Nada foi inventado

Em livro sobre as barbáries do Holocausto, Joseph Ziemian constrói um vívido relato documental de crianças que sobreviveram
27/05/2020

A história é real e trágica, mas poderia não ser. Esse “mas” nos é, de alguma forma, oferecido ao longo do livro Os vendedores da Praça Três Cruzes por seu autor, Joseph Ziemian, judeu nascido em Varsóvia e que participou ativamente do Movimento de Resistência Judaico, tendo contribuído de forma decisiva para a sobrevivência de inúmeros judeus poloneses à época da Segunda Guerra Mundial. O objetivo parece ter sido o de não contar mais uma história sentimental sobre essa ou aquela face do horror do Holocausto. O autor, que não era escritor, conseguiu legar à humanidade um registro de grande potência e uma aula de escrita sintética, concentrada. A escolha da história a ser contada revela também outra qualidade fundamental a todo e qualquer escritor e/ou jornalista: estar no lugar certo e na hora certa. E, com alguma sorte, tem-se a tão almejada obra-prima.

Ziemian escreveu a partir do que viu, ouviu e vivenciou, infiltrado entre as crianças do título de seu admirável livro de “aventuras”, e seguramente poderia encharcar as resmas de papel com lágrimas justas, borrando esse ou aquele nome de praça, rua, cidade ou os apelidos dos protagonistas. Mas optou pelo documento. Até os mais difíceis momentos experimentados pelos órfãos da Praça nos chegam como trechos de algum romance de Dickens, com suas crianças de rua pagando caro pela grande crise de valores vivida por uma Inglaterra em pleno desenvolvimento e consolidação da Revolução Industrial (o trabalho infantil era comum durante a Era Vitoriana), como as histórias dinâmicas de Twain, ou como o Jorge Amado de Capitães da areia (o apelido das crianças, além das “peripécias”, nos remetem facilmente ao famoso romance do escritor baiano).

Ziemian tinha dezessete anos quando a capital da Polônia foi tomada por nazistas. Sobrevivente do Gueto de Varsóvia, devastado pelos alemães em 1943, ele foi um combatente da Resistência Judaica que, carteira de identidade na lapela, conheceu (e ficou indignado com o que viu) as meninas e meninos que vendiam cigarros na zona ariana da cidade e ficou tão impactado que resolveu registrar tudo. Mal sabia ele que a situação ia piorar, para além dos levantes, e que teria de dar uma pausa em seu tão vívido relato, escrito no calor da hora, a fim de manter sua própria sobrevivência, e a dos garotos e garotas sem pai nem mãe. Segue abaixo trecho em que Ziemian se vê diante de um dentre tantos momentos difíceis por que passou ao tentar cuidar dos órfãos:

Prometi aos garotos que passaria o pedido deles à ‘polonesa’. Despedimo-nos e fui embora. Quase perto do portão, vi o Coxo. Ao olhar para ele, vi diante de mim a imagem de centenas, milhares de crianças mendigas e sem lar no gueto, pedindo esmolas e traficando para sustentar suas famílias. Quando o gueto foi desfeito, apenas algumas haviam conseguido escapar da morte. Coxo era uma dessas crianças.

Bastidores
O livro tem vinte capítulos, um epílogo e um glossário com termos judaicos largamente usados pelos “personagens”. Fortalece de um lado — o aspecto documental — a presença de fotos das crianças do bando, e uma foto do próprio Ziemian ainda adolescente. O autor ia escrevendo quando e quanto podia, em meio à guerra e aos escombros, e escondeu os manuscritos numa caverna (não identificada), recurso comum aos judeus, esconder manuscritos, que desejavam registrar suas experiências durante o Terceiro Reich. Anos depois, voltou à caverna, encontrou os manuscritos e retomou a história, que contou com depoimentos e memórias, tanto do autor quanto de seus ativos figurantes, para só ver uniforme e pronta para o leitor décadas à frente. Vale ressaltar que a edição da Três Estrelas, selo da Publifolha, é a primeira em português, e se baseou na edição da Editora Hamenora, Tel Aviv, publicada em 1964. A tradução ficou a cargo de Jacob Lebensztayn, autor de uma muito esclarecedora — eu diria fundamental — apresentação.

Touro, Dentinho, Coxo, Napa, Cenourinha, Bolinho, Teresa e outras tantas crianças resistiram, mesmo depois do desaparecimento dos pais — e/ou da família inteira — vendendo cigarros na Praça Três Cruzes, localizada na zona inimiga. A vida dessas crianças se resumia a fugir da polícia alemã, levantar dinheiro — diariamente — para comprar comida, ocultar seus pertences íntimos — só o essencial — e encontrar um lugar onde pudessem dormir uma ou duas noites (em geral a casa de uma ou outra velhinha, não bondosa, exatamente, mas interessada no pagamento, em dinheiro ou objetos de algum valor, pelo serviço prestado). Mas dentro desse resumo, quantas vidas! Quantas histórias de danações.

Por meio de voltas e idas no tempo, Ziemian conta uma história, em primeira pessoa, dentro do formato romance, que, dado o estilo seco, distanciado, nos insere numa forma híbrida de ficção e não ficção a um só tempo. Nada foi inventado, mas há uma autoria. E o autor, morto no dia 30 de janeiro de 1971, em Israel, entrou para a história tanto da Literatura quanto da História com seu intrigante livro. E intrigante por quê? Menos por seus méritos literários que pela questão que se nos impõe de imediato: de que modo crianças, órfãs, conseguiram sobreviver a uma guerra mundial vendendo cigarros entre seus algozes?

Só lendo para acreditar. Ou saber.

Os vendedores de cigarros da Praça Três Cruzes
Joseph Ziemian
Trad.: Jacob Lebensztayn
Três Estrelas
216 págs.
Joseph Ziemian
Judeu nascido em Varsóvia, tinha dezessete anos quando a capital da Polônia foi tomada pelos nazistas. Foi membro da Resistência Judaica e escreveu Os vendedores da Praça Três Cruzes em meio à guerra e aos escombros. Morreu no dia 30 de janeiro de 1971, em Israel.
Henrique Passos Wagner
Rascunho