Não é fácil ser o chefe

Na série televisiva The Sopranos, a literatura e o cinema se encontraram de modo único
10/07/2015

Quando a história do início do século 21 for contada e todos perceberem que muitos de nós ficamos horas a fio na frente de uma tela de TV ou de computador em vez de segurarmos um livro, seguindo as vidas de alguns personagens que antes jamais teríamos a paciência de suportar nem mesmo no café da manhã, então você pode colocar a culpa no sujeito que, se não foi o pioneiro disso tudo, foi sem dúvida quem nos roubou preciosas horas de leitura — David Chase.

Chase faz parte de um grupo odiado pelos intelectuais e pelos escritores, não só porque cria e escreve roteiros para aqueles produtos que, como diria meu pai, não passam de “enlatados” — e que hoje são chamados pomposamente de “séries de televisão” — mas também porque, per supuesto, ele seria o competidor dessa forma nobre de contar uma história — a literatura. Nada mais errado, como quero mostrar nas linhas a seguir e nos próximos artigos desta série. Na verdade, apesar de não se considerar um literato (e muito menos um intelectual), Chase fez algo impensável para quem trabalha no meio áudio visual e tem a preocupação séria de contar sua história sem as limitações de tempo que o cinema exige: ele finalmente transformou algo considerado de segundo escalão — a televisão — e deu-lhe uma complexidade que, atualmente, os espectadores só conseguem em um bom romance.

Esta é a verdadeira razão do sucesso dos produtos que fazem parte da chamada “Era de Ouro da Televisão” — composta por séries de, em média, 13 episódios por temporada e geralmente produzidas por empresas que tentam combinar inovação artística e retorno comercial, como a HBO (Home Box Office), a AMC (American Channel), ShowTime e Netflix. O formato do seriado televisivo lembra um pouco o dos folhetins literários que também fizeram fama no final do século 19 e início do 20: cada episódio tem cerca de uma hora e, no total de 13 horas, podemos acompanhar a vida e os dilemas de um personagem em detalhes, numa espécie de imersão dramática que não teríamos se ficássemos em uma sala de cinema, agoniados pelo limite de uma película que duraria, no máximo, treze horas — e tudo em direção a um cliffhanger, o “gancho” dramático que deixa o espectador ansioso para saber o que acontecerá a seguir.

Apesar de ser um cinéfilo de carteirinha, David Chase compreendeu a função desta forma recuperada de contar uma história e aplicou-a rigorosamente em sua maior criação: The Sopranos (traduzida aqui no Brasil por algum infeliz como “Família Soprano”). Realizada entre os anos 1999-2007, a série mostra o que acontece com a família do título, que, no caso, mistura a esposa Carmela, os filhos Meadow e A. J., o tio Corrado e a matriarca Livia, com os capangas Paulie Walnuts, Silvio Dante, Chris Moltisanti e Sal “Big Pussy” — todos liderados pelo capo di tutti capo da máfia italiana em Nova Jersey, Tony Soprano, interpretado pelo progressivamente pantagruélico James Gandolfini (1961-2013), o único ator capaz de mostrar as nuances de um personagem que tinha tudo para ser um clichê, já que, como se não bastasse ter que administrar tudo isso, passa a ter ataques de pânico e, em segredo, resolve frequentar sessões de terapia com a psiquiatra Jennifer Melfi.

Grande mosaico
O próprio Chase foi um frequentador assíduo de conversas psiquiátricas — e muito da sua experiência com sua própria depressão foi reelaborada na série, em especial o relacionamento com sua mãe, que inspirou vários detalhes de Livia Soprano, uma mulher que, no caso, nenhum espectador gostaria que cuidassem quando estivesse adoentado, devido ao nível explosivo de maldade e neuroses acumuladas. Mas há outras influências no seu processo criativo. Em primeiro lugar, é de se notar como Chase tem um carinho especial pelos filmes de gangster, sobretudo Os bons companheiros, de Martin Scorsese, e os três O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, cujas referências podemos perceber em praticamente todos os episódios; depois, temos a paixão de Chase pela música popular americana, em particular pelo rock, pois, no seu caso, algumas canções (sempre usadas de forma diegética, isto é, dentro da cena) são uma espécie de complemento, comentário ou reflexo de algum tormento existencial do personagem em questão; e, last but not least, a decantação do tempo cinematográfico em um tempo literário, cujo ritmo passa a ser de imersão, obrigando o espectador a observar os detalhes de composição do roteiro, chegando à conclusão de que a intenção de Chase não é apenas de fazer de cada episódio um filme autossuficiente, mas sim a de criar uma peça no grande mosaico que está a elaborar, um mosaico que, no fim, imita o andamento de um roman-fleuve, o romance-rio que fazia a cabeça dos leitores franceses no início do século 20, cujo maior representante é nada mais nada menos que Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.

De certa maneira, Chase consegue realizar com The Sopranos a mesma coisa que Proust fez com seu ciclo de romances — provocar no espectador a recuperação de uma época histórica e também a afeição por alguns personagens, provocando assim sua sensibilidade moral. Contudo, ele não fez isso sozinho. Ao contrário de um escritor, que cria e redige sua obra em completa solidão, o showrunner de uma série de televisão (termo para designar quem realmente manda no programa em termos criativos) precisa de muita colaboração para chegar ao produto final. Geralmente, ele elabora o arco dramático principal da história que quer contar e, depois disso, contrata os roteiristas que julga necessários para escrever os episódios que formarão a temporada a ser realizada. Muitos showrunners preferem fazer isso sem dar nenhuma liberdade à equipe, mantendo tudo sob seu controle; outros, como David Chase, dão uma liberdade insuspeita aos roteiristas, deixando-os desamarrados, desde que, claro, respeitem as diretrizes básicas do seriado e saibam sempre que ele é o condottiere de toda a empreitada.

Foi assim que Chase permitiu que alguns roteiristas dessem um caráter mais literário a The Sopranos — como foi o caso de Terence Winter (que depois se tornaria um dos escritores favoritos dos filmes de Scorsese, como o polêmico O lobo de Wall Street), da dupla Robin Green e Mitchell Burguess e, especialmente, de Matthew Weiner. Será este último que, ao ser contratado por Chase depois de ter apresentado o roteiro de uma série que queria produzir (a futura Mad Men, tema do nosso próximo artigo), assumiu as funções de conduzir as duas últimas temporadas do seriado, em especial a derradeira, no qual aprofunda as experiências com o tempo literário e mergulha definitivamente no tema central da saga de Tony Soprano.

 

Até o derradeiro final
Weiner e Chase levaram ao extremo a primeira regra de qualquer seriado que se preze — e que seria, talvez sem saberem, o eixo principal de todo o sucesso dos produtos da Era de Ouro da Televisão. Eis a regra: toda a série tem um tema principal e cada episódio tem a obrigação de aproveitar todas as suas variações até o derradeiro final. No caso de The Sopranos, o tema é nada mais nada menos o medo da morte — mas não uma morte qualquer e sim aquela que até Thomas Hobbes sofria constantemente em seus tratados de ciência política: o medo da morte violenta. É por este motivo que Tony começa a ter ataques de pânico e é obrigado a procurar a doutora Melfi (interpretada por Lorraine Bracco, que fazia parte do elenco de Os bons companheiros). Ele sabe que vive em um mundo violentíssimo e, mais, que qualquer amostra de fragilidade é punida pelo código de honra de uma sociedade que, pouco a pouco, se despedaça conforme os EUA se confrontam com as consequências dos ataques do 11 de setembro. Tony é vigiado por si mesmo e por todos da sua família que o rodeiam, além de, obviamente, da polícia que está no encalço; ele se vê como o homem que tem de resolver todos os problemas, mas desconhece que é incapaz de saber o que acontece consigo mesmo, implodindo-se em neuroses lentamente reveladas por meio de sonhos cada vez alucinados e que fazem questão de invadir o seu cotidiano brutalizado.

Neste aspecto, Chase também se aproveitou da pequena inovação que o cineasta David Lynch fez na televisão quando este lançou a sua bizarra soap opera Twin Peaks. Lynch praticamente enfiou goela abaixo dos executivos do canal aberto ABC (American Broadcasting) um mundo repleto de pesadelos dignos de um Luis Buñuel — e The Sopranos recupera isso em um outro grau, só que, desta vez, usando a consciência de Tony Soprano como um centro atormentado, repleto de zonas sombrias impossíveis de serem acessadas e que culminam em atos violentos, os quais não seria exagero afirmar que o personagem principal de uma das séries mais célebres dos últimos anos não passa de um notório psicopata.

É com esta ambiguidade moral que Chase (e depois Weiner, especialmente na temporada final) joga o tempo todo e assim também mantém o fascínio do espectador — algo que só seria suportável justamente porque usa e abusa de recursos literários para a construção desse ambiente. A família Soprano se transforma na própria América dilacerada por dentro e, independentemente da nacionalidade, em cada família que começa a se identificar com ela. Sabemos que eles não são bonzinhos, mas gostaríamos que eles fossem, simplesmente porque, em um mundo que vive em constante estado de exceção, onde todos se sentem acuados, gostaríamos de praticar o que defendem: o uso da violência justamente para impedir a morte trágica de uma época que começa a se despedir.

Romance social
No fundo, apesar das referências cinematográficas e musicais, cada roteiro da série forma um grande romance social, no melhor estilo que só os Estados Unidos sabem fazer, digno de qualquer linha escrita por Philip Roth, John Updike e Richard Ford. Respectivamente em relação a cada autor, The Sopranos lembra muito, graças ao seu humor sarcástico, a famosa trilogia americana composta por Pastoral americana, Casei com um comunista e A marca humana; os tormentos de Tony a respeito da sua identidade como homem e pai de família nos remetem à serie Coelho, que giram em torno do pobre coitado Rabbit Angstrom; e a intersecção do público com o pessoal, especialmente no detalhe que a família Soprano se destrói de forma imperceptível, tem suas semelhanças com Independence Day, o romance social que tenta superar o que Roth e Updike fizeram nos anos anteriores.

A fusão da ambiguidade moral com o sopro literário levou também Chase a um impasse. Como o espectador podia se identificar com um psicopata? Para um showrunner dado a rompantes temperamentais, este era o assunto mais difícil de ser resolvido — e foi esta a tarefa a qual Matthew Weiner foi convocado para resolver. Formado em História e Filosofia pela Wesleyan University, o jovem roteirista resolveu o desafio brilhantemente com a ajuda de Terence Winter — e, dessa forma, começou a usar referências literárias explícitas para demonstrar ao espectador que Tony Soprano não passava de um monstro. O melhor exemplo dessa técnica está no clássico episódio da última temporada, intitulado justamente “The second coming” (A segunda vinda), em homenagem ao famoso poema de W. B. Yeats (e apesar de Winter ser o escritor creditado no episódio, a ideia originada no writer’s room veio de Weiner, provando que, nesse negócio, colaboração é tudo). Trata-se de uma peça suprema de concisão e de simbolismo literário: em uma determinada cena, o atormentado filho de Tony, A. J., fica impressionado com os versos do poeta irlandês, em especial com aqueles que mostram uma besta apocalíptica indo em direção a Belém; isso remete ao que acontece no episódio anterior, “Kennedy and Heidi”, em que vimos Tony vagando pelo deserto de Las Vegas, acompanhado por uma prostituta de luxo, tomando peiote, atormentado por ter assassinado um braço-direito seu e tendo uma epifania, ao gritar em um cenário muito próximo da vastidão descrita por Yeats: “Saquei tudo!”. Mas não sacou nada — e eis aqui o seu problema como personagem e o nosso problema como espectador que fica fascinado por acompanhar este canalha adorável. Afinal, Tony pode ser a besta apocalíptica descrita no poema, capaz de destruir seus companheiros mais próximos, mas é também um pai protetor que apenas fez o que fez para manter a ilusão de que está tudo bem e assim manter a sua família cada vez mais unida.

Fronteira para esnobes
O uso de um poema intrincado como o de Yeats no meio de um programa de televisão mostra, na verdade, como as relações entre a alta cultura e a chamada cultura pop são meras fronteiras que fazem a alegria dos esnobes e dos pedantes. Há alguns anos, ninguém menos que Orson Welles, o criador de Cidadão Kane, o filme que praticamente inaugurou o cinema moderno, não teve pudores de afirmar o seguinte: “A pobreza da televisão é uma coisa maravilhosa. O grande filme clássico fica naturalmente ruim na tela pequena, pois a televisão é inimiga dos valores cinematográficos clássicos, mas não do cinema. É uma forma maravilhosa, em que o espectador fica apenas a um metro e cinquenta da tela, mas não se trata de forma dramática, e sim de forma narrativa, de modo que a televisão é o veículo ideal para o contador de histórias”. Isso significa que a intimidade proposta por um seriado é permitir a imersão do espectador no mundo destes personagens apresentados diante dos seus olhos, pelo menos uma vez por semana — uma intimidade que, de certa maneira, é o que também temos quando dedicamos um pouco do nosso tempo quando nos deparamos com a página manchada das palavras elaboradas por um escritor.

O importante é seguir à risca o conselho de Welles — o de estar a serviço da história, contá-la sem se preocupar com o que o público pensará a respeito dela, mesmo que pareça que não tenha muito sentido em uma primeira impressão. Foi o que David Chase e companhia fizeram, especialmente no último episódio de The Sopranos, uma das coisas mais enigmáticas já feitas em qualquer meio narrativo. Ali, um corte súbito e um pano preto sintetizam e resolvem a ambiguidade moral que antes perpassava cada episódio e que deixava os espectadores tensos. O terrível silêncio do final, logo após do espectador ter ouvido a ensurdecedora “Don’t stop believing”, do grupo de rock Journey, provoca a inusitada sensação de que uma série de 86 episódios, distribuídos em seis temporadas, permanece na mente do público por anos e anos. Com The Sopranos, a literatura e o cinema se encontraram de um modo único, especialmente neste meio tão áspero chamado televisão. A partir daí, o que viria a seguir seria apenas consequência do que foi estabelecido como cânone pelos seus roteiristas. E, claro, se não foi fácil para David Chase ser o chefe de uma inovação artística, também ficará claro para nós, nos próximos episódios da nossa série de artigos, que o trabalho de se contar uma história se tornou muito mais complicado.

NOTA
Este é o primeiro texto de uma sequencia de seis ensaios sobre como o sucesso das grandes séries da televisão americana está relacionado com o uso da literatura na criação dos seus enredos e de seus episódios. Em setembro, será a vez de Mad Men, de Matthew Weiner.

Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

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