Literatura africana de língua portuguesa até Mia Couto e José Eduardo Agualusa — escritores de projeções universais — é para reféns da insônia. Poucas conseguem atingir com tanta facilidade o nível de excelência em tédio e repetição. Ora é a seca castigando o povo e arrasando plantações, ora é a chuva arrasando plantações e castigando o povo, quando essas duas dão uma trégua chega a vez do vento. Emoldurando tudo isso, guerras e mais guerras. Um escritor africano a abordar tal temática já seria o bastante, mas não, eles insistem, se repetem num eficiente e torpe exercício de autopiedade e o bolor politicamente correto nos obriga a apresentar essa literatura aos nossos alunos com a máscara do imprescindível e da arte. Então, o professor busca as mais estapafúrdias possibilidades de interpretação para aprofundar o leito raso, lembram da formiga do Jânio Quadros?, por onde se esvai essa frágil e triste literatura. Via de regra, o professor buscará apoio em Dostoiévski. Afinal de contas, o russo já apresentara a miséria e a opressão da natureza de forma muito mais eficaz que esses sonolentos africanos. Então, não perca seu tempo, sempre é tempo de ler Dostoiévski.
Suspeito que os africanos não leiam seus compatriotas e que o exotismo e a vontade de nos distanciarmos das desgraças, como se fosse exclusiva da África, ainda nos motivem a ler literatura tão enfadonha. Por esses caminhos, patinou a literatura africana de língua portuguesa. Até Mia Couto e Agualusa. A partir daí a banda toca afinada. Teses sociais e antropológicas deixadas de lado, daí em diante podemos encarar como literatura propriamente dita.
Antes deles, a literatura africana — precisa dizer que é a de língua portuguesa? —apontava para a desolação, para o beco sem saída onde o homem resignado aguardava sua parcela de desgraça, tragédia e inutilidade frente ao “mundo mau”.
O homem, até então, não passava de mero receptáculo dos desígnios da natureza e dos mais poderosos. Em sua tentativa de agir, alcançava a humilhação e a dor. E esse mero esboço de iniciativa estava restrito às mais básicas formas de sobrevivência. Por vezes até com dignidade.
Em As mulheres do meu pai, José Eduardo Agualusa afasta o sentimento de inferioridade tão íntimo da literatura africana — repito: de língua portuguesa, porque pode aparecer um espírito de porco em meio aos meus leitores — e apresenta personagens preocupados com questões que vão muito além da sobrevivência com dignidade e paz. Em pauta a liberdade no seu sentido mais amplo. A liberdade que aciona os motores da ação, do mover-se, do procurar, o desconhecido e as origens, de questionar versões da história. Aqui o homem é sujeito das ações, tem iniciativa, vive, luta, inventa objetivos.
Agualusa não é simplesmente um escritor. É muito mais: é um escritor compromissado com a imaginação, imaginação motor da realidade; sua literatura é plena de movimento, bastante antagônica a de seus antecessores. Ele fez de As mulheres do meu pai um eficiente road movie; o continente africano atua como cenário sem as bobagens escapistas diante das quais nos deparamos com descrições do tipo: leões em sua fome saciada bocejam sobre a relva ao pôr-do-sol. De cortar os pulsos. Ao leitor cabe entrar na história despojado de piedade, de culpa, de catarse, mas por favor não confunda com alienação, o que é comum quando se trata de obra fruto, acima de tudo, de acuidade social envolta no celofane da sutileza. A África de Agualusa não se resume ao retrato de um continente adormecido, explorado, bombardeado, à Angola ainda minada e paupérrima.
As mulheres do meu pai retrata os homens e seus anseios, os homens e suas lutas, os homens e suas buscas, os homens e seus sonhos. Essa é a melhor maneira de desenhar um país, um continente, mostrando seu povo em movimento. Um país e um povo onde o emblema do escapismo, da alienação e da ignorância — a maldita esperança — não encontram espaço. Nesse belo e instigante romance, o movimento, a ação operando o contraste entre o primitivo e a civilização desenvolvida desconcerta até mesmo os espíritos mais reservados.
No romance, percebemos que Agualusa não desfaz dos elementos de sua cultura nativa. No entanto, submete-os constantemente a uma análise critica. Seus personagens são impulsionados pelo mito e pelo racional. E os mitos estão sendo mortos, lá, aqui, acolá. Resta ao autor a opção por um mito, o mito essencial, o mito da liberdade. Os personagens de Agualusa parecem ter consciência do quanto de Sísifo e Quixote implica essa opção.
Diferentes possibilidades
Está em moda a tal mistura de gêneros numa mesma obra, com resultados desastrosos em sua maioria. Tamanha preocupação estética implica em negligenciar o fundamental em literatura — a história a ser contada. Em As mulheres do meu pai, o leitor se sentirá numa verdadeira aula de literatura em que poderá “viajar” em segurança pelas diferentes possibilidades de se contar uma história: carta, diário, monólogos, diálogos, entrevistas, descrições. E em nenhum momento a opção estética soará gratuita.
É simplesmente a inquietação da implacável realidade a exigir as visões mais diversas sobre o mesmo tema. Até o real detesta a ausência de imaginação. É justamente desse movimento constante que resulta a literatura de Agualusa, na qual nada é definitivo, onde viver significa construir.
“Com quantas verdades se faz uma mentira?” é a frase que abre As mulheres do meu pai. Na dúvida, convém que tratemos ambas como ficção.
A partir de uma suposta verdade, a personagem principal do romance percebe em meio a sua viagem que “a verdadeira história” da qual faz parte não passa de ficção. Na tentativa de refazer a história de seu pai, de encontrar uma família, de retornar à casa paterna, descobre que nem sempre a história está desvinculada da mentira.
Percebemos, então, que o compromisso ético e político do autor não busca a piedade, o nefasto sentimento de pena no leitor, mas estimular a capacidade de questionar — o autor é de uma sutil ironia — dados históricos. Não há espaço para a ilusão.
A relação de Agualusa com Angola é semelhante à de Camus com sua Argélia. De Oran, Camus aprendera a olhar o mundo; de Huambo, Agualusa também aprendeu a olhar o mundo. No entanto, não percebemos em Agualusa o caráter moralista indisfarçável em Camus. Muito pelo contrário.
O amor pelas suas pátrias é notório em ambos e a viagem da personagem principal de As mulheres do meu pai é mais um ponto de aproximação entre esses autores, visto que Camus acalentava o sonho de realizar uma grande viagem.
A personagem de Agualusa segue os passos de Camus: volta nas páginas da história; volta no tempo, na tentativa de se encontrar, intento que o argelino alcançou ao chegar à Grécia. “Sinto que meu coração é grego”, escreveu Camus. Laurentina, a protagonista de As mulheres do meu pai, não tem dúvidas a respeito da nacionalidade de seu coração — prefere escrever, filmar, gravar em seu próprio país a sua história, ao refazer a trajetória de seu pai, reescrever a história de seu país.
Sinto, leitor politicamente correto, que você não gostou de eu ter chamado a literatura africana (de língua portuguesa) de repetitiva, sonolenta, monotemática, etc… até o surgimento de Mia Couto e Agualusa. Você prefere a atitude paternalista que aponta como justificativa o fato de ser de um continente pobre, sofrido, vitimado por guerras e pela natureza indomada? Prefere assim?
Excetuando as guerras, se bem que certas variações de guerra não nos faltam, somos bastante parecidos com os “pobres africanos”, o que não nos impediu de ter um Erico Verissimo bem diferente de Machado de Assis, de Murilo Rubião não ter nada de Graciliano Ramos, de Campos de Carvalho não fazer lembrar em nada José Lins do Rego. Em arte, como na vida, repetição não merece perdão.
Não o convenci, renitente leitor, então volte ao seu baú africano de mesmices, mas antes leia As mulheres do meu pai.