmos assim”.