Nada será como antes

Em "Bem-vindo ao clube", Jonathan Coe mostra os porquês da desilusão de toda uma geração
Jonathan Coe: talento para tecer uma história polifônica e politemática, como se fosse um diálogo informal
01/03/2005

O que caracteriza uma obra como retrato de uma época? Mais do que isso: o que faz de um romance, um livro de ficção, um objeto mais fidedigno do que uma série de documentários ou livros de história sobre o período? Certamente, não são os relatos ou a narrativa em si. Esses elementos obedecem a uma singela espécie das obras de ficção e, via de regra, não subvertem essa ordem. Entretanto, é correto afirmar que a literatura tem lá seus segredos, desses que fazem “o tempo ficar fora do eixo”, como escreveu Shakespeare, e, por incrível que pareça, tornar a literatura um verdadeiro documento de época, capaz de captar nas entrelinhas não só a essência da condição humana, mas as causas e os efeitos da felicidade e do mal-estar. Grosso modo, o parágrafo acima ensaia a definição do significado de Bem-vindo ao clube, do inglês Jonathan Coe.

À primeira vista, a trama contada por Jonathan Coe é prosaica e “regional”. Isso porque, a um só tempo, o autor narra a trajetória de um grupo de amigos que freqüentavam a mesma escola na cidade de Birmingham, na Inglaterra. Definitivamente, Coe não é o primeiro a tratar de histórias de garotos numa cidade pequena e, não só, de como esses sonhos se tornaram, anos depois, ilusões perdidas. Felizmente, o livro não se resume a isso. Com efeito, é correto afirmar que tanto a presença de garotos como a cidade de Birmingham são o pano de fundo de uma história rica em detalhes e em lances que se confundem com a realidade, recolocando importância em acontecimentos que, para o bem e para o mal, podem estar ofuscados por parecerem fora de moda, mas que são cruciais para a compreensão do mundo contemporâneo.

Assim, no prólogo, o leitor descobre um encontro inusitado entre duas pessoas, Sophie e Patrick, que não se conhecem. Ou, melhor: se conhecem por meio de seus familiares. O ano é 2003 e, por algum motivo, talvez para não se sentirem tão desconfortáveis um diante do outro, começam a relembrar casos e personagens comuns aos parentes dos dois. Nesse momento, Sophie propõe a Patrick uma viagem. Uma jornada a um período em que nenhum dos dois era nascido e só conhecem pelas vozes de coadjuvantes dessas histórias. Sophie, porém, faz uma ressalva antes dessa viagem começar: “Posso te contar essa história, mas talvez você fique frustrado. Não tem um fim. Ela simplesmente pára. Não sei como termina”. Ao que Patrick solicitamente responde: “Talvez eu saiba o final”.

A “volta no tempo” vai até o inverno de 1973. E o leitor logo descobre que está numa típica casa de família de classe média inglesa. Um casamento sólido, ao menos aparentemente, com três filhos. Benjamin, Lois e Paul. Aqui, pode-se não compreender a particularidade de algumas cenas, mas são características que estarão amplamente presentes ao longo do romance. Neste cenário, Lois, a garota, procura um namorado em anúncios de jornal. Do outro lado, Paul, o filho elitista, surge fazendo algum comentário sarcástico e, por fim, há Benjamin, o mais sério e inescrutável dos três. Eles são os Trotter. O chefe da família é Colin Trotter e no exato momento em que os filhos estão em casa, ele se encontra numa espécie de jantar com os colegas de trabalho. Colin é um jovem empresário e se reúne com seu chefe e o líder sindicalista da fábrica. E então, nessa simples diferença de ocupação, encontra-se uma das marcas da obra. A distinção das pessoas segundo a classe social. A propósito, não deixa de ser curioso que logo no início um dos personagens sugira que essa luta de classes não existe mais. Não é o que se encontra no livro. Ali, os territórios estão bem demarcados. De um lado, a chamada classe trabalhadora, que lutava por melhores condições com o auxílio dos sindicatos (sendo, à época, representado pelo Partido Trabalhista). De outro, o grupo dos empresários, pertencentes aos partidos conservadores, ligados tradicionalmente ao elitismo.

Afora essa discussão entre sindicatos e empresários, os conflitos morais também estão presentes, mostrando que, ao fim e ao cabo, são as relações humanas que se impõem até mesmo ao dever. Jonathan Coe ilustra isso com o affair de Bill Anderton, representante dos trabalhadores, e Miriam Newman, secretária do sindicato. Para ele, o que importa é o sexo; para ela, o amor. “Homens são de Marte, mulheres são de Vênus”, diria o autor de best seller. O envolvimento dos dois, no entanto, mostra-se mais complexo que isso e acaba por ter conseqüências que atingem todos os outros conflitos na história, ainda que indiretamente.

A despeito de todos os personagens do livro, assim como de seus dilemas “adultos” (traição, luta por poder, etc.), o autor investe no olhar dos adolescentes quando tem de descrever os assuntos mais complexos daquele período. Numa seqüência, ainda na primeira fase do livro, Benjamin Trotter e Philip Chase travam uma discussão interessante: “Por que o IRA está matando todo mundo? Por que o Petróleo é tão caro? O que vem a ser essa tal de Guerra Fria afinal?” Logo em seguida, a constatação: “Não sabemos muito sobre este mundo, sabemos?”. O amigo responde dizendo que nada daquilo interessa. E, de fato, para eles, naquele momento, não interessava, mas o brilhantismo da narrativa de Jonathan Coe está justamente aí: ele mostra que nenhum dos acontecimentos de ordem pública, como as greves, os atentados terroristas ou a Guerra Fria, ocorreu sem afetar a vida de todos na cidade de Birmingham. E, ampliando aqui essa discussão, é possível afirmar que esses fatos transformaram a vida de todos de uma maneira que até hoje sequer se consegue mesurar.

O autor, entretanto, não faz disso uma bandeira; antes, aponta as raízes dessa influência de maneira sutil, como quando uma turma de garotos demonstra intolerância em relação a um imigrante negro. Tal como é abordada no livro, a questão não pretende espantar pela forma, mas, sim, provocar pelo seu conteúdo, a saber: a não-aceitação do jovem negro é evidente até mesmo entre aqueles que não o perseguem. Como se o racismo estivesse arraigado cultural e historicamente. Isso num momento em que também os adultos discutiam a polêmica racial na Inglaterra.

A propósito, nota-se que Jonathan Coe procura intercalar uma ocorrência entre os adolescentes e outra entre os adultos, amarrando as temáticas ora simples, ora complicadas, de maneira a dar unidade em toda a história. Por vezes, a ordem cronológica também é deixada de lado, o que comprova o talento do autor em não só fazer uma história polifônica e politemática, mas, sobretudo, como se fosse mesmo uma conversa informal entre duas pessoas, tal qual está indicado no prólogo. Só os fatos relevantes importam. É o caso do dia da traumática demissão de milhares de empregados da fábrica, quando Bill Anderton constata que nada mais será como antes: “Ah, sim, houve muitos dias, bons dias, e há relativamente pouco tempo, quando ele realmente acreditava que a luta poderia ser vencida; mas a década agora já ia velha, e ele estava envelhecendo com ela, e sabia que aqueles dias jamais voltariam”.

A época em que se passa o romance foi, sem duvida, um dos períodos mais conturbados na história recente da Inglaterra, da Europa e também do mundo. Isso porque não foram apenas mudanças de ordem econômica, como o aumento do preço do Petróleo, ou políticas, como a disputa da Guerra Fria, mas também sociais e culturais, que podem ser evidenciados com a efervescência do cenário musical daquele momento com o nascimento do punk. Aliás, é de uma das bandas mais importantes daquele cenário que surgem os versos mais contundentes sobre o período: “The ice age is coming/ the sun is zooming in/ Engines stop running and the wheat is growing thin/ A nuclear error, but I have no fear/ London is drowning-and I live by the river*”. [“A era gelada está chegando, o sol está se aproximando/ As máquinas estão parando de funcionar e o trigo está crescendo magro/ Um erro nuclear, mas eu não tenho mais medo/ Londres está afundando e eu moro na encosta do rio”]. A estrofe é do The Clash, que cantava a desilusão de toda uma geração, e foi escrita no final dos anos 70. Em Bem-vindo ao clube, à sua maneira, Jonathan Coe mostra os porquês dessa desilusão.

Bem-vindo ao clube
Jonathan Coe
Record
490 págs.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho