Nada se cria

Em "Mac e seu contratempo", Enrique Vila-Matas brinca com o leitor e reflete sobre a originalidade na literatura
Enrique Vila-Matas, autor de “Mac e seu contratempo”
28/06/2019

A literatura é a espiã da vida mundana e cotidiana. E é o escritor o sujeito que maneja o periscópio capaz de perscrutar o íntimo das pessoas invisíveis e esquecíveis — aquelas que esbarramos no ônibus ou ignoramos nos elevadores. Por sinal, quanto mais comum e à beira do abismo, melhor. E Enrique Vila-Matas é, sem dúvida, o patrono desses “ideólogos do fiasco” — como disse Joca Reiners Terron. O que interessa ao catalão é aquilo que não serve a mais ninguém: escritores sem obras, as técnicas para um suicídio bem-sucedido ou gente que desaparece por vontade própria. O absurdo e o desconexo dão tom à sua literatura como se houvesse um fundo falso na realidade que esconde o inverossímil e o impossível.

No meio de tudo isso há o tédio, os olhares oblíquos e os olhos de ressaca que se perdem — ou se deixam perder — no labirinto da cidade. São sempre personagens que se cruzam ou se desviam pelos caminhos que, quase sempre, levam a lugar algum, tal qual vivessem para cumprir um papel que lhes foi atribuído. São assim os homens e mulheres que habitam Mac e seu contratempo, livro mais recente de Vila-Matas no Brasil. Mac é um homem minúsculo em essência, desempregado, paranoico com o horóscopo e que registra em seu diário a obsessão em reescrever Walter e seu contratempo, o livro de estreia de Sánchez, seu vizinho.

Enquanto preenche os dias com passeios pela cidade e a releitura dos contos de Sánchez, Mac cria em torno de si uma névoa: seu nome é um mistério, mas deixa claro que apelido — dado pelos pais ainda na infância — é uma referência a um personagem transparente de My darling Clementine, longa do cineasta norte-americano John Ford.

Meus pais viram o filme logo depois que eu nasci, e gostaram muito do momento em que o xerife Waytt pergunta ao velho que atende no saloom:
Mac, você nunca se apaixonou?
Não, eu fui garçom a vida inteira. 

Vila-Matas é um escritor ardiloso. Há quem diga que seus livros são sempre sobre outros livros, alguns dos quais nem existem. Em entrevista ao El País em 2011, por ocasião da coletânea Chet Baker piensa en su arte, disse que não é bem assim. “Dizer que faço metaliteratura é simplificar muito; normalmente, dizem isso aqueles que não me leram, porque falo — como todos os escritores — sobre a vida, o amor e a morte. Como todos. Alguns falam de assassinatos e eu, de livros. Mais que de metaliteratura, diria — bem, Ricardo Piglia acaba de dizer isso em um artigo no Brasil — que o conjunto dos meus romances pode ser lido ser lido como uma obra única em que se narra — a partir de ângulos distintos — a história imaginária da literatura contemporânea”, comentou em resposta à pergunta de um leitor.

Nesse jogo de duplos, Ar de Dylan se anuncia como o projeto mais ambicioso: um homem comum, que tem um catálogo de pequenos fracassos e se parece tremendamente com Bob Dylan, bate a cabeça após cair e herda a memória do pai, um escritor cujos êxitos também são contestáveis. Em Bartleby e companhia transforma o personagem de Melville em um apologista da inconclusão e reúne autores — alguns às raias na inexistência — cujas obras estão próximas da página em branco. Mac poderia muito bem fazer parte desse grupo seleto. Sua primeira obra, afirma, seria um livro póstumo, na verdade, a sua versão dos relatos do vizinho. É uma maneira — quem sabe elegante — de dizer que na ficção nada se cria.

Capitu antecipada
Como Daniel Quinn, personagem de Paul Auster na parte que abre A trilogia de Nova York, Mac passeia a esmo — aqui, porém, pelo bairro Coyote, um não-lugar na Barcelona de Vila-Matas, enquanto rumina a história de Walter, um ventríloquo que acaba envolvido em um caso de homicídio. Enquanto embaça os limites entre a realidade de Mac e a ficção criada por Sánchez, Vila-Matas fixa seus pontos de apoio em um emaranhado de referências que vão de David Bowie a Nathaniel Hawthorne.

À medida em que a leitura avança, Mac se torna mais esquivo à verdade como Federico Mayol em A viagem vertical. Em Carmen, um dos contos/capítulos de Walter e seu contratempo, a confusão entre os planos ganha uma nova dimensão, mais ampla e sedutora. Carmen, a esposa de Mac, se torna a personagem do vizinho como uma Capitu antecipada, já que Sánchez escreveu o relato antes que o casal se conhecesse. Nesse momento, percebe que, nem sempre, a realidade é realmente real. “Desesperado”, reage, “levo as mãos à cabeça. Não sei bem por que faço isso, talvez seja só amor de perdição, só desespero de tanto amor e de tanto temor de perdê-lo”.

Aqui há uma semelhança, ainda que simbólica, com Continuidad de los parques, conto que abre Final de juego. No relato de Cortázar, existe um aspecto cíclico, uma espécie de continuum, no qual o personagem se torna personagem do texto que lê. Vila-Matas recria essa estratégia narrativa com Carmen e ao colocar Mac na tentativa de aparar as arestas do que sabe sobre sua mulher e o passado dela. Adiante, quando é chamado pelo primeiro nome de Sánchez — que ele próprio desconhecia — nasce uma fissura no espaço-tempo de Mac. Entretanto, a escolha mais simples é sempre a negação.

Mas preferi lhe dizer que tudo bem, que talvez eu tivesse ouvido mal e que decerto ela tinha dito “Mas ande”, ou “Mas anda”. Então aconteceu a coisa mais estranha do domingo. Ela me olhou muito irritada e disse: “Ora, Mac, por favor, eu também não disse isso”. E eu: “Ah não?”. “Não”, assegurou com uma cara tão beatífica que fiquei petrificado. “Pois é, no fim você nem disse nada mesmo…”. “Exatamente, eu não disse nada…”, afirmou com uma serenidade que, se fosse falsa — e com certeza devia ser —, era uma obra-prima do fingimento.

À guisa de Fernando Pessoa, Vila-Matas sabe, e por conseguinte seus personagens também têm consciência, que o ser humano é, por natureza, um fingidor em busca toca do coelho. E, por isso, a melancolia de Mac é o que há de mais genuíno em seu caráter. Se por um lado ele está embrenhado na ilusão, por outro, seus sentimentos estão constantemente à flor da pele.

Desaparecer
O desaparecimento, em seus diversos níveis, é uma constante na obra de Enrique Vila-Matas. Para muito além da metáfora, o desaparecer é um ato de liberdade, literalmente, uma libertação. Doutor Pasavento é uma ode ao sumiço e que tem como guia outro escritor, o suíço Robert Walser, que passou boa parte da sua vida adulta trancado em um sanatório. Em Suicídios exemplares o autor explora a arte de cabo da própria vida em um paralelo belíssimo com a novela Um artista da fome, de Franz Kafka, que transforma a inanição em um dom maior.

Em outro sentido, desaparecer também é estar só mesmo que a solidão seja em uma grande metrópole como Barcelona. No meio de tanta gente somos todos iguais. No irônico romance Paris não tem fim, o escritor relembra os dois anos que passou na água-furtada que pertenceu a Marguerite Duras. Dali, daquele espaço histórico, Vila-Matas foi testemunha do que a cidade oferecia de melhor e de pior. Ainda que não estivesse isolado, ao contrário, estava sempre acompanhado, pode se alijar da sua Espanha natal. “Sempre que estou só, estou desaparecido, não vejo ninguém e não sou visto”, disse para a Folha de S. Paulo anos atrás.

Mac some com frequência, mas é sempre trazido a fórceps para o mundo dito real. O que se percebe é uma constante estranheza e um certo deslumbramento. Ao mesmo tempo em que vislumbra um debute literário sabe que, no fundo, isso não o pertence. Até certo ponto, o escritor sintetiza — com essa escolha — questões que percorrem muito de seus outros livros. Mac e seu contratempo funciona bem como catarse e experiência estética, principalmente ao inserir o putoróscopo de Beckett como elemento de exegese.

Apego
A criação literária de Vila-Matas parece não se contentar com o que há de canônico e, por isso, há um estilo muito próprio do escritor que o torna incapaz de ser imitado. E tem a capacidade de servir como acerto de contas. Mac e seu contratempo brinca com a biografia do próprio autor. Walter e seu contratempo é, no final das contas, Una casa para siempre — livro lançado por Vila-Matas em 1988 e que teve uma péssima recepção da crítica à época. Anos mais tarde, Roberto Bolaño seria um dos responsáveis por reabilitá-lo como peça-chave na bibliografia do catalão.

As histórias, que em muito se parecem, se cruzam como em uma casa de espelhos, jogando com o leitor desavisado. O sarcasmo, por sinal, faz parte da estrutura narrativa e do escopo de seu fazer literário. É praticamente impossível dissociar a ironia da escrita de Vila-Matas. Isso, obviamente, exige um certo olhar de quem lê, um olhar que seja capaz de entender as mensagens deixadas nas entrelinhas.

Em sua tessitura, Mac e seu contratempo prova que Enrique Vila-Matas não é um escritor para iniciantes, mas é indispensável para quem tem o mínimo de apego aos livros e à literatura.

Mac e seu contratempo
Enrique Vila-Matas
Trad.: Josely Vianna Baptista
Companhia das Letras
288 págs.
Enrique Vila-Matas
Nasceu em Barcelona, em 1948. Seu primeiro livro, Mujer en el espejo contemplando el paisaje, foi publicado em 1973 e ainda não foi lançado no Brasil. Publicou Paris nunca acaba, Doutor Pasavento, Suicídios exemplares, Dublinescas e História abreviada da literatura portátil. Além de contos e romances, escreve ensaios e textos “inclassificáveis” devido ao seu caráter híbrido. Sua obra já foi traduzida para mais de 35 idiomas.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

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