Não é fácil ser Sérgio (ainda bem)

Contos de Sérgio Sant’Anna mostram o caráter plástico e subversivo de um gênio das narrativas curtas
Ilustração: Sérgio Sant’anna Por Osvalter
21/08/2015

Qual o seu pintor favorito? O meu tem sido Sérgio Sant’Anna, aquele, o escritor.

Antes que você dê um Google e verifique que o carioca nunca pintou um quadro ou, vá, uma parede, me explico: não vejo alguém que escreva de modo tão plástico. Tudo bem que não tenho ido muito a galerias e museus, o que pode me deixar malfalado nas rodinhas e tornar a predileção bastante questionável para alguns, mas, dentro do que ouso opinar, os poucos livros que não abandono, desconheço outro autor que explore as belas artes de modo tão natural. Seus textos, arrisco resumir, são como quadros que tratam de outros quadros. Metaquadros, eu diria, caso fosse mais corajoso.

Tenho como ilustrar. Como qualquer resenhista ou coisa que pouco valha, nutro algum tipo de obsessão literária. A minha é de grau leve, acho: digito minhas passagens favoritas de livros em um documento do Word como se o ato me fizesse incorporá-las ou me ensinasse a escrever de modo parecido. (Não configura plágio, ok? E se vocês acham isso estranho é por que não conhecem a fundo outros resenhistas do Rascunho cujos hábitos envolvem fotos de escritores falecidos, velas, farofa, enfim, melhor deixar pra lá.) O primeiro parágrafo que anotei nesse arquivo, de nome MINHANOSSA.doc, é uma belíssima passagem de Sant’Anna no livro de contos O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de 1982, e que, por acaso ou boa ação dos editores, acaba de ser relançado pela Companhia das Letras. Ei-la do mesmíssimo jeito que teclei:

esse tom que deverá existir no original e que é precisamente o que este escritor busca para si e que se encontra sempre mais além, talvez pq não caiba em palavras, e sim nas obras dos pintores raros que conseguiram captar o tal momento, o tal cenário, a tal cor, que é aquilo que estamos sempre desejando para as palavras, escrevendo, para logo depois saber que não, não é bem isso.

Deslocada, a frase pode não fazer o leitor soltar um “minha nossa!” como ocorreu comigo. Ainda assim, pode servir como chave para entrar na, vamos dizer, plástica poética de Sant’Anna. O trecho está contido do segundo conto do livro, o bem conhecido (ao menos por meus amigos a quem não canso de falar a respeito) Cenários, em que o autor evoca, a cada bloco de texto, atmosferas literárias para uma nova narrativa. Uma coisa bem Sérgio Sant’Anna, você pode dizer, para parecer entendido. Nessas buscas por ambientes ou situações que toquem sua alma — um casal de manequins em uma triste peça na vitrine, uma enlameada musa que se entrega a um poeta ascético, um cineasta que mixa o som do zumbido das moscas… — o escritor arremata: “não, não é bem isso”.

O trecho que copiei e colei se refere a um homem que ambiciona um texto “buscando palavras para cenários talvez por palavras indizíveis, como se sua realidade fosse esta, buscar o impossível”. Este cara, que sem dúvida é Sant’Anna de um lado para outro no seu apê nas Laranjeiras a rasurar maços de papel, parece se encontrar ao ver a foto de um quadro de Edward Hopper dentro de um livro. Mas o achado logo perde o encanto. Para angústia do autor, o retrato está em preto e branco. Ele sabe que nunca conseguirá chegar ao tom que o comoveu. E escrever, afinal, não é isso?

Sant’Anna sabe bem de sua missão impossível e reflete durante todo O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, com pinceladas aqui e acolá, sobre as limitações da literatura e do próprio texto. (Se você acha isso mais da mesmice pós-moderna, bem, vale lembrar que o livro é de 1982, isto é, antecede em dois anos O nome da Rosa, em que Umberto Eco traça algumas das características que guiariam o estilo, escola, tendência ou sei lá o que isso virou.) Ainda que de fácil leitura, a obra é, por mais contraditório que seja, bastante experimental. Todas as narrativas possuem o aspecto de inacabado. Não por desleixo ou distração; o ato de levar os textos ao limite torna o fim algo impossível. O autor se expõe como um processo em construção e grande parte dos contos, se não todos, trata do ato de arquitetar, montar, ligar e desligar os pontos. O narrador tenta construir textos, imagina casas, discorre sobre cenários possíveis e impossíveis, como o contato místico com o músico João Gilberto. A cada nova folha em branco, surge uma nova tentativa — que fracassará, claro — de dizer, como ele repete, o indizível.

A inquietude e a beleza dos contos estão nas tentativas de subverter a forma, romper molduras, misturar tons e cores: reinventar-se sem o peso do acerto. E fazer arte, ora, não é isso?

Claro que reduzir o talento de Sant’Anna a esse aspecto, digamos, estético e formal da arte, é pouco. Suas qualidades técnicas e poéticas vão muito além da pinta de artista — aliás, sei que é chato ler uma resenha que só enaltece, sem intrigas ou cutucões, por isso aviso ao leitor que talvez seja o caso de dar uma fuçadinha nas últimas do Facebook e depois voltar para cá. De um jeito ou doutro, os trunfos narrativos do escritor estão sempre associados a esse aspecto do olhar de artista plástico, de quem caça minúcias de toques, imagens, sons e associações que passam despercebidos ou soam, para os mortais apressados que não vão muito a museus, como traços ordinários.

A melancolia no primeiro plano
No seu livro mais recente O homem-mulher, lançado junto do citado acima, Sant’Anna parece chegar ao auge dessa sensibilidade ímpar. Sem perder o ar provocativo, ele parece atingir o rigor que buscava de modo implosivo em O concerto… A nova obra até que se assemelha às anteriores em formato e busca: são reuniões de narrativas curtas, um tanto experimentais, que falam de trepadas homéricas, fantasias, futebol, contemplação e amores com humor que alternam o sublime e o grotesco. Mas há duas características essenciais que só estão na mais recente: a arrebatadora sensação de fim e a consequente melancolia.

O fio condutor de O homem-mulher são os inescapáveis finais. O primoroso conto que dá título e abre o livro, um grande exemplo, conta a história de um melancólico jovem paraense que sente tesão por se vestir de mulher. Heterossexual mas inseguro, o personagem só usa calcinhas em duas situações: escondido no quarto das irmãs ou no Carnaval. Nos festejos de rua, fantasiado da cabeça à calcinha como uma moça, o jovem, excitadíssimo, encontra uma menina turista e virgem por quem se apaixona entre bebidas e jatos de lança-perfume nas roupas íntimas. Lá pelo terceiro dia, o garoto vestido de garota a leva para o cemitério e ambos vivem uma cena de sexo passional, com elementos soturnos e ricos em signos típicos da prosa do autor. O caso de libertação e êxtase acaba com juras eternas. “E nunca mais se viram”, pontua.

Seria um fim já bastante melancólico, certo? Pois Sant’Anna, no finzinho do livro, depois de 18 contos, retoma a história. Não resta dúvida: o autor quer finalizar, terminar, sacramentar o que vem dizendo por todo o caminho. O menino travestido de menina ganha mais substância: vira um cara de espírito livre, um ator querido pelas putas e pelos boêmios de Belém, mas que, para seguir sua vontade de virar um artista conhecido, se muda para o Rio. Na capital fluminense, o homem não tem nenhuma sorte e vive como um artista maldito pelas ruas da Lapa. Um dia, cansado do desprezo alheio, encontra uma forma de se expressar e de chamar atenção das pessoas ao redor: veste-se de mulher igual fazia nos Carnavais. A diferença é que agora andava com vestidinho, os pelos do peito à mostra, dia e noite, para baixo e para cima, enquanto começa a escrever uma peça de teatro. Não demora para que o homem-mulher arrebanhe seu elenco: uma atriz companheira, com quem mantém caso amoroso, um ator imigrante cubano homossexual, que representa o papel das minorias, e um ajudante faz-tudo, capaz de cuidar da iluminação e representar alguns tipinhos menores no palco.

Acaba que o grupo de teatro se torna a própria peça. Atores vivem ensaiando um texto maleável debaixo do mesmo teto apertado para, meses depois, levar a proposta de serem eles mesmos num teatro no centro da capital. Sem explicitar a peça por inteiro, expondo apenas conceitos e cenários, Sant’Anna cria uma dramaturgia vanguardista que nem mesmo o mais polêmico dos teatrólogos proporia, o que por si só traz uma leitura deliciosa sobre, perdão pela repetição, limites e vulgarização da arte. Ele, o autor de carne e osso, também narra as reportagens, a recepção do público e como a peça acaba virando a própria doença do Homem-Mulher, que, arrasado pela incompreensão do público e motivado pela sua extrema filosofia, realiza o único fim possível para sua dramaturgia: mata-se no palco. A pecinha malquista, então, a partir do suicídio, é reencenada pelo mundo todo, vira um marco, coisa de gênio. Não consigo pensar em nada que traduza mais a bile negra de um artista do que esse fim. (Ah, e presumo que esse tipo de spoiler não tire a graça da leitura, correto? Somos bem grandinhos.)

Outros exemplos que não me saem da cabeça, de como a melancolia está impregnada neste novo livro, são os contos Lencinhos, Um retrato e Eles dois — isso para não citar os mais óbvios: um de título Melancolia e Madonna, que trata dos quadros angustiantes de Edward Munch.

Lencinhos, o primeiro, retrata um homem à beira da morte que busca arranjar um marido substituto à esposa; embora tenha lá suas sujeiras, o conto é de uma delicadeza estonteante: a apaixonante mulher tece lencinhos que são descritos em minúcias como verdadeiras obras de arte e o fim, esperado desde as primeiras linhas, ocorre em meio a divagações sobre a transitoriedade da vida. Já o segundo, mais curto, é uma descrição de um retrato da falecida mãe de um narrador que mal chegou a conhecê-la. Esta narração tem efeito de um soco na amídala cerebral, onde dizem se formar nossas emoções, o que me fez questionar se talvez não fosse o caso de se chamar Lencinhos, para meio que avisar o leitor a se equipar para possíveis derramamentos de lágrimas. Anote aí pra próxima, Sant’Anna!

O terceiro também é bom ler em local imune ao julgamento alheio: trata-se de uma bela narrativa de um casal que muito se amou durante a juventude e, anos depois, viram apenas lembranças de um grande e impossível caso. Este em especial me soou bastante autobiográfico, mas não posso afirmar pois, infelizmente, nunca sentei num bar com Sant’Anna para lamentar amores perdidos.

Vozes da experiência
A revista piauí trouxe um excelente perfil de Sant’Anna na edição de abril deste ano. Como eu sei que você vai ler não só os dois livros que citei, mas também essa grande reportagem, poupá-lo-ei de citar os detalhes da vida do autor. O que nos interessa é que ele está com 74 anos. E, convenhamos, é bem impressionante que, mesmo depois de décadas de prêmios e elogios muito mais valiosos do que os dessa resenha, o autor consiga manter a aura de inquietude e subversão.

De uma forma muito peculiar Sérgio consegue, em meio a muitas vozes, imprimir um estilo próprio em seus livros, como um talentoso ator que encena diferentes papéis com um único traje. Se a reinvenção de si próprio aos trinta não é mole, imagina depois dos sessenta? O título que sugeri ao editor do Rascunho não podia ser outro: “Não é fácil ser Sérgio”. Me parece um pouco exagerado agora. O que vocês acham? De certo o editor terá uma sugestão melhor.

Sant’Anna também não aprovaria, acho. Não que eu o conheça. Na única vez que tive a oportunidade de falar com o autor, para uma entrevista jornalística por telefone, Sant’Anna tinha acabado de lançar seu livro anterior a Homem-mulher, o Páginas sem glória, uma reunião de contos que achei bem interessante. Li a prova do livro na revista pela qual trabalhava e pedi, de São Paulo, entrevista a ele, que me atendeu com voz pacata no seu apartamento no Rio. Eu já era fã, mas soube disfarçar bem. Ele me explicou o processo de criação e disse que aquele era seu livro mais bem acabado. Eu não sabia se concordava pois, embora tivesse lido todos, gostava muito de O voo da madrugada e, como vocês sabem, O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, e achava que estavam todos no mesmo patamar. Publiquei a frase autoelogiosa na entrevista e ele não chiou; disse até que curtiu a matéria, mas pediu com bastante educação para eu consertar o nome da universidade na qual se formou. (É, errei uma informação bem em frente ao mestre, fazer o quê. Custou-me apenas 200 chibatadas e um ritual de purificação que um colaborador do Rascunho me ensinou.)

Hoje, se eu pudesse falar com Sant’Anna, diria que ele estava errado. Falaria que sua melhor obra ainda estava por vir. Vida longa, Sérgio!

O concerto de João Gilberto no Rio De Janeiro

Sérgio Sant’Anna
Companhia das Letras
224 págs.
O homem-mulher

Sérgio Sant’Anna
Companhia das Letras
184 págs.
Sérgio Sant’Anna
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. Iniciou sua carreira de escritor em 1969, com os contos de O sobrevivente, livro que o levou a participar do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Teve obras traduzidas para o alemão e o italiano e adaptadas para o cinema. Recebeu quatro vezes o prêmio Jabuti.
Guilherme Pavarin

É jornalista.

Rascunho