Raríssimas carreiras literárias têm a consistente coerência que Marcelo Backes imprime a sua. Por favor, não confunda coerência com repetição. Digo isso porque Backes tem tudo a seu dispor para ser mais um doutor, ou melhor, ele é um doutor. Mas diferente da grande maioria dos seus colegas, não é um doutor especialista. Se você, desconfiado leitor, associar especialista a acomodado, monotemático, não se condene, pois “é por aí”. Quem duvidar pode tirar a prova com este maisquememória, seu livro mais recente. maisquememória tem como subtítulo Caderno europeu de viagens, mas “caderno das verdades” soaria muito bem, visto que o autor faz da sinceridade, uma verdade até certo ponto acusatória, a matéria-prima de seu livro. Em tempos de honestidades raquíticas, verdades opulentas nos exigem inúmeras reflexões.
Outro rótulo que cabe em maisquememória é diário. Diário, por favor, me entenda, preconceituoso leitor, como gênero literário, Embora o narrador carregue o que de mais genuíno existe em termos de canalhices, o leitor percebe o quanto ele sabe usar daquilo que é mais caro aos diários, a sinceridade. Por essa e outras, passei a tratar esse narrador de Backes, que se dirige ao leitor com inestimável grosseria, como “meu querido mau caráter”. Esse personagem proporcionará um dos vários pontos altos desse livro, o permanente duelo entre razão e emoção. O vencedor só podia ser o leitor. O caderno de viagens é fruto do período em que o autor viveu na Alemanha enquanto realizava seu doutorado em Literatura Alemã e Romanística pela Universidade de Freiburg.
Confesso, li maisquememória com o pé atrás, pois se existe algo mais entediante que a extração da raiz quadrada, é o tal livro de viagens, geralmente, guia de compras e turismo. Backes foge à regra, caderno de viagens também quer dizer viagem pela condição humana, pelo fracasso da espécie — não, as exceções não nos salvam — tanto é que o autor lança mão da ficção para atenuar nossa patética realidade.
Se Campos de Carvalho, em sua viagem pela Europa, escrevia cartas para ele mesmo, e isso não o fazia menos irônico, mordaz e o contraponto era sempre a pátria amada idolatrada salve, salve, Marcelo Backes se diferencia pela ausência de timidez e, seguindo a mesma partitura, divide com você, privilegiado leitor, suas rascantes impressões. O narrador faz um tour pela história da Alemanha e das artes de modo geral. Importante ressaltar que o autor faz questão de enfatizar sua origem de colono de ascendência alemã, nascido num lugarejo minúsculo do interior do Rio Grande do Sul, pouquinha coisa maior que a Rosário do Sul de minha infância.
Impossível falar de maisquememória sem lembrar de A arte do combate e Estilhaços — a consistente coerência lá da primeira linha, recorda apressado leitor?
Em A arte do combate, o autor comenta o seu indiscutível cânone literário alemão. Em Estilhaços, mostra como é possível exercitar os gêneros num só livro e vai do aforismo ao miniconto. É moda, eu sei, mas sai dessa Backes, passando pelo biografismo, ensaio, poesia e, no fim, podemos dizer que concluímos a leitura de um romance.
maisquememória é tudo isso ao mesmo tempo e se você, ciumento leitor, pensou em confusão, pode tirar seu cavalinho do toró, pois o que resulta daí é claro, cristalino, uma aula que estimula e permite a você, assim como eu, tosco leitor, se dizer baixinho: se ele pôde, eu também posso. Mas não perca seu tempo em busca de possíveis classificações — uma obra se explica por si mesma. As boas, se me faço entender. E maisquememória é uma obra das mais importantes. Então, você dirá que não é para tanto, ciumento leitor. Afinal de contas estamos mais que condicionados à recepção calorosa das obras vazias, aventurescas, de auto-ajuda e outras que tais, mas Marcelo Backes é vinho de outra pipa. Navega solitário por mares dantes navegados por Musil, Virgilio, Sêneca, Campos de Carvalho, Saroyan e Dante, como ele diz na primeira frase de maisquememória: Meu colega Dante, essa ratazana cristã, escreveu o “Inferno” no exílio!
De página em página, você se sentirá numa viagem prazerosa onde de cada rua trará uma saudade. Obra incomum, tende à união de todas as coisas, ao absoluto, não, não se assuste, despreparado leitor, Lucrécio já fazia isso.
Da consistente coerência, resta a Backes a solidão e o silêncio, comprovantes do seu “passo errado”, do qual se enaltece a sua obra, mas que o afasta da planície da chatice e o joga para o alto da cordilheira, onde a mídia, sobretudo a carioca, o ignora. Infelizmente! Às vezes chego a pensar que essa marginalidade quase irredutível é simplesmente a marginalidade vital desse escritor/filósofo e seu vasto talento. Ele diz em Estilhaços: “só peixe morto nada a favor da correnteza”. Enquanto isso os santiagos e os nazarians não descem da crista da onda. Mas mudanças, como você pode perceber, melhorado leitor, se anunciam.
Marcelo Backes soube preencher com originalidade e precisão esse seu indispensável caderno europeu de viagem. Nele, sabe ser Erasmo, não ofende o ensaísmo de Montaigne quando insere, de cabo a rabo de seu relato, a sátira e o humor próprios de Rabelais. Isso tudo sem esquecer jamais o seu/nosso Rio Grande do Sul.
Minha religião é a estética, diz o narrador de caráter duvidoso — sou um consumidor no shopping das oportunidades. Compro à vista e amo a prazo, curto prazo! E isso é um perigo, vide Ariano Suassuna, influenciável leitor, mas mesmo assim podemos optar pela abrangência maior tanto da religião como da estética e deixemos os limites e os ranços bairristas para o Ariano et caterva.
É justamente a estética como religião que impede a malversação da ética, e nesse quesito Marcelo Backes é implacável, a questão social é constante em seus livros, para ser mais claro: o que Saramago faz com mão de ferro, o “guri missioneiro” faz com sutil erudição. Você, confuso leitor, ouviu o narrador, pois ouça agora o autor:
Há mil maneiras de se ver as coisas desse mundo, lamentavelmente a maior parte delas corresponde à visão de pessoas que jamais tiveram algum tipo de sofrimento.
Backes dá um bônus ao leitor, o intermezzo onde relata episódios da vida do sofrido pintor Oscar Kokoscha e aproveita para realizar breve e indispensável ensaio sobre amor e erotismo. Imperdível, paciente leitor.
E por falar em Kokoscha, impossível separarmos esse incomparável pintor do sentimento de frustração, da dor de viver e da miséria. Não acredito que seja mero acaso ou opção estética sua presença em maisquememória, pois vem exatamente dessa desolação, da constatação desse arremedo de organização que é nossa “pátria desimportante”, o relâmpago Marcelo Backes a nos provocar o desconcerto capaz de acordar consciências.
Lendo Marcelo Backes, o guri colono que saiu de Campinas das Missões para se tornar doutor na Alemanha, impossível não lembrar o que me disse, eu ainda guri descalço, o sábio Alvorino Rodrigues: “guri, a vida não é só futebol”. E me fez abandonar a pelada no campinho, deixar a bola para a turma, tomar banho e partir rumo ao teatro onde assistiríamos a um concerto.
Está lá em Estilhaços, também:
Quando me chamaram de colono, eu caminhei na chuva
Sou missioneiro, sim, e venho do campo. Mas, enquanto as vacas pastavam, eu lia Homero…
Enfim, se a vida não é bonita, viver é uma beleza em permanente construção e a imaginação é a ferramenta indispensável para ser o que se deseja ser. Convém lembrar que os burros não têm imaginação, ó acomodado leitor!