Nada além de passado

"Alameda Santos", de Ivana Arruda Leite, mostra que a modernidade não resiste à urgência da vida
Ivana Arruda Leite, autora de “Alameda Santos”
01/06/2010

Alameda Santos, o novo romance de Ivana Arruda Leite, tem a oralidade como ponto de partida. Todo final de ano — entre 1984 e 1992 — uma mulher relata para um gravador as experiências vividas. O resultado são nove fitas que, transcritas, formam o corpo do texto. Ivana se sai bem do primeiro desafio: manter o ritmo natural da narrativa. Em nenhum momento suas palavras nos chegam falseadas, encobertas por camadas de inverossimilhança, o que revela a habilidade de uma autora capaz de fugir das armadilhas que se impõe.

E esse não é seu único desafio no romance. Ao longo do texto vamos destrinchando, junto à protagonista, instantes ainda muito vivos na memória. Capítulos de novelas, finais de campeonato de futebol, manifestações políticas, o drama dos aidéticos. Aí o confronto é com o real. A vida próxima espreita Ivana e cada informação, cada caso que nos conta a narradora parece ter acontecido com um de nossos vizinhos. Facilmente esta proximidade pode nos apontar inverdades, mas outra vez a autora se livra bem do desafio e, pesquisando e checando cada dado fornecido, mergulha o leitor na verossimilhança, desafia-o a contestar as verdades da trama.

Começar a resenha por estas conclusões é uma forma de apontar o autor cuidadoso, o autor comprometido com seu ofício. Vivemos um tempo em que a praga do mau poeta invadiu a prosa. Muitos daqueles que se auto-intitulam de prosadores desrespeitam a literatura ao fabricar texto descuidados, com erros grosseiros de informação, quando não agridem, sem qualquer senso estético, as mais básicas regras gramaticais, quando não desafiam a inteligência — mesmo mínina — dos leitores. Ivana Arruda Leite joga em outro time. Há consistência e verdade em seu trabalho. Indo um pouco além, põe a literatura no patamar de seus respeitos, faz de seu ofício um ato de reverência à arte.

O enredo se desenvolve de maneira linear e até banal. A narradora, às cinco horas da tarde de um domingo, dia 19 de dezembro de 1984, diante de uma solidão profunda, uma garrafa de vinho e um gravador, resolve contar o que considerava então ser o pior ano de sua vida. Depois partiria para uma atitude óbvia, o suicídio. Os amigos sumiram, a filha, Gabi, está passando férias com o pai e a São Paulo que corre nas calçadas da Alameda Santos é um deserto. Ao final e ao cabo, a moça não se mata e adota o ritual de todos os anos fazer o trágico balanço de sua vida.

Como sua narrativa ocorre num tempo presente — entre 1984 e 1992 — todas as neuroses, medos e preconceitos do tempo presente movem as palavras, é claro, mas aí há uma surpresa. Ivana poderia cair na facilidade que move parte da narrativa moderna, o binômio sexo e violência. Naturalmente, há cenas violentas e largas referências à sexualidade. No entanto tudo é dito com certa elegância, sem a agressividade apelativa que os autores menores usam como mecanismos para agarrar leitores desavisados. Enfim, palavrões, trepadas e porradas chegam ao livro em favor da narrativa, apenas, e todas as frustrações que deles decorrem, estão aqui para melhor construir a psicologia profunda dos personagens, somente.

Pontos de resistência
O livro se sustenta pela dramatização da condição humana. A protagonista, como num poema de Drummond, ama Charles desde que o conheceu ainda na infância. Charles também a ama, mas casa com Tereza e ela casa com Pedro. Desta segunda união nasce Gabi. A catástrofe se estende na doentia paixão da narradora por Charles, uma paixão retribuída, mas condenada em todas as instâncias possíveis. A moça então caminha em seu calvário de perdas. E lá se vão apartamentos, emprego estável, estabilidade financeira. Curiosamente, ela, mesmo vivendo sob a proteção dos pais e tendo o carinho de somente dois cachorros, não perde os pressupostos da dignidade, da própria auto-estima.

Neste ponto entra o sentido metafórico do romance. Ivana, a rigor, não fala de uma personagem perdida no mundo de São Paulo, no universo que cerca a Alameda Santos. Há o retrato de uma época onde a cultura se medida pelos ditames da televisão, onde a ideologia se cultuava em pontos de resistência — Diretas Já, a queda do muro de Berlim — e onde a vida se media pelos riscos de um hedonismo latejante — muito sexo, muito álcool e muito pouco rock-and-roll. Fala-se assim de uma degradação irreversível.

O curioso é que todo mundo em derrocada nos surge com humor e até alegria. Os depoimentos são marcados pela depressão, o isolamento, a solidão, mas sempre com um toque risível, pois dizem de uma época sem limites até mesmo para o mau gosto. Acreditava-se em pressupostos hoje perfeitamente hilários. Até mesmo as fitas cassete em que a moça grava seu depoimento, como os discos que escuta, são peças arcaicas, velhas, inusuais como a vida que ela viveu. Seu mundo, enfim, envelheceu precocemente.

O romance Alameda Santos se faz, então, com a base mais cara à boa literatura, aquela onde se reflete sobre o homem e sua condição. Para quem viveu a época, ele mostra como nossa modernidade, de tão frágil, não resistiu ao curso natural da vida. Para quem apenas teve noticias daquele momento, o romance conta que o fenômeno não é privilégio do tempo que descreve. A modernidade é que não resiste à urgência da vida e já dia seguinte não é nada além de passado. E fica ressoando no ouvido o alerta do corvo de Edgar Allan Poe: “Nunca mais”.

Alameda Santos
Ivana Arruda Leite
Iluminuras
160 págs.
Ivana Arruda Leite
Nasceu em Araçatuba (SP) e é mestra em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Publicou os livros de contos Falo de mulher e Ao homem que não me quis, a novela Eu te darei o céu — e outras promessas dos anos 60 e o romance Hotel Novo Mundo. Participou de inúmeras antologias e também escreve livros juvenis.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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