Moro a 50 metros do Estádio Couto Pereira, em Curitiba. O vizinho que mais gosto mora ainda mais perto do campo. É um mendigo que dorme na calçada junto ao estádio. É o mais alegre da vizinhança, vive bêbado. Uma de suas poucas peças de roupa é uma camisa velha do Coritiba, rasgada e suja. O bêbado circula pelas ruas, sempre cantando músicas de incentivo ao time. Nem a chuva o desanima, apesar da falta de abrigo; pelo contrário, ele aproveita para, alegremente, tomar banho.
Num dia de muita chuva e frio, enquanto eu estava encorujado na cama lendo Desvarios no Brooklyn, ouvia ao fundo o bêbado desafiando o clima e cantando entusiasmado o hino do seu time. Na mesma hora, associei meu vizinho aos personagens do novo livro de Paul Auster, que mora no Brooklyn, gigantesco bairro de Nova York.
Desvarios… é um romance sobre os prováveis vizinhos de Auster, um romance sobre pessoas simples que, despercebidas, deixam passar suas vidas, mas que fazem parte de uma trama comum, a do cotidiano das ruas, do dia-a-dia dos bairros, da síntese de uma cidade.
Não há bêbados sem-teto no livro, mas há pessoas pacatas, para quem apenas trabalhar e voltar para casa no fim do dia já é um motivo para continuar vivendo. Há a garçonete latina e seu patrão orgulhoso, a dona-de-casa que faz bijuterias quando os filhos vão para a escola, um livreiro inquieto e seus funcionários de perfis opostos: um jamaicano gay e um intelectual fracassado.
Os personagens ocultos do Brooklyn ganham vida quando o aposentado Nathan Glass ali chega para interligá-los. Ex-corretor de seguros, razoavelmente bem-sucedido, Glass escolhe o Brooklyn para desacelerar seu estilo de vida, depois de um divórcio traumático e um câncer no pulmão recém-superado.
“Eu procurava um lugar tranqüilo para morrer. Um dia alguém me recomendou o Brooklyn. Um final silencioso para uma vida triste e absurda.”
No bairro, Glass reencontra o sobrinho Tom, que aspirava a um futuro no meio acadêmico mas fracassara, tornando-se um mero e desanimado funcionário da pequena livraria. Glass passa a transitar pelo bairro e assim nos vai apresentando seus moradores, a maioria simples e com uma vida sem muitas emoções. Esta é a grande virtude deste livro de Auster. Ao tratar de pessoas comuns, o autor revela-se um ótimo observador do cotidiano. Todos os personagens que Auster usa na trama podem ser seus vizinhos, assim como podem ser nossos vizinhos em qualquer lugar do mundo.
Por meio de Nathan Glass, o autor sugere que é nessa convivência com os vizinhos, com os amigos, com aqueles que nos rodeiam, que podemos encontrar combustível para conduzir a vida, formar o que Auster apresenta como o Hotel Existência.
“A existência era bem maior que apenas a vida. Era a vida de todos juntos. Não fazia mal que a sua vida fosse humilde. O que acontecia com você era tão importante quanto o que acontecia com os demais. Todo mundo tem um, sabiam? E assim como não existem dois homens iguais, o Hotel Existência de cada um é diferente de todos os demais.”
Bem, mas Paul Auster é sempre Paul Auster. Mesmo partindo de um tema simples, de “Hotéis Existência” de poucas estrelas nas esquinas do Brooklyn, ele não resiste e cria algumas tramas secundárias, dando, eventualmente, um tom policial ao romance. Nessa hora, em que inventa demais, Auster erra a mão em Desvarios…
Soam bastante inverossímeis as aventuras atribuídas a Harry, o proprietário da livraria ou, pelo menos, deslocadas e improdutivas dentro do romance. Harry revela-se um ex-presidiário, que cumpriu pena por arquitetar um esquema de falsificação de obras de arte. Depois, Auster envolve Harry em um mirabolante plano para voltar à atividade criminal, falsificando manuscritos literários. Tudo isso para que ele acabe morrendo e deixando a livraria de herança para seus funcionários. Desvarios… perde o foco nesta hora, desnecessariamente, já que o ataque cardíaco que mata Harry poderia ter acontecido sem a trama policial. Aliás, combinaria muito mais com o romance um ataque cardíaco inesperado, desses que vitimam pessoas diariamente e deixam surpreso e comovido um bairro inteiro.
Outro defeito em Desvarios…, esse já tradicional, em menor ou maior grau nas obras de Auster, é quando ele inclui em seus textos alguma pequena discussão filosófica — desta vez sobre fanatismo religioso. Nathan Glass tem que resgatar uma sobrinha de um casamento que se tornara um cárcere privado por causa das convicções religiosas do marido. O autor poderia ter economizado algumas páginas de masturbação imaginativa se Glass simplesmente resgatasse a sobrinha, sem as cansativas explicações detalhadas da transformação ocorrida na vida dela.
“Se o Verbo é Deus, então o que os homens dizem não significa nada. Para soprar Deus em nossa alma e absorver o Verbo d’Ele, o reverendo nos ensina a evitar a vaidade do discurso humano. Um dia em cada sete, todos os membros de nossa congregação devem manter silêncio absoluto e ininterrupto durante vinte e quatro horas.”
Auster consegue retomar o controle do romance em sua parte final, quando volta ao cotidiano do Brooklyn. O desfecho é verossímil, simples e agradável, como havia sido o início do livro, quando a narrativa circulava pelas vidas dos moradores do bairro. Neste ponto, Nathan Glass ganha voz novamente e suas conclusões sobre as pessoas são de grande sensibilidade. Ele chega a cogitar uma bela homenagem ao ser humano com a idéia de fundar uma empresa para publicar livros sobre os esquecidos, resgatando histórias, fatos e documentos para produzir biografias em pequenas edições particulares, que seriam encomendadas pelos parentes de um falecido.
“Que moça não gostaria de ler a biografia definitiva do pai — ainda que o pai tivesse sido apenas um operário de fábrica ou o gerente-assistente de um banco do interior? Que mãe não gostaria de ler a história do filho policial, baleado no cumprimento do dever aos trinta e quatro anos de idade? Em todos os casos, teria de ser uma questão de amor.”
Glass tem essa idéia quando está no hospital, após um ataque cardíaco. Durante os dias internado, ele observa o movimento de entra-e-sai na cama vizinha à sua. Uns saem curados, outros vão para a UTI, alguns partem para o cemitério.
“Eu não era ninguém. Rodney Grant não era ninguém. Omar Hassim-Ali não era ninguém. Javier Rodriguez — o carpinteiro aposentado de setenta e oito anos que ocupou o leito às quatro da tarde — não era ninguém. Ao fim e ao cabo, morreríamos todos e, quando nosso corpo fosse levado embora para ser enterrado, só os amigos e a família saberiam que tínhamos partido. Nossa morte não seria noticiada em rádios e televisões. Não haveria obituário no New York Times. Quem vai se preocupar em publicar a biografia das pessoas comuns e obscuras do dia-a-dia por quem passamos na rua sem nem reparar direito?”
Paul Auster está mais do que certo — e não há como não ser melancólico nessa hora — quando diz que grande parte das vidas desaparece, e que quando as pessoas simples morrem, suas histórias morrem com elas. Em Desvarios no Brooklyn, pelo menos as biografias de alguns de seus vizinhos de bairro sobrevivem.