Ai, sem pontuação, um título simples para um romance complexo, que ataca muitas frentes ao mesmo tempo. Marcio Renato dos Santos, na orelha do livro, faz uma análise sucinta: “…um romance que se faz pela superposição e sobreposição de fragmentos. Ora a ação presente. Ora o recuo para os diários de um antepassado dos personagens. Ora uns flashbacks que preenchem lacunas e iluminam o agora desses personagens. Ora a sugestão de que nada pode evitar o mal-estar permanente que atinge todos os habitantes dessa experiência literária sintonizada com o espírito de nosso tempo”.
Uma narrativa desdobrada no presente de um professor desiludido, Luís, sentindo-se fracassado perante o sucesso do irmão político, Carlos, e as exigências de uma mãe “ofuscada” pelo brilho de seu antepassado, Vithorino Tharless de Anforena, constituem o eixo principal do romance. Paralelamente a isso, outras histórias se desenrolam, no passado e no presente, e, ao mesmo tempo em que suspiramos com o narrador, compadecidos de seus desenganos, vamos descobrindo outros motivos para suspirar com os habitantes de uma cidade cujo passado se encontra sepultado sob uma enorme massa de água e de mentiras. Talvez seja essa a explicação para a pequenez dos habitantes de um local cujos primeiros relatos, como os do Adelantado Cabeza de Vaca, e cujos primeiros habitantes tenham sido “editados” sem piedade pelos interessados e detentores do poder.
Se a falta de pontuação parece, a princípio, uma recusa a apontar caminhos de leitura, passamos a entender a escolha como um contraponto à censura, enorme, que oprime os personagens na história. Enquanto o leitor recebe o direito de interpretar e julgar através deste suspiro deixado solto, os personagens e o próprio narrador são encurralados nas únicas veredas deixadas abertas pelo autoritarismo sempre presente dentro das páginas do livro.
Cabeza de Vaca, explorador desafortunado das Américas, é personagem pouco conhecido, embora dos mais interessantes. Este homem perambulou perdido pela América do Norte, experimentou o canibalismo, naufragou inúmeras vezes e foi o primeiro europeu a ver a foz do rio Iguaçu, mas seu nome não passou para a história. Num outro romance, Campana resgata essa figura como personagem principal, e é interessante notar sua simpatia com o “fracasso” de pessoas cujas vidas se desenrolaram heroicamente, mas que a opinião pública abandonou, negando-lhes o título de heróis. Dando voz a esses que fazem do viver uma arte segundo os padrões mais rígidos da moral e da valentia, ou sendo fiéis à sua própria humanidade, Campana revela o avesso da história, mostrando os fatos e relatos que foram “editados”, para deixar o texto oferecido como oficial mais atraente e de acordo com os interesses do poder.
Ai, suspiro que permite que as versões reprimidas venham à tona, possui mais de um narrador. O desencantado professor universitário cede a voz às narrativas de Batista, integrante da comitiva enviada pelo Império para fazer o “reconhecimento” e tomar posse de Foz do Iguaçu, e de Tharless, um pioneiro na exploração do mate e dos habitantes da região, e, corrigindo a versão materna, também deixa aparente as memórias que teria de outros membros da família, os quais, sufocados pelo autoritarismo e censura da mãe, acabariam por cessar de existir, rascunhos apagados.
Lado B
Os episódios interrompem a narrativa principal como suspiros que entrecortam nossos afazeres. Narrando o retorno indesejado ao lar inóspito, as lembranças ressurgem e se condensam em pequenos contos que nos apresentam os antepassados menos ilustres — o “lado B” da família. A tia Vera e seus amores noturnos; Ubiraci e sua ingenuidade; o pai, acompanhado por Kid Chocolate, tem suas histórias recuperadas pela memória do narrador, perturbando o universo organizado pela mãe. Os episódios de maior truculência ou de ridículo são “editados” e mantidos fora da versão oficial aceita pela matriarca (“Sempre esbarro no silêncio de mamãe. Seu olhar é de recusa e admoestação quando tento penetrar no território do esquecimento que ela protege.”), mas a determinação desse filho tido como “falhado” não deixará que o crime do tio Henrique seja esquecido, nem que o ridículo do enterro do primo Jorge seja ignorado. Com a mesma insistência obstinada com que Cabeza de Vaca embarcava em suas viagens malfadadas, o narrador percorre os bastidores da história de Don Vithorino, revelando sua truculência e suas raízes presas ao fracasso da empresa da família. Revela sem piedade as suas proezas sexuais, que não se limitavam a tomar as jovens locais e emprenhá-las, mas que se desenvolviam em orgias periódicas com profissionais importadas da cidade-mãe, Buenos Aires. Fala do segundo casamento da bisavó Izabel e da expedição enviada pelo Império para o reconhecimento da região, mas cujas observações acabam esquecidas em algum arquivo pois o relatório enviado ao Império só alcança os primeiros e conturbados dias da República.
Esse sepultamento de uma história propositadamente modificada tem um contraponto no presente, com a história semi-silenciada da morte do Procurador. As sombras de Carlos, o irmão bem-sucedido na política, e de Guaxo, o irmão bem-sucedido no tráfico e no crime organizado, pairam sobre o corpo degolado do Procurador, sem que nada seja revelado. As suspeitas encobrem os fatos, tais como as águas encobrem o passado de Foz de Iguaçu.
A cidade em si é mais um suspiro na narrativa de Campana. Logo no segundo capítulo faz-se o contraste entre a cidade de hoje e a da infância, que talvez nunca tenha existido senão na lembrança do narrador:
Não é esta a cidade da infância, de ruas também poeirentas, de casas também pobres e talvez ainda mais toscas do que estas, mas que antes eram protegidas pela esperança de seus moradores. […] A cidade da infância não existe.[…] Marta me olha, desconfiada. Ela conhece a cidade de agora e não acredita que tenha existido outra que pudesse ter sido melhor.
O passado dessa cidade foi roubado de diversas maneiras: pelos falsos relatórios, pelas falsas memórias, e pelo alagamento da região, que lhe modificou até mesmo as características geográficas. “Tudo isso e mais o passado desapareceu, como em maldição divina, sob as águas de Itaipu, represa encarada pelo Narrador com os olhos nostálgicos do Paraíso perdido, mundo ideal que desapareceu”, comenta Wilson Martins.
Procurando encontrar esse “paraíso perdido”, Luís, professor de História, percebe que ele já não se encontra em lugar nenhum, uma vez que jamais existiu. A História revela que os interesses pessoais sempre superaram os valores morais e pessoais. Daí o sentimento de fracasso de alguém como Luís, procurando no altruísmo e no amor, na valorização do próximo, a realização impossível. Examina a história, o passado familiar, a infância, o casamento, e nada sai imaculado desse exame. Mesmo a figura paterna, encarada com alguma simpatia, não sai incólume do crivo do olhar exigente do filho.
Wilson Bueno, escrevendo em O Estado de S. Paulo, revela que lê o título do romance com “um lancinante ponto de exclamação”. No entanto, a sensação de asfixia que o romance vai criando com sua trama entrecortada, não permite gritos: os personagens vão se deixando sufocar pelas teias de aranhas sábias e persistentes, que subsistem ao retirar dos corpos, aprisionados em suas belas construções, toda sua seiva. Daí que chegamos ao final desesperançados: Tudo se corrompeu, tudo foi destruído — a região; a cidade; seus habitantes, que nos são apresentados todos em estado de aguda decadência; o amor, nada escapou. Ai é o suspiro exalado pelo moribundo, misto de dor e de resignação. Se a nossa leitura permite e exige a indignação de um ponto de exclamação, por estarmos nos sentindo fora dessa teia, os personagens, quanto mais lutam para se desvencilhar dela, mais se enredam, acabando por sucumbir.
A mãe, figura simbólica que poderia ser interpretada como a “mãe pátria”, leniente com seus filhos mais desencaminhados porque contribuem para o poder estabelecido que ela corrobora, termina por ser desmascarada, mas não perde sua força por causa disso. E o pai, figura mais humana, que poderia simbolizar o “povo”, acaba destruído, após ter sido anunciado como o culpado da decadência da família por esta insaciável figura censora. Daí a pergunta que termina o livro: “O pai morreu de câncer ou de você, mamãe?” É com um suspiro que fechamos as páginas do romance, e iniciamos nossas buscas individuais de respostas para nossos tempos. Ai.