Uma das discussões mais acaloradas dos debates literários é sobre a validade das obras feitas por encomenda. Muitos escritores, com ar blasé, buscam uma tangente ao afirmarem que todo livro é encomendado. Quando não por um editor, pela inspiração, pela vontade, ou seja lá por que outro ser mítico. Há até quem proclame que o velho Balzac escreveu toda aquela imensa obra pressionado por suas imensas dívidas. Ou seja, tudo encomenda de seu bolso furado.
Retórica à parte, o certo é que um livro de ficção nunca é movido por regras fixas. O que termina por sobressair é mesmo o talento do escritor e sua capacidade de transformar um enredo, mesmo banal, em uma narrativa digna deste nome. A rigor, o enredo de Cem anos de solidão se limita à viagem do avô que leva o neto para conhecer o gelo.
E aí caímos no caso do novo romance de Daniel Pellizzari, Digam a satã que o recado foi entendido, lançado pela Companhia das Letras. Fruto da polêmica coleção Amores Expressos, o livro, que se passa em Dublin, está marcado pela irregularidade, intensamente expressa na tentativa, às vezes vã, de dar voz a vários narradores.
Seitas e ataques
Magnus Factor chega a Dublin com o propósito de passar poucos dias, mas termina por se envolver com Stefanija, a garçonete eslovena que o atende no Eddie Rockets, uma lanchonete que se desenha como uma réplica destas casas nos Estudos Unidos dos anos 1950 — mas ele está do outro lado da Terra e em maio de 2007. Enfim, fica na cidade e funda com outros dois sócios, o irlandês Barry e o polonês Bartholomew O’Shaugnessy, e um único funcionário, Seewoosagur, que vem das Ilhas Maurício, uma estranha agência de turismo. Todos os passeios, naturalmente inventados, são feitos por lugares mal-assombrados de Dublin. Neste diapasão surge todo o caos de uma metrópole conspurcada pelos dilemas da modernidade. Seitas esotéricas, sociedades secretas, anarquismo, punks, degradados, desgraçados e outros bichos do mesmo naipe.
O panorama não é dos mais animadores. Tudo no cenário são sombras e escuridões. Um mundo circunscrito, quase, a um beco sem saída. Naturalmente que isso não deixa de ser um tanto influenciado por James Joyce, um dos mais pródigos jargões da literatura moderna. E para não fugir do mito, uma das vozes narrativas retoma o velho fluxo de consciência, tão caro ao mestre irlandês.
Aprofundando um pouco mais a questão das múltiplas vozes narrativas, em alguns momentos o empobrecimento semântico faz cair o ritmo do texto e crescer os apelos à subliteratura. Um desses instantes, certamente o mais óbvio, é quando Barry toma a palavra. De repente o leitor cai numa prosa de Ferréz, nosso baluarte da periferia, e aí o discurso não passa de uma agressão vazia à gramática. Aliás, quanto à dita literatura periférica, ao contrário do gigolô das palavras Luis Fernando Verissimo, tal fenômeno ocorre não pela necessidade de bater nas regras gramaticais para mostrar quem manda no pedaço, mas pelo simples fato de o autor desconhecê-las.
Personagens vazios
Entre a escuridão dos ambientes e a pobreza lingüística caminha uma multidão daquilo que o próprio autor classifica de “idiotas extraordinários”. É uma geração perdida no sentido lato do termo. Seus interesses estão voltados para jogos eletrônicos e as horas nos bares, onde bebem e se drogam. Entre uma e outra coisa, buscam ganhar dinheiro suficiente para a manutenção dos prazeres vazios e da moradia, e trepam, ou tentam, pois são freqüentes as cenas de impotência.
Estes tais idiotas sofrem de um mal maior que o hedonismo infundado. Falta-lhes carisma. É comum na literatura encontrar um mau-caráter simpático, envolvente. Para ficar num exemplo da literatura brasileira contemporânea, basta ver o Ricardo Lísias protagonista de O céu dos suicidas. Já os personagens que transitam por Digam a satã são amorfos e não envolvem o leitor. Mesmo as mulheres, como Stefanija e Laura, ainda que belas, não encantam. Parece que todos estão tomados por uma inescapável doença que os deixa pernósticos, vazios e arrogantes. O mundo é deles e eles não carecem de motivo para suas atitudes desmedidas. O resto, enfim, é o resto.
Este perfil, no entanto, não está distanciado do discurso da literatura contemporânea. Uma leitura do mais recente romance de Umberto Eco, O cemitério de Praga, vai revelar também um protagonista desprovido de charme. É como se estivesse na contramão de Gregor Samsa, o monstruoso inseto de Franz Kafka: horrendo, repugnante, mas envolvente.
Recado entendido
O romance de Daniel Pellizzari nasceu de uma encomenda, já se disse. E ele, como criador, se saiu perfeitamente bem na tarefa. Foi a Dublin e viu uma cidade perdida em sua escuridão, degradada em sua vivência, mas ainda imersa na glória joyceana, afinal, como conta o escritor, trechos de Ulysses podem ser lidos até nas calçadas. Da junção de todas estas linhas não poderia resultar senão um texto tenso, escurecido, intencionalmente desprovido de encantos e prazeres.
Apesar de todos os pesares, Pellizzari não perde o humor. Há pontos em que parece renascer a esperança a partir do riso, mas logo, como se arrependido, volta à angústia e à depressão que dominam a cidade por ele vista e analisada. E esta análise tem seu fundo metafórico. A Dublin cantada pelo autor é um espelho da falta de sentidos e perspectivas do mundo contemporâneo.
Satã deu seu recado e Daniel o entendeu muito bem.